28.12.15

Falando do zero

Em “Chico — Artista brasileiro”, documentário sobre Chico Buarque de Holanda, dirigido por Miguel Faria Jr., Edu Lobo, ao falar do processo criativo, cita Fernando Sabino, que teria dito que escrever é muito simples: o sujeito senta em frente à máquina de escrever — estamos num tempo antediluviano, que antecede o computador —, corta os pulsos e manda ver.

Sabino não exagera, a escrita é tarefa árdua por ser um ofício do qual nunca se sabe, no qual nunca se aprende, sendo assim, todo recomeço se dá a partir do zero. Não é como andar de bicicleta, consertar relógio, recitar a tabuada, dar o golpe do baú, essas ciências que cobram criatividade, memória, mas se baseiam principalmente na técnica. A escrita só faz uso da técnica em seu momento de depuração, mas aí o sujeito já cortou os pulsos, enfrentou o zero e deu seus dois, três, sei lá quantos passos.

Escrever exige vigor físico. Nem sempre o escritor tem grana para ter uma boa cadeira, com isso o desconforto descamba para uma dor eventual nas costas, depois para uma lombalgia crônica, sem contar as lesões por esforço de repetição, causadas pelo uso excessivo do computador. Ao escrever, a pessoa sua, perde o fôlego, ou seja, sofre os efeitos negativos da ginástica, sem que usufrua dos positivos: escrever não emagrece, não baixa o colesterol, não ajuda a controlar a glicose, o que, de fato, é uma injustiça. Quem escreve é potencialmente um forte, não fossem o uísque, a diamba, as noites em claro. Não fosse a infelicidade — irmã siamesa. Sim, qualquer um que se envolva com a escrita é infeliz, mesmo o humorista, ou principalmente ele, uma vez que tirar graça de tudo causa um dessabor tremendo.

Escrever é prazeroso, afinal de contas, saindo-se do zero, chegou-se a algum ponto com um texto bem escrito e comunicativo. É uma vitória. Uma vitória que — quando e se o texto for lido — é colocada à prova e pode causar frustração. Por exemplo, se ninguém gosta daquilo que lê — ficar frustrado por isso é um pouco mesquinho, aprende-se com o tempo, pois as pessoas são livres para gostar ou não gostar do que quiserem —, ou se ele é mal interpretado ou incompreendido. Quem está fadado a escrever vai colher a vitória ou amargar a derrota brevemente, haja vista que deve começar de novo, o zero está lá e lá não pode ficar, é preciso escrever alguma coisa a partir dele, empurrá-lo para o precipício, uma vez que o buraco é seu destino (de onde ele sempre volta).

Tarefa de Sísifo ou vício, a escrita é isso, com ou sem punho — primeiro com, depois sem. É um suicídio que se repete, êxito e fracasso simultâneos. Ao morrer na escrita, o escritor ressuscita. Renasce, melhor dizendo, já que não traz de sua pequena morte nenhuma lembrança. Sempre o zero, início e fim.


14.12.15

Lição de surrealismo (Este não é um texto surrealista)



“Pense que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva depressa, sem assunto preconcebido, bastante depressa para não reprimir, e para fugir à tentação de se reler. A primeira frase vem por si, tanto é verdade que a cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente pedindo para ser exteriorizada.” (Manifesto do Surrealismo, André Breton, 1924)


René Magritte
Enquanto teço o silêncio que roubei aos mortos, você borra sonhos e lustra angústias. Vamos engolir um sete a um sem eloquência. Vamos sem ir. Para ver se passa. Se passa a dor. Se a roupa se passa sozinha. Se o dia pássaro. Se o pássaro anoitece. Se a noite adoenta. Se a doença compensa. Se o pensamento cala a boca das sobras palavreadas ao longo da vala incomum da mudez.

Enquanto rego meu choro com caldo sulfúrico, você suspira feito amor perdido, cantando a liturgia turva do ocaso. Do ocaso de caso perdido. Das perdas petrificadas. Das pedras lanhadas no lodo. Do lodo esquecido na mão que o tentou deter. Da detenção dos matadores coxos da ingenuidade.

Preciso, masco ventre e mente. Quando não, desvario vazio, consumido em canudos de doce de leite. Você cata coquinhos na manhã lisa e sem brisa, e eu lhe pergunto se já esculpiu vento num soçobro. Quem inespera meus clamores?

Para mergulhar em tudo que nos é tão próprio e único, o empurrão de um baseado, o gosto ocre-duro do uísque, a dança vertical de um coro de violinos ou o segredo que só os oboés guardam quando soprados. Três perguntas secas descansam à escuridão: De quantos navios nenhuma tábua corrida? De quantos rios nenhuma alma varrida? De quanto dinheiro nenhuma felicidade comprovendida?

Chegarei, sim, no dia não. Chegarei a cavalo, cavalo montado em meu cansaço baio. Papai, tenho piolhos ainda. Mamãe, são caraminholas que coçam e caçoam. Nenhum peixe no anzol vergado pela leveza da água — isso que veio da lágrima do peixe, segundo Adriane Garcia. Pisceomasoquistas choram pelo único prazer de nadar nas próprias lágrimas. E nadam. Nado também. Nada. Na(da)dor. 

Agora, daqui a pouco, nunca. O tempo coleciona relógios famintos, cuja fome mal tiquetaqueia, berra. O berro atravessa a hora. Ao ir sem ir, a hora é uma luz vagarosa. Você paranda pelo sono dos sapatos e pisa em mim, capacho ao pó recolhido. Somos cágados, sujos filhos de um dos deuses desbraçados, esses mitos que crucifixam uns nos outros. Nós somos o prego. Nós somos o pau chutado da barraca. (E aproveitado na cruz. Também no credo.)

Isso não é tudo.