21.12.23

O raro romance de Ione Mattos

 “A casa da mãe dos homens” (editora Telha), novo livro de Ione Mattos, é um romance, mas um romance com uma personalidade muito própria, um estranho quando comparado à produção atual com a qual tenho contato, ainda que, como muitos outros, dê voz a quem vive à margem.

Ione traz para o centro da narrativa pessoas contra as quais a sociedade costuma torcer o nariz, seja por suas características físicas (a obesa, a anã), seja por suas escolhas pessoais (o homem que se veste de roupas femininas, os que praticam o poliamor, o homem que se quer manter virgem até o casamento). Além disso, a casa é em si uma personagem que interage com os personagens (essa característica me faz pensar em “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso, embora não saiba bem por que caminho) e abriga vivos e mortos, estes relacionando-se com uns poucos escolhidos entre aqueles.

O romance corre em dois tempos. No passado conhecemos a família que é dona da casa. Descobrimos então como a casa foi cair nas mãos de duas mulheres muito raras, a bisa e Mirtila, mãe e filha, que não têm uma ligação de sangue com os donos. Os donos são gente rica, barões e baronesas. Mas, e aqui começam os “desvios” que Ione tinge com as cores mais fortes (e agradáveis), entre eles há um trisal: o barão (filho da grande baronesa), sua mulher (uma feminista de primeira hora) e uma prostituta. Há uma atenção especial e sem preconceito sobre esse relacionamento, indicando que o amor não se adequa a modelos.

No presente, a casa é uma ilha, um pedaço de Brasil – um país possível – que busca preservar aquilo que seria a essência humana: o amor, a tolerância, a solidariedade. Seus moradores vivem no trânsito entre esse espaço especial e a hostilidade da vida urbana hoje. O choque entre os dois mundos é inevitável e chegará a extremos ao longo da história.

Todos os personagens estão fugindo ao estereótipo pelos quais veem sendo atacados desde sempre, mais recentemente pelas hordas direitistas. Nessa caminhada, os “abandonados” (e os “assistidos”, nome dos sem-teto que são alimentados e, algumas vezes, acolhidos pela casa) se encontram e se fortalecem (mas há os arranca-rabos, os conflitos, não é um mar de rosa, ainda que seja um porto seguro).

Não me proponho a contar a história, fazer um resumo, deixo que cada leitor vá lá e leia, aliás, aconselho que se faça isso. O que importa é que, como já disse, Ione coloca o amor, a solidariedade, a compreensão, o acolhimento (da casa, de seus moradores) como peças-chaves na sobrevivência humana e atuam como um elemento de fortalecimento da experiência de vida. Quando o mundo está envolto em guerras, vivendo sob regras não cumpridas por seus defensores, gente hipócrita em grau máximo, essa casa da mãe dos homens recebe o divergente, o expulso, o aprendiz. A figura feminina, nessa visão, é a única capaz de reequilibrar o mundo. No livro (assim como na vida), o feminino é forte e diverso – está na feminista do começo do século XX, nas mulheres que transformam o casarão em espaço de proteção e crescimento, na jovem muito cheia de si, no homem que se veste de mulher – e, sem que haja um foco proposital e forçado nele, é a grande personagem que acompanhamos. A casa, outro feminino, também.

O livro se vale de um espalhado diálogo da autora com escritores, ficcionistas ou não, e se faz presente ora na voz de um dos narradores (no passado, é um barão machadiano que nos contará sua história de um amor não convencional), ora nos títulos, ora em alguma história que se conta. No belo final, a personagem mais velha, a bisa, conta à mais nova, Justina, uma possibilidade de criação do mundo. Não opta nem pela bíblica nem pela científica, escolhendo uma da cosmogonia indígena, a que coloca como princípio de tudo a criação, do nada, de uma mulher.

Apesar dessa clara leitura feminina, não há um desprezo pelos homens, ao contrário, o caminho está aberto à comunhão, desde que o princípio seja o amor. A figura de Lemuel serve bem para ilustrar essa linha. Ele chega à casa, depois de ter vivido sua infância num orfanato, e ali vai viver entre aquele ambiente quase utópico – onde convivem e se respeitam figuras tão diferentes, onde o trabalho é sempre compartilhado – e, um pouco depois, se ver atraído pelo mundo-mundo, este em que há disputa, ambição; o mundo masculino, afinal de conta. Ele viverá então a tensão desses dois polos até que a complexidade de um mundo habitado por vivos e mortos aja sobre ele. Seja como for, ele é uma espécie de espinha dorsal do romance.

No romance de Ione, o final é triste. No romance de Ione, o final é feliz. Eu bem disse que estamos diante de uma peça incomum.




18.12.23

Ainda em Minas

Depois de passar uns dias em Tiradentes, não voltei ao Rio, fui a Belo Horizonte ver familiares e amigos. Na capital mineira fiquei duas semanas e, ao contrário de outras vezes, circulei pouco, ficando mais na casa de minha madrinha e irmã, a mãedrinha. Eu e ela estávamos trabalhando e, aqui e ali, assistíamos a alguma coisa na TV.

Vimos um filme meio sessão da tarde, “Nosso amigo extraordinário”, uma espécie de “E.T., o extraterrestre” que se desenvolve numa situação diferente da original: em vez de aparecer para as crianças, o de agora aparece para uns velhos que, até aquele momento, fugiam da solidão indo assiduamente a encontros públicos demandar melhoras na cidade. Filme simples, mas bonito, com ótimos atores: Ben Kingsley, Jane Curtin e Harriet Sansom Harris. Vimos também o Som Brasil com o Zeca Pagodinho, tremendo artista. Ele contou que, quando vendeu um milhão de cópias de seu primeiro disco, a vida não mudou muito porque ele andava e continuou a andar pelas favelas, onde já era conhecido. No final dos anos 1980, eu trabalhava no pé da Mangueira e sabia – os meninos que tomavam conta de nossos carros nos contavam – que ele passava algum tempo por ali. Imagino que tomava umas, fazia uns sambas, enfim, era o autêntico boêmio que ainda não deixou de ser, com a saúde de ferro de quem tinha quarenta anos menos. O danado do Zeca Pagodinho, e é isso que interessa, canta muito, aquela voz meio detonada faz milagre durante a interpretação de um samba.

Ainda na estadia mineira, eu e mãedrinha assistimos aos quatro primeiros episódios de “Betinho: No fio da navalha”, direção de Lipe Binder e Julio Andrade. Há muitas maneiras de ver a série. Betinho foi um protagonista da história recente do Brasil e, nesse sentido, sua trajetória mostra como os vestígios da ditadura custaram a desaparecer, ou nem desapareceram de vez, basta pensar na anistia injusta. Refazer a vida naquele ambiente não foi nada fácil, e a criação do Ibase mostra bem isso. Num ambiente tenso, mas também esperançoso, a AIDS apareceu e mudou o mundo, em particular o dos hemofílicos, como Betinho e seus irmãos, Henfil e Chico Mário. Enfim, aos que dão as costas à história, a série é um bom chamado à realidade.

