3.12.22

Eternos baianos

 O sujeito que xingou Gilberto e Flora Gil, lá no Catar, já deve ter dançado ao som das músicas feitas pelo baiano (quem não?). Seu ódio é importado de grupos insanos, coisa a que se apega contra a própria história. Um dia, essa turma acordou dizendo não gostar daquilo que nos é próprio, neste país cuja formação destruiu a genuinidade original — difusa, múltipla e heterogênea —, criando outra, amálgama das culturas dos dominadores e dos dominados. Gil é a África arraigada no samba, no blues, no reggae, no jazz, no rock, mas ele também é a leitura e a apropriação dessa África pelos jovens, brancos e inquietos, da Europa e dos Estados Unidos, que salpicaram os sons de pretos com um caldo da música que, por pura imposição do dominador, chamamos de clássica.

Seria pedir demais ao rico agressor — está na Copa gastando rios de dinheiro — que pense sobre sua incivilidade a partir da História. Estranho, no entanto, é vê-lo rechaçar a vida miúda que na certa leva desde sempre. Por que se esquecer de que dançou de olho naquela paquera ao som de “Palco”, “Andar com fé”, “Toda menina baiana”, “Nos barracos da cidade”? Ele deve ter sua razão. Todos eles têm, mas imagino que muitos apenas encenem e, ao chegarem em casa, liguem o som e ouçam Gil por horas. São uma espécie de clandestinos em si mesmos, sendo assim infelizes ou, me aproveitando do octogenário baiano, “gente estúpida, ô,ô, gente hipócrita”.

 

O primeiro disco de Gal Costa a me marcar foi “Índia”, de 1973. Ali se juntavam vários mundos, de tal modo que eu, com meus 11, 12 anos, meus irmãos, um pouco mais velhos, e meus pais podíamos nos reunir e ouvi-lo. A guarânia “Índia” era cantada nas festinhas de família, e a gravação da baiana mantinha o espírito da canção, o que agradava os velhos, mas também o revolucionava, alcançando a mim, então atraído por Pink Floyd e por tudo aquilo que eu, renegando a bossa nova, o samba, o choro e os sons latino-americanos, chamava de música. Graças a esse disco, mas também a outros, como “Milagre dos Peixes ao Vivo”, de Milton Nascimento, entendi que música é música e que a MPB é tão linda quanto o rock progressivo. Essa certeza se consolidou ao me apaixonar por outra gravação de Gal, “Água Viva”, de 1978. Ali estão pequenas maravilhas, como “Folhetim” e “Pois é”, ambas de Chico, a segunda em parceria com Tom, “Paula e Bebeto”, de Milton e Caetano, a deliciosa “O gosto do amor”, de Gonzaguinha, além da canção mais bonita já feita em homenagem às mães, “Mãe”, de Caetano Veloso.

Como se vê, Gal faz parte da trilha sonora da minha vida, e eu, ao contrário dessa gente ressentida e invejosa (como o truculento agressor de Gil), não preciso me esconder para escutá-la, o que é um jeito de ser feliz. Feliz, mas me sentindo desamparado com a morte repentina de uma pessoa dessa dimensão.