19.6.21

Abobrinhas

Um amigo e eu falávamos do apetite sexual da juventude. Na mocidade dele e depois na minha, os homens eram predadores sexuais. Quer dizer, nem sempre eram, mas, por imposição cultural, deveriam ser. Deveríamos ser. Deitar-se com todas as mulheres do mundo era o esperado. Quando não satisfeito, ou seja, sempre ou quase sempre — haja vista que o desejo é insaciável,  — essa ânsia acabava gerando tristeza, frustração e um gasto excessivo com revistas masculinas. Lá pelas tantas, meu amigo comparou aquelas batalhas aos desafios de Américo Vespúcio, um dos grandes navegadores da passagem dos séculos XV para o XVI. Preferimos então rebatizá-lo de Américo Prepúcio. 

Alguns de meus amigos que foram maconheiros aos dezoito e ainda o são aos sessenta balançam bandeira pelo atual governo. Reflito cá com meus botões atualmente caretas e não consigo entender esse alinhamento. O que andam misturando na erva?

Aos quatorze anos, tornei-me crítico da televisão, uma máquina alienante, concluí. As novelas eram um pastiche, suas histórias, em títulos diferentes, se repetiam todas as noites, ontem, hoje e amanhã. Os telejornais mais confundiam que informavam. Os programas de auditório exploravam desafinados, humildes e toda sorte de desassistidos. Aos vinte e poucos, me dei conta de que não era bem assim, exagero meu, mas o estrago já estava feito, logo, a partir de então, vejo pouca televisão, inclusive a fechada e paga. Próximo dos sessenta, trancado em casa há mais de ano por conta da pandemia, acabo assistindo a alguma coisa e choro ouvindo crianças calouras num programa com grife americana.

Viemos ao mundo para fazer listas. Corolário imediato: viemos ao mundo para criar polêmicas com nossas listas. O Ruffato, por exemplo, elaborou recentemente uma lista dos melhores romances escritos no Brasil até a década de 1990 e recebeu aplausos e apupos. Aplausos tímidos, apupos ruidosos. Eu não faço listas, mas, se as fizesse, essa seria a primeira entre as coisas descartáveis deste mundo. Ora, mas se a razão de viver está em fazer listas, logo... Bem, logo a vida não tem sentido, o que é a pura verdade.

Não estamos entre a cruz e a espada, mas entre a graça e a desgraça. E toda graça que a gente acha, no fundo, alimenta a desgraça que nos achaca. Tudo assim em rimas espúrias, como espúrios têm sido nossos dias.

A dentista anunciou minha entrada na terceira dentição, quer dizer, daquele momento em diante, trocaria os dentes definitivos (uma ova) pelos postiços. A situação exige resignação e dinheiro. Este, mesmo não tendo, a gente arranja, já aquela não há banco que a empreste, mesmo a juros extorsivos.

Eu, meu pai e alguns de seus amigos estávamos sentados à sombra da “árvore dos enforcados” — sob a qual se reuniam ou se reúnem os negociantes lá de Passos, muitos deles na pendura, pedindo dinheiro a todo mundo —, quando o Canário soltou assim do nada que a exposição excessiva do corpo feminino acabaria com a libido masculina. Ele fazia loas ao tempo no qual visualizar um pedaço de uma canela, ali entre a barra da saia comprida e a renda que enfeitava o punho da meiinha curta, era um acontecimento e tanto. Se ele estivesse certo, agora que a máscara passou a ser, entre os sensatos, parte fundamental da indumentária, nossa vida sexual deveria estar a mil. No entanto muitos municípios têm apresentado estatísticas de um número maior de mortes do que de nascimentos. A máscara não estimula a sensualidade e a fertilidade, mas a recusa de seu uso assanha a morte.

Às vezes, como brinca o narrador de futebol Milton Leite, eu se acho, mas, fora esses lampejos de vaidade, eu me escondo e não sei onde me esqueci. Ah, sim, foi num país do futuro. Não aquele edulcorado pela ditadura, mas o real, duro e no qual a gente colheria ao menos uma flor de um dos muitos canteiros que plantamos e que o vento não se cansa de derrubar.

Entramos na vida como verdadeiros parvos e saímos dela não de todo instruídos, portanto a ignorância é, de fato, uma de nossas mais arraigadas características. O desconhecimento conquistado, se é certo dizer assim, pode ser por falta de curiosidade, de oportunidade ou até por não haver necessidade de saber certas coisas. Logo, há grandes, médias e pequenas ignorâncias. Eu, por exemplo, alimento uma que, na hierarquia, deve ser ínfima, mas assim mesmo me traz algum sofrimento. Por que entre tantas frutas, legumes, tubérculos, justo à abobrinha coube o significado de conversa informal, tola, recheada de bobeiras? Por que, meu Deus? Por quê? 




6.6.21

Vinte e uma dicas para deter o fim do mundo

 Na última segunda-feira, comecei o dia espalhando, em rede social, dicas para a semana que se iniciava. Repito-as aqui sem saber se são valiosas, ainda que, imodestamente, creia que, mil vezes repetidas, elas nos auxiliariam a deter este momento assemelhado ao fim do mundo, senão o próprio.