Tenho também uma leitura mais pessoal. Não fui próximo do Betinho, mas, graças a amigos que trabalharam no Ibase, em particular Wania Santanna e Atila Roque (personagem na série), convivi um pouco com ele. Ao lado daquela doçura tão presente em seu olhar, havia um sujeito muito divertido, de uma ironia até ácida. Como mostra a minissérie, Betinho gostava de música. Graças a isso, tive a sorte de ir com ele e Atila a um show do Johnny Alf e, em torno de uma roda de música, o recebemos em casa, naquela que dever ter sido uma de suas últimas saídas. Na época, eu e ele não podíamos beber, então lhe ofereci uma cerveja sem álcool. Ele não sabia daquela “novidade”, mas garantiu que a partir daquele momento sempre teria alguma na geladeira. Por essa tímida proximidade, a série tende a me emocionar, o que não aconteceria se não fosse o trabalho artístico. Aí está mais um acerto: a constituição de época, o ritmo da história e principalmente a atuação dos atores. Esse Julio Andrade é um espanto, e não o vejo trair a memória física que guardo do Betinho – o olhar, o corpo arqueado, os gestos das mãos, está tudo ali.

Proximidade maior tenho com a Maria Nakano, o que me faz muito bem. Maria é o tipo de pessoa que nos abraça e acolhe em sua casa, uma raridade neste mundo de isolamento e egoísmo. Certa vez, lancei a ideia de fazermos um livro sobre a sua história, Maria desconversou. Penso que nisso haja um pouco de timidez, de não querer se expor, mas também uma sabedoria, a de que, tendo participado de um momento tão importante do país, melhor deixar sua imagem no emaranhado do coletivo. Entendo bem, e admiro.

Apesar do recolhimento, saí algumas vezes em Belo Horizonte. Com Ronaldo Guimarães, que acaba de lançar “O dia em que os Beatles visitaram Belo Horizonte” (Editora Lê), fui a um bar em Santa Efigênia, no mesmo dia em que tomei umas cervejas com o Celso Faria. Sérgio Fantini, mais uma vez, me recebeu em sua casa. Dessa vez, foram também Ádlei Carvalho (que está lançando “Céu de luz Marina” pela Editora Patuá), Aloísio Sá, o Lelu, e Tadeu Sarmento, que arrumava as malas para ir ao Rio de Janeiro receber, por “Meu amigo Pedro” (Abacatte Editoria), o prêmio Biblioteca Nacional, na categoria Literatura Juvenil. Na livraria Quixote, um monte de amigos se reuniu para ouvir, entre outros, Caio Junqueira Maciel e Adriane Garcia falarem de seus livros da coleção “BH, a cidade de cada um”. Depois da conversa, fomos eu e Fantini à casa do Caio. O Vasco conseguiu ficar na primeira divisão, o que deixou o anfitrião feliz demais. Já eu, botafoguense, amarrei outra decepção, o time, para jogar a Libertadores, terá de disputar uma etapa anterior. Tive ainda um dia esplêndido na casa do poeta e conterrâneo Antonio Barreto e de Graça Sette, amiga que é uma usina de fazer pensar. Na festa de meu cunhado, eu e meus três irmãos nos juntamos depois de uns cinco anos. Ah, sim, fiz umas estripulias com meus sobrinhos Cristiano e Conrado e com o primo Lucas. E o melhor de tudo: vi meu querido Apollo, que nasceu meu sobrinho-neto e agora é meu neto.

4.12.23

Um momento mágico

Eram dez da noite, e eu estava no Conto de Réis, restaurante bem no Largo das Forras, em Tiradentes. Com um copo de cerveja numa das mãos e um feijão amigo na outra, observava o movimento da praça. Algumas pessoas estavam entretidas com as imagens transmitidas na fachada da Capela do Senhor Bom Jesus da Pobreza, outras simplesmente passeavam, indo ou vindo de algum lugar, talvez da casa de Papai Noel, talvez de um dos concertos do Festival Artes Vertentes. Sentado com moradores da cidade, ouvia opiniões sobre a tentativa de, na época de Natal, fazer da histórica cidade mineira, tão rica em eventos culturais, uma espécie de Gramado. Uns concordavam com a ideia, outros não. Não que eu não tenha opinião sobre isso (não gosto), mas meus olhos estavam encantados com o trânsito de crianças, jovens e velhos pela rua, todos sem nenhuma preocupação com a violência. Essa tranquilidade me remeteu à minha infância, à minha cidade de origem, que já foi pacífica e não é mais tanto. Enfim, enquanto meu caçula tinha o celular roubado no Rio de Janeiro, e eu ainda não sabia, Tiradentes curtia sem medo uma noite fresca, quase fria, nesse verão dos diabos.

Não sou o único, mas, ao caminhar por cidades históricas, sinto a presença fantasmagórica dos inconfidentes, de “Marília de Dirceu” e Xica da Silva, além de ver nitidamente a dor da escravidão cunhada em cada parede ou muro erguidos. Atualmente, encontro nesse patrimônio de orgulho e vergonha um pouco do que esperamos do mundo: um lugar de pessoas despreocupadas, passeando enquanto a noite é entornada na madrugada. Restaram poucas ilhas calmas em nossa sociedade insana.

Em Tiradentes, tenho sido apresentado a pessoas bacanas. Os cariocas Sérgio e Beth, donos do Conto de Réis, a família em torno do Sabor Rural – Kleber e Fernanda à frente –, a Carmen, funcionária de um banco e que exige que eu abra uma conta antes de me dar um cartão de crédito sem limite e anuidade, uma tremenda burocracia, mon cher. Também Luciana, nascida em uma cidade vizinha de Passos, Carmo do Rio Claro, que me vem à memória por seus doces caramelizados e artesanais (verdadeira obra de arte) e sua tecelagem em tear manual bonita de doer. Sem contar o Gabriel Vilella, criativo diretor de teatro. Quem me facilita tomar contato com os tiradentinos, poucos por nascimento, a maioria por exílio espontâneo, são meus amigos Marco Ajeje e Tereza Portugal. Eles se mudaram para a cidade há uns quinze anos e hoje são bem conhecidos, não só por sua simpatia, mas também pela qualidade do trabalho que fazem na Divinas Gerais, oficina de móveis e artes, e nas associações da sociedade civil a que pertencem ou trabalham como voluntários. Com eles, começo a tomar intimidade com a cidade e já posso frequentar sozinho um boteco e me sentar com um conhecido. Por isso, abraço esse resistente patrimônio histórico onde ainda (tomara que para sempre) se respira sem aflição e medo.

