25.6.18

O Futebol

Nunca fui bom de bola, apesar de ter passado grande parte de minha infância chutando uma. Jogava futebol de salão na quadra do clube. Jogava em chão batido, no campo improvisado da casa do Silvinho, e raramente num gramado. Principalmente, jogava na rua. Na rua do Ouro, com seu asfalto bem feito. No Beco dos Aflitos, com seu calçamento de pedra e sua evidente inclinação. Chutei muito chão, meus dedões não se esquecem disso.

Na escola, passei a gostar mais de basquete e handebol. Tinha mais habilidade neles, embora, assim como no futebol, não fosse um cara de chegar junto, de disputar espaço com o corpo. Guardadas as devidas proporções, me assemelhava a um Neymar, ainda que, ao contrário dele, quase nunca caísse. Não caía porque tinha medo de me machucar. Vocês já devem ter visto que tipo de atleta eu fui. Por favor, não se manifestem nos comentários, me poupem.

Não sei bem se foi a cachaça, mas fui me afastando dos esportes. Virei um torcedor, assim mesmo sem muita fé. Morando em Minas, por influência da mãe, tornei-me botafoguense. Havia uma tradição na família materna, eu e vários primos torcemos pelo clube. Meu pai, por sua vez, nunca gostou de futebol e, quando pressionado, dizia-se torcedor do Bangu, time que não tinha grandes pretensões no final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970, e só fez encolher-se mais ainda daí em diante.

Quando nasceu meu primeiro filho, o Botafogo não ganhava um campeonato (estadual ou nacional) havia vinte anos. Foi para a final do Carioca de 1989 contra o Flamengo. Minha mulher disse que, se o meu time ganhasse, o filho torceria por ele. E seria flamenguista no outro caso. O Botafogo ganhou, e, apesar de eu não ter levado muito a sério o combinado, o João se tornou um botafoguense dos mais apaixonados. A Helena, a segunda filha, quando dizia alguma coisa sobre futebol, declarava-se flamenguista. E o Pedro, o caçula, é um flamenguista e tanto.

Meus dois filhos homens gostam muito de futebol. O mais velho teve um blog por um tempo, o mais novo, agora estudante de jornalismo, tem o dele (Futlândia), onde fala também sobre basquete, esporte que pratica e acompanha.

Enfim, tudo isso para dizer que acompanho o esporte bretão, mesmo sabendo o que acontece à sua volta. É fato que alguns de nossos dirigentes amargam prisão ou processo por corrupção. Por outro lado, a venda de jogadores, a relação entre empresários, jogadores e clubes, a atuação das empresas de marketing e a forma como as redes de televisão negociam as transmissões estão sempre sob suspeita, obscuras até o talo. O que é uma pena, pois o esporte é lindo. E, por ele ser lindo, eu, bobinho da silva xavier, o acompanho.

A Copa — inclusive esta em que o Brasil está deitando e rolando — é uma vitrine, e seu público é diferente do habitual. Está mais para uma festa, feita a cada quatro anos, nem sempre brindada por bons jogos. Pouco importa, a gente vê e se diverte. Nem que seja apenas com os memes, principalmente os que se voltam contra nós. Somos brasileiros, com muito gorgulho.


Foto do autor, Engenhão, 2011.

11.6.18

Minha colega e o pianista

No dia em que a Fatinha foi assassinada durante um assalto em Cascadura, eu fiquei com medo, com muito medo. Não de que eu pudesse ser também abatido, não por isso. Meu medo era de que, com a morte de minha colega de trabalho, o que eu pensava que houvesse de mais precioso nela — sua característica evidente — fosse, de fato, tudo que havia daquilo no mundo. Falo da doçura. Fatinha era doce. Mas não há mais doçura no mundo além daquela que seu olhar e sua voz carregavam?

Naquela noite, assisti a um programa gravado em 1985 com o pianista Horowitz, então com mais de 80 anos. Além de uma fala ou outra em ambiente familiar, no qual estavam a mulher, a filha do maestro Toscanini, Wanda Toscanini, e os amigos responsáveis pela gravação, o programa era praticamente o velho senhor tocando sem partitura várias músicas de compositores como Bach, Mozart, Chopin e Schubert. Horowitz parecia indiferente aos anos que decerto pesavam sobre suas costas arqueadas de pianista e deixava soar de seus dedos a própria doçura. A certa hora, o produtor do vídeo, aparentemente amigo íntimo do casal, pergunta a Horowitz se ele estava mais para deus ou para diabo. O concertista responde que, conforme a peça, ele deveria se ligar a um ou a outro. A despeito disso, nas peças diabólicas ou divinas, a doçura reverbera de suas mãos. A doçura que a morte de Fatinha subtraíra do mundo.


Não era um dia em que eu pudesse encontrar alguma alegria, longe disso, mas Horowitz resgatou minha esperança: nem mesmo o caos que nos arranca uma Fatinha pode acabar de vez com essa coisa miúda e tão humana. A doçura está entre nós. Em Fatinha era tudo, sua energia, sua presença, seu trabalho — tudo, repito. Estúpido mundo violento e ácido, é possível que nos arranquem as pessoas mais doces, mas a doçura continuará espalhada por aí. Na música, no poema torto, no diálogo de dois amantes, na travessura das crianças.