 

Divida as tarefas domésticas / Manifeste-se contra o governo / Beba, se for o caso, mas não deixe de orar / Ore, se for o caso, mas não deixe de beber / Troque uma ideia com amigos / Ouça música. Leia. Cante. Dance / Manifeste-se mais uma vez contra o governo / Tenha saudades / Procure se informar. Desconfie de tudo / Agradeça a vacina tomada / Se prepare para tomar a vacina / Não se conforme com tantas mortes / Olhe para o Jacarezinho. Cobre justiça / Olhe para as aldeias indígenas. Cobre justiça / Manifeste-se mais uma vez contra o governo / Mande uma gracinha pelo ZAP / Confronte fake news / Faça planos / Chore / Ria / Olhe bem para os lados, não esteja sozinho.

 

À beira da autoajuda, as dicas beliscam temas que me mobilizam e misturam aquelas claramente políticas com as apenas afetuosas. Sabendo-se que o afeto, e isso está tão claro hoje, é mais político que muito grito de guerra, minhas dicas — com destaque para “divida as tarefas domésticas” — são absolutamente políticas e absolutamente afetuosas.

Escrevi as vinte e uma ações instigado, de um lado, pelas derrotas quase diárias, representadas pelas chacinas do Jacarezinho e de muitas aldeias indígenas: dois exemplos tirados de uma lista que, no dia 29 de maio, quando os descontentes com o governo tomamos a rua (não fui, mas, como acumulo crédito em protestos e passeatas, é como tivesse ido), foi acrescida por um ataque covarde da polícia pernambucana contra a população. Daniel Campelo da Silva e Jonas Correia de França, que nem estavam no protesto, perderam parte da visão depois de levarem tiros de bala de borracha. De outro lado, o impulso veio do brilho saído das ruas cheias e inconformadas. Escrevi, portanto, a partir de um lamento e de uma esperança. Olhemos para os lados e não estejamos sozinhos — não estamos!

A extrema direita, essa cobra por muito tempo escondida e alimentada pela própria fome, voltou ao poder com o intuito único e claro de desinventar o Brasil, o Brasil cordial. Digo cordial não no sentido de ser habitado exclusiva ou majoritariamente por pessoas afáveis e sinceras, mas sim por abrigar o povo que inventou o drible e que, se não o inventou, aperfeiçoou a gambiarra. Povo que, do trauma da escravidão e agarrado à ancestralidade africana, fez surgir o samba, nossa trilha da alegria, da congratulação, “o pai do prazer” e “o filho da dor”, nas palavras de Gil e Caetano. Cordial porque age de coração.

A direita quer acabar com os atravessamentos entre o antigo (e até o conservador) e o moderno que marcam este país em permanente exercício de autoconhecimento. Vandré e sua Disparada. O Lamento Sertanejo, de Gil e Dominguinhos. Os Mutantes cantando Dois mil e um, de Rita Lee e Tom Zé. Os irmãos Pena Branca e Xavantinho, crias do Brasil Central, rural, boiadeiro, acaipirando Cio da Terra, de Milton e Chico. Bethânia levando Evidências para além do que é. Emicida absorvendo Belchior. Todas essas experiências são o resultado de diálogos entre o centro e a periferia, entre o rural e o urbano, entre o interior e as capitais, entre a costa oceânica e os sertões e as florestas, entre o negro e o branco, entre distintas gerações, portanto diálogos feitos também ou principalmente de embates. O Brasil, bem ou mal, foi se construindo a partir dessas contradições que agora querem dizer que não existem, querem proibi-las de dar norte ao país.

A direita no comando não tem um projeto neoliberal claro, nesse ponto ela enfrenta suas contendas internas, mas, não resta dúvida, tem um projeto coerente de, agarrado às batidas agendas conservadoras, impor um poder que não é civil, também não é militar, é miliciano. As milícias nasceram oferecendo, mediante pagamento e de forma chantagista, “segurança” aos desassistidos (no subúrbio carioca, na Baixada Fluminense). Aonde a lei não chegava, as milícias agiam como se zelassem por ela. Lorota. Na verdade, reescreviam as leis e encarceravam — expandindo os serviços já oferecidos, que passaram a contar com o gatonet, a venda monopólica do gás etc. — primeiro os seus protegidos e, depois, todos os moradores dos territórios sob sua influência.

É nessa esquina que estamos. Se não reagirmos, de 500 mil mortos por Covid-19, saltaremos para um milhão. A esse um milhão, acrescentaremos outro milhão de mortos por perseguição e balas perdidas. E mais não sei quantos milhões vitimados pela fome. É hora de trazer o poder para o campo civilizatório, tomá-lo de volta desse projeto de destruição. Depois, bem, depois a gente retoma as velhas questões. Uma retomada que, embora anteponha projetos distintos, quiçá incompatíveis, garanta a alternância no poder e o estabelecimento de um consenso duradouro, qual seja, o de que situação e oposição agirão sempre respeitando a democracia.

Bebendo sem deixar de orar e orando sem deixar de beber, nos concentremos na luta civilizatória e resgatemos o Brasil da mão dos facínoras.