No último final de semana de novembro, Maria Valéria Rezende, premiada escritora, estava em Tiradentes e nos encontramos. Por ela ser filha de mãe e neta de avô passenses, nós nos chamamos de primos. (Seu avô, Elpídio Vasconcelos, foi um artista plástico e fotógrafo que, na primeira metade do século XX, lançou o primeiro livro retratando Passos.) Na infância, frequentando a cidade de seus ascendentes, a prima entrava em casas de familiares para um dedo de prosa, um gole de café, uma degustação de quitandas. Ela tem a impressão de que, de casa em casa, entrava em todas, portanto os passenses seríamos todos do mesmo sangue. Não só concordo como, se for o caso, comprovo com um teste de DNA.

Maria Valéria participava do Festival Artes Vertentes. Fez oficinas de haicai, lançou “Toda palavra dá samba” pela estreante editora paraibana Dromedário, bateu papo com jovens que a vão descobrindo. Deu o show de sempre. Dessa vez, estavam com ela duas de suas irmãs, Valentina e Viviana. Uma primaiada só. Certa hora, consegui sequestrar as três e levá-las à Divinas Gerais. O encontro com a arte do Marco Ajeje (logo incorporado ao ramo sírio-libanês dessa família elástica) foi, nas palavras da Vivi, o momento mais emocionante da viagem. Marquinho – primo delas, meu irmão – é um artista imenso. Seus móveis – feitos em grande parte de madeira de demolição – são, além de bonitos, funcionais; suas esculturas, um deslumbre. Maria Valéria e ele pareciam velhos conhecidos, o que sempre acontece, isso é, dois artistas, se controladas suas vaidades, são afinal velhos conhecidos e bons parceiros.

A escritora ainda conheceu pessoalmente o Celso Faria, violonista de Passos, morador de Belo Horizonte, que fugiu para Tiradentes para vê-la de perto e não deve ter se arrependido. Na companhia do Celso estava Carminha Guerra – musicista responsável pela gravação de discos de poetas como Adélia Prado e Thiago de Mello, além de muitos musicais, como o de Maria Lúcia Godoy (por coincidência, vizinha das primas Rezende em Belo Horizonte) –, que chegou a essa turma meio desavisada. Lá pelas tantas, ela adjetivou o momento como mágico. Graças também a ela, foi mesmo.

20.11.23

Futebol e outras frivolidades

Vocês me desculpem se trato de temas amenos. Amenos, não, insignificantes. É que os dias andam difíceis, as guerras, televisionadas ou não, matam crianças sem nenhuma piedade, desrespeitando seus próprios códigos de ética. Dito isso, enfatizo: para minha saúde, caçar assuntos até frívolos é fundamental. Assim, gasto umas quatro horas – tempo estimado para escrever uma crônica – transitando nas nuvens, e você, caro leitor, cara leitora, se distrai por uns cinco minutos. Claro, isso se der tudo certo na minha escrita e na sua leitura.

Sou botafoguense, logo aliado do sofrimento. Essa pecha grudou no time e ninguém consegue desgrudá-la. Agora, por exemplo, depois de termos liderado o campeonato com até treze pontos à frente do segundo colocado, a última rodada nos deixou na vice-liderança e corremos o risco de nem ir para a chave de grupo da Libertadores. Mas meu assunto não é o Botafogo, que só está aqui para servir de mote a assuntos futebolísticos, que podem ou não ser os únicos tratados adiante. A ver: escrever é uma aventura.

A última vez que o Brasil sagrou-se campeão mundial foi em 2002. Era um bom time, com craques como Ronaldo e Ronaldinho, Rivaldo, Dunga, Taffarel, Cafu, enfim, gente cujo nome já revela um jogador de futebol. Naquela equipe, havia uns nomes mais sofisticados, Roberto Carlos, Gilberto Silva, Edmilson, apontando para uma mudança que ocorreria daí em diante. Se vamos para trás, Romário, Bebeto, Zinho, e mais atrás ainda, Jairzinho, Gérson, Tostão, Zagalo, Vavá e os deuses Pelé e Garrincha. Minha tese: o que faz o Brasil ganhar campeonato são os nomes de seus jogadores. Neymar, Ederson, Emerson Royal, Gabriel Jesus anunciam um fracasso. Melhor convocar um Tiquinho, um Tche Tche, até mesmo, por exótico, um John Kennedy ou uns caras que têm me chamado a atenção – pelo nome, sempre pelo nome –, Praxedes e Galdino. Nomes menos usuais e bons apelidos são uma indicação de que os donos daquelas pernas sabem correr, pular, passar a bola, driblar ou impedir o drible, fazer ou evitar o gol, enfim, sabem jogar o bom e velho futebol da escola brasileira.

Mal elaboro a teoria, dou o assunto futebol por esgotado. Apesar de minha descrença espiritual, estou em período de oração pelo meu time, apostando que, pelo fato de poucas vezes demandar um socorro divino, eu possa ser ouvido e atendido.

O que haverá de frívolo além do futebol? Concurso de miss? Não, disso não falo, não é assunto de meu interesse. Embora essa coisa de miss me faça lembrar de um romance lido recentemente, Pastoral Americana, de Philip Roth. Nele, Seymour Levov, o personagem central da história, é casado com uma miss. E daí? Daí nada, foi só uma lembrança. Mas já que falei do livro, tem uma coisa espetacular na literatura do Roth: a concatenação feita entre a vida miúda (a minha, a sua, a daquele Levov, o Sueco, como é chamado) e a política. Nisso, ou também nisso, ele é mestre.

Vejam que só de citar aquilo que me parece a coisa mais leve do mundo, o concurso de miss, aliás, evento que resiste fora da grande mídia, esbarrei na literatura. E literatura não é nada frívola. Até os textos ruins ou de entretenimento não o são. A literatura é coisa séria, mesmo quando não é. Se é assim, eu deveria cortar os dois últimos parágrafos, mas me custaram um bom tempo, me afeiçoei a eles e os manterei.

O fato de a literatura nunca ser frívola não quer dizer que ela e seu entorno não tenham sua graça. Me despeço dando prova disso com um trecho de uma carta que Macedonio Fernández, escritor argentino estranhíssimo – autor, por exemplo, de “Museu do Romance da Eterna”, um livro cheio de prólogos a um romance que afinal não se escreve –, remeteu (ou não) a Borges. Encontrei “as (de maneira nenhuma) mal traçadas linhas” no site do La Nacion, com data de 11 de setembro de 2007, mas o texto traduzido estava em um post em rede social de Adaubam Pires, que afinal não sei quem é.

