29.6.15

E o poeta no meio

Cada poeta tem seu mundo próprio, e o que atinge um não atinge outro. Há poetas que nasceram na miséria, que conheceram ou conhecem a fome, o frio, a falta de individualidade. Outros, por sua vez, tiveram e têm do bom e do melhor, mas, nem por isso, encontram a felicidade ou qualquer outro sentimento apaziguador. Alguns viveram ou vivem em países repressores, outros em democracias. Há muitos motivos para um poeta ser diferente de outro.

Apesar das disparidades, ouso dizer, há dois extremos com os quais todo poeta lida. De um lado, seu trabalho profundo, a agudeza com que revolve a dor e a transforma em palavras. De outro, o reconhecimento. Entre esses extremos, o poeta, um forte, antes de tudo, convive com sua impotência, sua vaidade, sua revolta e, para não me alongar, também com a sua submissão (voluntária ou não) a seja lá o que for.

Penso tudo isso a partir de dois poemas lidos recentemente. Um de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, uma de suas odes. O outro — compartilhado no Facebook por Adelaide do Julinho, pseudônimo de Silvana Guimarães — de Sebastião Nunes, poeta e editor mineiro.

Os dois poemas têm a ver com esse situar-se do poeta. Ricardo Reis defronta-se com a questão de que nunca será alguém e, mais que isso, de que não terá mesmo uma obra (reconhecimento). Ironia de um grande poeta? Não, ao contrário, o medo enraizado daquele que, em vida, publicou pouco. Diante da possibilidade de fracassar em seu desejo de criar uma obra — que, no caso do escritor, só se completa quando chega ao leitor —, a paz de um instante leva-o a imaginar-se sendo o que nunca poderá ser. Contra a impossibilidade, uma ilusão.


Sim, sei bem (1) (Ricardo Reis)


Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.

Sebastião Nunes, com ironia — mais, com sarcasmo , também trata do “fracasso”. No caso, de um poeta que fez pacto com a própria solidão, apostando na força (“poeta solitário corajoso, forte e temerário”) e que, de repente, pede o penico e quer pertencer a uma panela e ter quem puxe o seu saco. O reconhecimento que se quer aqui não é o da obra, e sim o da própria figura do poeta (ídolo popular com poder, senhor midiático), desejo comum no mundo da criação, mas que hoje chega a um nível doentio: expor-se, e colher os benefícios dessa exposição, é mais gratificante do que produzir a parte da obra que cabe ao poeta. A panelinha, por ser uma ação de grupo, é uma das formas de alçar os seus membros à fama. Fama, eis o que se quer.

Oh que estúpido fui! (Sebastião Nunes)

Quebrei minha panelinha literária
no dia em que nasci.
Voaram cacas, caquinhos e cagões
fedendo como nunca vi.

Desde então sou poeta solitário
corajoso, forte e temerário
orgulhoso pra caralho
mas no borralho.

Quem me empresta nova panelinha?
Quero que me puxem o saco.
Exijo ser chamado gênio.
Preciso cagar regras.

Ai que saudades de uma cagadinha
na minha literária panelinha.

Hoje, ainda que haja a tendência ao espetáculo, muitos poetas — o próprio Sebastião Nunes e também a Silvana Guimarães, por exemplo — estão por aí fazendo seu trabalho, temendo talvez, feito Ricardo Reis, o fato de que, por falta de leitor, nunca venham a ser reconhecidos. 

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(1) No disco Ná e Zé, de Zé Miguel Wisnik e Ná Ozzetti, foi gravada a música que Wisnik fez sobre o poema; no Youtube, encontra-se o disco, que, aliás, vale a pena escutar. Para ouvir a música, clique aqui.

15.6.15

Para quem escrevo: uma crônica-dedicatória

Escrevo para aqueles que, feito eu, nunca viram um pinguim. Ou, se viram, logo deram as costas à ave para, desatentos ao entorno, macerarem suas angústias — devo essa imagem aos craques para quem eu gostaria de escrever: Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, quarteto que “puxava angústias” pelas ruas de Belo Horizonte. Escrevo de olho nos que não distinguem um pinguim de uma foca.

Escrevo para todos que morrem de medo e ressuscitam dia após dia. Igualmente escrevo para os corajosos, que nem sempre vingam e morrem sem medo.

Escrevo para o inventor da saudade, que, suponho, seja um daqueles astronautas de fundo de quintal habituais no quintal que já não tenho e não me tem mais. Escrevo para os lunáticos insatisfeitos. Escrevo para a lua.

Escrevo para os farmacêuticos viciados e, não raro, para os carcereiros levianos e para as pessoas incapazes de combinar os tons da roupa. Escrevo para a moça de Goiás que acabou de passar por aqui. Aqui? Sim, pela minha lembrança.

Escrevo para a vítima de um espanto. E também para quem se espanta com a vítima. Trocaladrilhos, trocaladralhos, escrevo para quem não maneja bem as palavras. Afinal, é para mim que escrevo.


Foto minha, da cristaleira lá de casa.


Sem me recordar quais foram, escrevo para meus heróis da infância. Ah, sim, foi meu tio Lozo. Escrevo para ele. Também para os outros tios que, na companhia de papai, negociavam seus zebus na varanda da casa de minha avó cega. Escrevo para boi dormir — seria tão melhor escrever para conter esse desejo besta que algumas andorinhas têm de sozinhas fazer verão.

Escrevo para quem nem se dá conta de ter vivido um momento histórico. Aquele milhão urrando “diretas já” na Candelária, em 1984. Um tal fulano que, em passeio pelo Rio, ouviu ecoar do Palácio do Catete o tiro que matava Getúlio Vargas. (Não importa se havia um silenciador na arma.) Escrevo para os mitômanos autênticos.

Escrevo para o sicrano que transpira seco o suor de rios podres, para a lavadeira relapsa batendo roupas à beira desses mesmos rios e, ainda, para o atendente mal-humorado, que só pensa em pescarias e gandaias. Escrevo para aqueles que fumam depois do sexo e para os que, depois dele, chupam laranja.

Escrevo para os pacienciosos — se existirem. Para a mulher iletrada. Para quem, ao me ensinar o catecismo com sua pedagogia do medo, me afastou de Deus. (Se tivesse coragem, escreveria uma carta rancorosa ao bispo de Guaxupé.) Escrevo para a mulher do padre.

Não tendo outra, é com a minha cara de pau que escrevo para você. E é sempre para você que escrevo.