“Desculpe-me por não ter ido ontem à noite. Eu estava indo, mas sou tão distraído que no caminho me lembrei que havia ficado em casa. Estas constantes distrações são uma vergonha, e às vezes esqueço de me envergonhar também”.

6.11.23

Psicologia no busão

Antes de tudo, preciso falar de ônibus lotados, ou não exatamente deles, mas de uma das razões por que ficam lotados. A partir da minha experiência no Rio de Janeiro, e não só o de fevereiro e março, alô, alô, seu prefeito, aquele abraço, os ônibus lotam porque sua frequência é incompatível com o fluxo de passageiros. Mas há algo pior. Desde que alguns conhecidos abriram um sebo-livraria em Laranjeiras – a maravilhosa Casa 11 –, me desloco bastante entre meu bairro, Botafogo, e lá. Antes até de eu me mudar para a Cidade Maravilhosa, quer dizer, bem mais do que quarenta e três anos, já existia a linha circular ligando o Cosme Velho ao Leblon. Quem está em Botafogo, portanto, pode ir a Laranjeiras e voltar de lá sem problema, pois o bairro está na trajetória. Quer dizer, podia. A linha não acabou, mas cadê os ônibus? Cadê, prefeito?

Dia desses, esperei de quinze a vinte minutos pelo famigerado e, como não veio, peguei um alternativo, que nos deixa no início de Laranjeiras e nos obriga então a tomar outra condução para chegar ao interior do bairro ou caminhar. Quando se tem tempo, a segunda opção é ótima. Num momento de correria, a coisa aperta. Foi o que me aconteceu naquele dia, eu não tinha tempo, mesmo assim, desci do ônibus e, suspeitando de que esperar poderia ser uma cilada, andei até a livraria.

O que quero contar – passado o momento usuário prensa o prefeito, que por sua vez não vai se importar com nada disso – é o que me aconteceu no ônibus, este que estava lotado e tomei com pressa. Minto, não aconteceu comigo, nem posso dizer que vi, pois não vi e sim ouvi. Nessa era de podcast, os ouvidos estão bem treinados.

O ônibus levava trabalhadores de volta para casa. Me posicionei em pé já perto da porta de saída, precavido que só. Espalhadas ao meu redor, nos bancos à minha esquerda, atrás de mim, e muitas, feito eu, em pé, iam várias mulheres. Imagino que algumas trabalhem nas clínicas e em hospitais da redondeza, outras devem ser domésticas, cuidadoras, atendentes de loja. Elas conversavam alto, de um jeito informal e íntimo, próprio de quem se esbarra com frequência. Isso acontece no transporte público, sei até de festas de fim de ano dentro de ônibus. Bem, mas as mulheres falavam, falavam muito e desordenadamente (para quem não estava no assunto). De repente, contando um caso, uma voz sobressaiu às demais.

De uns tempos para cá, ela passou a ter umas tremedeiras. Foi ao médico, fez exames. Nada. Foi aconselhada a ir a uma psicóloga. Sessão marcada, presença garantida. O resultado a deixou fora do eixo. No consultório, falou com as paredes, pois a outra nem tchum. Como se não bastasse, ao final perguntou à psicóloga se lhe indicaria um remédio, e a resposta foi não. Ela era esperada na outra semana, no mesmo horário. Onde já se viu uma coisa dessas? A mulher queria ouvir seus segredos e não lhe dava nada em troca. Preferia seus tremores. O pior, no entanto, ainda viria: a “doutora” deu uma cruzada de perna digna de Sharon Stone em “Instinto Selvagem”. Puro assédio.

Antes que eu fosse em busca de minha psicologia de botequim para aplicar àquela história, a senhora já se queixava do ônibus lotado. Era um perigo, ela disse. Nisso veio uma moça pedindo licença, pois saltaria no próximo ponto. A passageira falante perguntou se ela era homem. A pergunta preconceituosa não encontrou uma resposta à altura, a moça simplesmente disse não e avançou sobre o espaço que lhe foi aberto. Quando ela desceu, a trêmula comentou que, se fosse homem, não passaria atrás dela, a menos que se virasse de costas. Acontecem muitas histórias de violência sexual em ônibus e trens lotados, eis uma verdade.

Essa passageira, na realidade, era fogosa, seu assunto principal era de cunho sexual. Suas amigas, sabendo bem disso, a provocavam. Uma lhe perguntou sobre o novinho. Ela suspirou, diminuiu um pouco a voz, um pouco mesmo, um quase nada, um faz de conta que baixava a voz, e começou a falar da gostosura do rapaz. Ele era gordinho, o que só a deixava mais encantada – não era bem essa palavra – e saudosa, apesar de ser apenas uma relação idealizada. O rapaz nem sabia de seu amor, o que não tinha importância. Ela suspirava, e isso já lhe valia uma alegria, um prazer sem fim, eu diria.

Coincidiu de descermos juntos. Eu ansioso, ela com uma expressão marota, própria de quem se alegra por ter feito as pessoas rirem. Pessoa leve, apesar de tudo. Eu poderia dizer a ela que um bom psicólogo a ajudaria com aquelas tremedeiras sem diagnóstico e, até quem sabe, a vencer a timidez e chegar junto de seu crush. Mas não disse, eu estava a um passo de me atrasar para o compromisso em Laranjeiras, que antecedia outro que me levaria de volta a Botafogo. Eu, na realidade, tremia de raiva do prefeito e de pressa, o que me fez voar e chegar a tempo aos dois.


7.10.23

O encanto estrangeiro

 Não é raro rirmos do estrangeiro. Tampouco é raro a troça desandar para o preconceito, como é o caso do português entre os brasileiros. O que, nesse caso, é estranho, pois, veja bem, quando eles chegaram por aqui, havia apenas os indígenas, logo as diferenças evidentes entre ambos os grupos eram tão grandes que, diante dos sustos recíprocos, deve ter sobrado pouco espaço para graça. Tudo bem, a nudez de uns e o excesso de roupas dos outros podem ter se traduzido em dedos apontados para lá e para cá e risinhos de canto de boca. Imagino que o português só tenha virado piada depois de o país ter alcançado uma vida urbana mais intensa, quando os escravizados já eram uma parte substantiva da população.

Galindo, professor, tradutor e escritor, em seu livro “Latim em pó” defende que o “brasileiro”, nosso verdadeiro idioma, nasceu de uma mistura do português de Portugal do século XVI com as demais línguas que por aqui circulavam, em particular as indígenas e as africanas. Ele acaba por concluir que o brasileiro é o pretoguês, reforçando a influência africana no nosso modo de falar. Se é assim, enquanto nossa língua se distanciava do português castiço, o sujeito verdadeiramente brasileiro que se estabelecia passou a ironizar o colonizador. Da ironia à piada e dela ao preconceito é um pulo.

Apesar do perigo em errar a dose, é difícil não rir de um estrangeiro, que, a bem da verdade, nem precisa ser de outro país. Nasci no interior de Minas e em cada uma de minhas mudanças convivi com ironias e gozações. Quando fui para Belo Horizonte, brincavam (estou sendo suave) com meu “erre retroflexo”; ao chegar ao Rio, com meus excessos de “uais” e “nossas” e “virgens marias”. Mesmo hoje, vira e mexe alguém aponta alguma de minhas notas dissonantes ao ouvido carioca. É do jogo.

Fui fazer um curso em Madri e, num fim de semana, eu e um colega chileno conseguimos uma viagem bem barata para Lisboa. Ficamos dois dias por lá, tempo suficiente para conhecer um pouco da cidade, comer uma boa bacalhoada servida por um garçom goiano e ouvir uma apresentação muito triste de fado. E, claro, para enfrentar as diferenças — bem além da língua — entre o português e o brasileiro. Perguntei a um taxista aonde ia o trem que passa sobre o Tejo. Ele me corrigiu: “O comboio?” Concordei. Ele então respondeu à minha pergunta: “Ora, pois, para o outro lado, mas depois regressa”. O chileno, que não falava bulhufas de português, caiu na risada. Isso de compreender sem entender acontece. Na Alemanha, eu sabia exatamente se meus amigos mantinham conversas amenas ou não — e desconfiava de quando caçoavam de mim. Seja como for, e voltando a Portugal, a beira do Tejo era o ponto das baladas. Fui ao banheiro de um dos bares, e todas as piadas que fazemos com os portugueses estavam pintadas (não pichadas ou rabiscadas) nas paredes, com um detalhe: os personagens tacanhos éramos nós, os brasileiros.

Um funcionário do instituto de estatística da Espanha veio fazer uma consultoria na área em que trabalho no IBGE. Um dia o levamos para almoçar num local mais ajeitadinho. Escolhemos um restaurante mineiro, de que, aliás, ele gostou muito, achou a comida parecida com a espanhola. Cerveja aqui, caipirinha ali, ele, mais solto, afirmou que na Espanha a mulher ideal era a dinamarquesa; em Portugal, a polonesa; na Alemanha, a espanhola (posso ter trocado as nacionalidades, mas o espírito era esse). Dito isso, quis saber qual era a mulher ideal para o brasileiro. Um gaiato gritou lá da ponta oposta da mesa: “A do outro”. O espanhol gostou tanto da resposta que passou a contar a história, agora anedota, em seus cursos. Sei disso porque fui aluno dele logo depois. Quando viajei para fazer o curso, levei-lhe de presente uma boa cachaça. A primeira pergunta que me fez foi se poderia colocá-la no congelador, feito uma vodca. Não tinha ideia, mas ele, passado um tempo, me disse que colocou e ficou muito bom.


Obra de Goya



Esse espanhol, Manuel, seu nome, teve disposição para passear comigo por Madri. Fomos ao Museu do Prado, que ele conhecia em detalhes graças à sua mulher, ex-funcionária de lá. Diante de cada obra, meu anfitrião discorria sobre o período em que ela foi criada, a técnica utilizada, dava alguma palavrinha sobre a biografia do artista, em particular de sua relação com o poder, ilustrava, enfim, os Velázques, Rubens, El Greco espalhados pelo salão. Uma hora, no entanto, a voz de Manuel sumiu, deixou de me alcançar: havíamos chegado à parte em que estão as “pinturas negras” de Goya, obra que ele, já velho e, sem sair da Espanha, vivendo uma espécie de exílio, pintou no reboco de sua casa (na Quinta del Sordo). Diante delas, fui perdendo o interesse por tudo fora do meu campo de visão e audição. Um estrangeiro, morto fazia muito tempo, me cobrava uma compreensão do mundo distinta da que eu tinha. Goya parecia me dizer que no mundo, no mundo ideal, não haveria fronteiras. Caminhamos em sentido oposto.

23.9.23

Em busca do ouro

 Na classe média estamos os nem lá nem cá, muitos cobiçando o andar de cima, oásis da opulência, outros de olho no de baixo, para onde não querem voltar ou despencar. Diríamos que somos um aglomerado desigual e propício a intensa e merecida piada.

Sonhamos com a Disney e, se conseguimos chegar lá, somos vistos como verdadeiros patetas, a tal ponto que, aqui e ali, nos repreendem. Vocês são muito novos para se lembrarem de Pepeu Gomes e Baby Consuelo barrados no parque. Mickey e seus amigos consideraram a figura do casal roqueiro — cabelos e roupas bem coloridos, uma bobagem aos olhos de hoje — muito chamativa, capaz de roubar a atenção dos demais frequentadores. Tem cabimento usar Pepeu e Baby como exemplo da classe média? Não se iludam, pertencem a ela tanto quanto eu — e talvez você — e podem ter ganhado algum dinheiro, mas, sei lá, nunca permaneceram na lista dos mais tocados, nem daqueles que batem ponto nos programas de auditório badalados. E ainda se separaram, e ainda tiveram muitos filhos. Além do mais, a classe média é um território bem extenso, bastante habitado e com diferenças gritantes entre os quase ricos e os por muito pouco fora da pobreza.

Em 2015, a Piauí publicou uma reportagem do escritor norte-americano Walter Kirn. É um texto típico do que se convencionou chamar de jornalismo literário, uma peça que conta a história aos poucos, enchendo-a de pormenores saborosos que, não raro, esclarecem os interesses do jornalista ao contar aquilo. No caso, Kirn resolve levar um cachorro — que, depois de um atropelamento, ficou paralítico e só conseguia andar com um carrinho que lhe era acoplado à parte traseira do corpo — de Montana à cidade de Nova York para entregá-lo à pessoa que o adotou: ninguém mais, ninguém menos que um Rockefeller. A estranheza de um milionário (não um qualquer) se interessar por um cachorro que lhe daria muito trabalho e talvez tivesse uma vida curta motivou o escritor, que viu nessa história material para um possível novo livro. Na verdade, o Rockfeller não era um Rockfeller, e sim um golpista que, não se sabe muito bem como, vivia em altas rodas sem ser desmascarado e mantinha peças de artes caríssimas (Mondrian, Motherwell, Pollock e Rothko). Mesmo achando o sujeito excêntrico, Kirn manteve uma relação (até mesmo uma amizade) com o golpista de 1998 a bem depois, sem desconfiar de suas trapaças. Em 2013, a farsa do milionário veio à tona. Descobriu-se que muitos anos antes ele havia cometido um crime. A reportagem não esclarece como o alemão (sim, era um estrangeiro) chegou tão longe, quer dizer, como deixou o anonimato da classe média e tornou-se um rico de pedigree, nem rico, nem com pedigree. Conheço histórias não desse quilate, mas com o mesmo princípio. Na minha cidade, havia um homem, pai de amigos, que certa vez vendeu um terreno em Belo Horizonte, e o comprador só se deu pelo golpe quando, indo registrá-lo, descobriu que sua nova propriedade estava submersa na Lagoa da Pampulha. O meu conhecido não foi exitoso como o alemão, mas nunca se emendou e viveu tentando dar o pulo do gato, sem, contudo, conseguir deixar o porão onde se amontoa a ralé dos remediados.

Em tempos de internet, além dos golpes virtuais, há outros meios de alcançar — ou pelo menos de tentar — a riqueza. A classe média sabe ocupar um espaço honesto, mesmo aqueles que os falsos moralistas apedrejam sem dó. Soube ainda esta semana de uma moça muito jovem que, vendo-se em apuros financeiros, começou a obter likes de homens e mulheres em sites adultos. Não é a única que se aproveita da imagem, mas ela vai além e se exibe transando com parceiros de ambos os sexos, o que também não é uma grande novidade. Ela inova ao abordar homens na rua e perguntar-lhes coisas assim: “Tapa ou beijo?”; “Dois reais ou um presente secreto?” Isso foi considerado abusivo e gerou uma campanha de cancelamento contra ela. Apesar disso, ou exatamente por isso, seus seguidores em redes sociais nas quais é possível compartilhar conteúdo erótico só têm aumentado. Hoje ela estaria faturando algo como cem mil reais por mês.

A classe média tem aqueles que não dormem no ponto. Com astúcia e sorte, podem dormir na cobertura da pirâmide da distribuição de renda, mas, presos ao destino irônico, quase sempre amanhecem na pindaíba de sempre — ou mais além.

11.9.23

Viajando na maionese e na abobrinha

Não faz muito tempo, li “Madame Bovary”, de Flaubert. O autor e o editor da revista em que o romance foi publicado tornaram-se réus porque, aos olhos de seus contemporâneos, o adultério – feminino, se fosse o masculino estava tudo certo, sabemos bem disso – teria ganhado certo glamour naquelas páginas. Não é bem assim, quem leu sabe o fim da intensa Emma, a madame. (Espero que essa pequena confidência não seja vista como spoiler e afaste possíveis leitores.) Não vou analisar ou fazer uma resenha do “romance dos romances”, pois não tenho interesse nem os apetrechos exigidos pela empreitada – sou apenas um leitor amador. Trago-o à tona porque fiquei pensando se nosso “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, não seria um “Madame Bovary” do ponto de vista do monsieur Bovary, que, como todos sabem, inclusive quem nunca leu o livro, é um corno. Corno manso, devo acrescentar, na esperança de atrair novos leitores ao romance francês. De quebra, também ao brasileiro.

Retomei uma leitura de muitos anos atrás e dessa vez fui com ela até o fim: “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso, um livro e tanto, no tamanho (umas 500 páginas) e na qualidade. Quando vejo autores contemporâneos explorando, num mesmo texto, vários narradores, fico pensando que um dos que mais souberam fazer isso foi esse mineiro de Curvelo. Desse ponto de vista, ele é um mestre, e a obra um primor. Mas Lúcio Cardoso (não sei se por pressão externa de pré-leitores ou do editor, ou se interna, a pior delas) não manteve sua história no extremo. Quando nos acostumamos com o fato de o clã dos Menezes ter cruzado a fronteira da moral burguesa, a trama recua e nega o horror, bem, isso até onde seria possível negá-lo naquela altura do romance. No prefácio da publicação comemorativa de quarenta anos da primeira edição, lançada em 2000 pela Civilização Brasileira, André Seffrin diz que “se o último capítulo dilui e desfibra boa parte da tensão e do enigma que o livro encerra, e se no todo a narrativa deixa transparecer um engenho demasiadamente literário, estes detalhes são infinitamente pequenos ante o poder extraordinário da poesia que se levanta destas páginas”. Concordo, e isso me faz pensar no que seria um bom romance. Na realidade, não sei, mas anoto que pelo menos uma – quem sabe duas – de suas partes deve ser muito boa: a história, o texto, a estrutura... ou a coragem de quem o escreve. Flaubert é corajoso. Machado de Assis é corajoso. Lúcio Cardoso é corajoso. Clarice Lispector, Carolina Maria de Jesus, Hilda Hilst, Maria Valéria Rezende são corajosas. Viva a coragem, mesmo aquela – ou principalmente ela – que não tem nada de clara e triunfante.

Troco o assunto literatura por um ameno: comida, que, aliás, dá título a esta crônica em que uso maionese e abobrinha para expressar uma conversa inconsequente, meio à deriva. Sem querer armar confusão, afirmo de forma contundente: a segunda melhor comida do mundo é o pão de queijo. Não os deixarei sem saber qual é a primeira, claro. Num texto em que dei até spoiler, vou esconder uma coisica à toa? A melhor comida do mundo é o pão de queijo da Nilzinha.

Não há comida sem bebida, mesmo os médicos dizendo que é melhor não misturá-las durante as refeições. Olha só, médico nenhum me disse isso, mas essa “verdade” zanza por aí muito antes da existência da internet. Essa, sejamos sinceros, só dá celeridade a assuntos candentes, que despertam apenas o nosso – reles rudes, giróvagos mesmerizados – interesse. Me lembro que em tempos pré-redes sociais uma de minhas irmãs foi convencida de que o jeito mais fácil de emagrecer seria comer com uma colher pequena. Ela adotou a estratégia e, de fato, emagreceu, mas não naquele momento, e sim muitos anos depois, quando já havia abandonado a tal colherzinha, deixado de comer doce e virado rata de academia. Ela é enxutinha agora, passados uns tantos anos após ter recebido a preciosa dica. Se estivéssemos entre 2020 e 2022, interstício do nosso aprisionamento, chamaríamos aquela divulgadora da ciência para nos dizer se a dieta do talher miúdo é comprovada e eficaz, mas, agora que ela cutucou até Freud, parece mais sensato deixá-la de lado e mudar de assunto.

Aliás, não vou mudar de assunto, e sim fugir do enorme parêntese em que me meti. Eu ia falar de bebida e acabei expondo minha irmã e desferindo indelicadezas contra quem eu nem conheço. Falemos de bebida. Não sei se vocês tomam, assim na maciota, um drinquezinho ou uma cervejola. Caso não bebam, não vou aconselhá-los a beber, haja vista que o álcool faz um mal danado e não raro leva ao vício – o que está comprovado, mas há de se pesarem os prós e os contras, pois, nas pesquisas divulgadas até a semana passada, o vinho tinto chileno é visto como um elixir cardíaco. Se você, correndo os riscos do vício e da cirrose, toma um gole aqui e outro ali, preciso dizer o seguinte: beba água entre uma talagada e outra. Não sei se está provado pela ciência – ainda que minha irmã, aquela da dieta, tenha visto na internet que sim –, mas, no meu caso, atenua bem a inevitável ressaca.

26.8.23

A fuga do espelho

Tenho estado com pessoas com quem só me relacionava pela rede social. É incrível, elas existem. Uma tem nariz bem torneado, o que não quer dizer que seja bonita; outra, orelha grande, o que não quer dizer que seja feia. Tem aquela cuja beleza não passa de um filtro; e aquela que é alta – como eu poderia imaginar? Uma, apesar de poeta, de boa poeta, é chata. Já outra, coitada, péssima no verso, na prosa, na piadinha que faz para agradar, é uma simpatia sem fim.

Continuamos tridimensionais, no corpo, e complexos, na essência. Não deixa de ser uma esperança. Afinal de contas, o mundo das redes é um sugador insaciável de nossa humanidade e, se é forte dizer que nos escraviza – melhor deixar a palavra para o que ela de fato representa, a exploração aviltante do trabalho, o uso do castigo físico e o rapto da liberdade –, cabe dizer que nos torna dependentes. Um vício. Injeta-nos uma droga que, antes de destruir o corpo, destrói a cuca. Sem um like, não vivemos mais e, para conquistá-lo, caprichamos nas fotos e escondemos as complicações.

Nos livros, encontramos personagens bastante intricadas, mas elas estão presas a determinadas situações, que se repetem a cada leitura. Raskólnikov, de “Crime e Castigo”, não pode marcar um encontro com um dos leitores, desabafar, contar de seus planos de crime e, quem sabe, ouvir o outro e recuar da jornada de autodestruição e castigo. Tampouco Dmitri, o mais velho dos irmãos Karamázov, consegue abandonar sua existência de palavras e, pedindo que lhe paguem um chope, quer dizer, uma vodca, dialogar com quem, por ser mero espectador de seus dramas, é capaz de alertá-lo de que só se amassa o pão depois de colhido e preparado o trigo. Cito dois personagens de Fiódor Dostoiévski por ser ele um autor conhecido por criar personagens mais humanos do que qualquer um de nós.

Na rede social, somos as personagens. Eu faço o bobo; fulano, o militante; a universitária, a sedutora; o rapazote, o poeta romântico; o tiozão, o defensor dos bons costumes – todos lineares e em busca de uma dose de like. Mas é possível que, num chope, eu não seja tão bobo assim e o tiozão, na terceira tulipa, nos revele que, não sempre, mas também não em tão raras vezes, dorme de conchinha com um sobrinho ocasional.

Se o romance é um espelho que, ao nos refletir quase em minúcia, nos assusta, a rede social é um espaço sem meio-termo, de onde o contraditório (não confundir com treta) foi expulso. No romance, o autor torna complexo o já complexo; na rede social, enxuga-se o simples até que só lhe reste o simplório.

14.8.23

O fim de tudo

 

Há muito tempo eu escuto esse papo furado / dizendo que o samba acabou / só se foi quando o dia clareou (Paulinho da Viola)


Ora acabam com o samba, ora com o conto, com a literatura, com a história. No entanto, meus amigos, o que vai acabar é o mundo, mas até lá nosso assombro, cuja voz é a música, a literatura, a escultura, a pintura, o cinema, a ciência, continuará se manifestando. Portanto não passa de um novo alarme falso o fim da crônica anunciado por Julian Fuks em sua coluna no UOL. Segundo ele, a pressa dos dias de hoje justifica essa morte. Não a pressa de todos, ele esclarece (ou imagina esclarecer), mas a do leitor. Ó, meu deus, a pressa está aí pelo menos desde a Revolução Industrial, claro que se ajustando às novas tecnologias. Ela nada mais é do que a subtração do nosso tempo pelos perrengues da sobrevivência, portanto a gente se adapta a ela não é de hoje. Alguns afoitos leem, no entanto a maioria nunca leu nem vai ler. Assim é a triste realidade.

O tique-taque comeu, sem mastigar, o tempo medido pela posição do sol, pelo desenho da sombra, pelas manifestações do estômago, e essa aceleração não destruiu nada que chamamos de arte, ao contrário, o romance – esse colosso que já teve mil, mil e quinhentas páginas, reduzidas hoje, na pressa de todos, inclusive dos escritores, a no máximo duzentas, com raras exceções – frutificou ali. Agora o vapt-vupt engoliu o tique-taque, e, graças às descobertas e inventos atuais dos tempos velozes, viveremos uma vida longa – morrendo, no entanto, mais novos do que nunca – e, como não?, produzindo arte e ciência. Portanto sejamos menos alarmistas. Quem dá as costas à literatura ao rés do chão é a grande imprensa. A crônica, que nasceu num cantinho sem proveito do jornal, foi expulsa dele. Sobra um Joaquim Ferreira dos Santos aqui, uma Martha Medeiros ali. Mas, em meio ao menosprezo, surge, na cabeça apaixonada e sábia de um jovem paranaense, essa Rubem, que dá guarida a mim e a outros onze cronistas (sem contar os que já contribuíram com ela), alguns inclusive com passagem pelos jornais. O Rascunho, publicação literária já longeva, mantém cronistas entre seus colunistas e, recentemente, o prêmio Jabuti abriu distinção ao gênero, o que sugere que se têm escrito livros de crônica.

Enquanto houver pobreza, haverá crônica. Enquanto houver histórias de amor, haverá crônica. Enquanto houver uma tristeza ou mesmo uma alegria sem motivo, haverá crônica. Tédio? Crônica. Ironia? Crônica. Um sujeito dado a caminhadas pela rua é um potencial cronista. Uma mulher tomada por uma lembrança erótica é uma potencial cronista. Um saudosista pode ser um cronista, ainda que chato. Uma atendente de petshop precisará apenas de um empurrãozinho (do talento) para escrever crônicas contando aonde chegou nosso amor pelos animais domésticos, sem se esquecer dos excessos por conta desse amor.

A crônica não acabará, assim como a história não acabou com o fim da Guerra Fria. Nosso problema é outro: se não cuidarmos do mundo – mantendo florestas em pé, esfriando o planeta um bocado, distribuindo a riqueza –, é certo que, pegos no contrapé, não teremos nem tempo de escrever a crônica do fim de tudo.

30.7.23

O líder

O assunto é futebol.

Até a rodada da semana passada, o Botafogo liderava o campeonato nacional masculino com onze pontos na dianteira do segundo colocado, isso depois de dezesseis rodadas (de um total de trinta e oito). A campanha não tem paralelo na era de pontos corridos: treze vitórias, dois empates e uma derrota. A coisa pode mudar? Sim, mas os fatos são esses.

Não é tanto o futebol o assunto de que trato agora.

Ao Botafogo está grudada a pecha do sofrimento. Feita uma menção ao clube, logo levantam a voz para falar do chororô, remetendo a um jogo contra o Flamengo em que a torcida alvinegra imputou o resultado (a vitória rubro-negra) à mão grande do juiz. Mas não só. Se entre os anos de 1950 e 1960, o Botafogo era, ao lado do Santos, a grande potência do esporte, a partir daí despencou. Ficou sem ganhar um campeonato carioca por vinte anos; depois de 1968, só em 1989. E faturou apenas um nacional, em 1995, ainda na época do mata-mata, quando derrubou o grande rival dos áureos tempos. Não bastasse isso, desceu três vezes à segunda divisão, tendo voltado à elite sempre um ano depois, como vice-campeão em 2003 e como campeão em 2015 e 2021.

Esse cenário de um deus chafurdando entre os mortais explica a tal sofrência do “Glorioso”, que “não pode perder / perder pra ninguém”. (Nos dias de hoje, o hino seria feito não por Lamartine Babo, mas por um desses sertanejos universitários. Pelo menos isso não aconteceu, há de se comemorar.) Mas é preciso ver a trajetória do alvinegro carioca com olhos voltados para além das quatro linhas (as quatro linhas aqui são o que são, ou seja, não têm nada a ver com aquela metáfora surrada da extrema direita). O Botafogo, sofrido, se confunde com o Brasil. E essa identificação é tão clara que não há quem o odeie. Numa espécie de autoironia, brinca-se com a sua situação, faz-se bullying com seus torcedores, mas a verdade é a seguinte: se o clube sai da zona do sofrimento, todo brasileiro sai um pouco também, logo, o sucesso da Estrela Solitária é a chance de redenção do país.

Não é à toa que, quando o Brasil tira um dedo da lama – sabemos que a lama ainda nos segura e continua alimentada por água e terra que não acabam mais –, o time do chororô assuma a liderança do campeonato. O paralelo vai além: o sucesso do Botafogo passa por uma aliança estranha: o dinheiro de um gringo (o Botafogo foi um dos primeiros clubes a se transformarem em sociedade anônima do futebol, SAF) e os pés de um monte de jogadores – os que têm feito a diferença no ataque, paraibanos – que rodavam pelo mundo em clubes médios ou pequenos. É a tal coalizão. 

Talvez a taxa de juros caia e o emprego aumente, talvez nossas dívidas sejam renegociadas e a economia aqueça, talvez o negacionismo regrida e a ciência triunfe, talvez a Amazônia, o cerrado e a mata atlântica passem a ser respeitados e preservados. Se nada ainda é líquido e certo, o clima menos sombrio acende a esperança de dias melhores. Sendo assim, é justo que o campeão seja aquele que sofre em nome de todos. Somos todos Fooooogo.




15.7.23

CM e a rapadura

Carlos Magno, na certidão de nascimento e na esperança familiar de se tornar um grande homem; Classe Medião, como, depois de homem feito e cheio de história, o descreveria aos pais um novo amigo do filho, encantado com tantos brinquedos e aparelhos eletrônicos existentes na casa dos vizinhos recém-instalados no prédio; mas foi como CM que ficou conhecido. O senhor CM. O parça CM. Papi CM. CM, meu amor.

Na infância, carregou caixa de engraxate, negociou passarinho, fez uns pequenos furtos. Depois foi trabalhar na loja de esporte do seu Kalu, de lá arrumou um emprego num banco privado e, por milagre – opinião de sua mãe, baseada no fato de nunca ter visto o Carlinhos (pra mamãe não tinha essa de CM) com um caderno na mão –, passou num concurso do Banco do Brasil. Foi mandado para uma cidade distante. Não sendo conhecido de ninguém, fez do emprego um cabide para favores de toda sorte. Favores, diga-se de passagem, que custavam aos beneficiários uns bons bagarotes.

Quando visitava a mãe, levava-lhe presentes. Filho atencioso, está muito bem no serviço público, comentava envaidecida a senhora. De fato, estava, só que o recheio de sua conta tinha pouco a ver com o salário mensal. Bastava compará-lo a um colega mais ou menos contemporâneo para constatar isso. O outro estaria bem, mas ali no limite, e bastava um sopro nos ares da conjuntura para consumir sua poupança, fazê-lo tirar o filho da escola particular ou voltar a tomar a cerveja barata ou mesmo deixar de tomá-la. Já CM nem se preocupava com cenários econômicos, micro ou macro.

Assediou a moça bonita, filha de uma autoridade importante do município, e foi correspondido. Casamento, filho, construção de uma casa confortável. Um monte de amigos. Depois a transferência para a cidade grande. Quando se instalou no prédio de bairro nobre, aconteceu o caso que lhe custou a alcunha de Classe Medião. Ele achou foi graça, era isso mesmo, mas que não o chamassem assim, pois era CM. Para o filho. Para a mulher. Para a mãe; não, pra ela, não. Para os clientes vips. Nas reuniões de condomínio, à boca pequena, o chamavam do apelido que lhe desagradava, mais por pilhéria que por maldade.

Ah, a vida na capital. No início, o deslumbre. Almoços caros, bares da moda, uma amizade colorida. No entanto os arranjos do banco tornaram-se mais difíceis; difíceis, não, impossíveis. Lá no interior, os favores lhe eram pedidos e já chegavam com o orçamento definido. Era pegar ou largar. Ele sempre pegou, porque ser trouxa não era de seu feitio. Mas na capital... Deveria se oferecer? Desenrolo aquele pedido de empréstimo em troca de um pequeno agrado. Faço sua assinatura subir para o gerente agora. Sumo com essa ficha meio suja. Cidade grande, gente miúda. Vai que todo mundo ali fosse honestíssimo? Ou que o jogo fosse maior? Que ajuda em empréstimo coisa nenhuma, a questão era ocultar umas exportações, usufruir de um câmbio especial, dar um calote sem pena nas contas do governo.

CM foi vendo o dinheiro minguar e a timidez crescer. Não era desses, o que se passava? Veio então o vento outonal de uma crise econômica, e o sortudo bambeou as pernas. Prudente, dispensou a amiga. Mais adiante, a empregada. Tirou o filho da escola privada, notícia recebida com ironia no condomínio: “Agora é o Classe Medinha”. Não ficou muito mais tempo no apartamento caro e bonito, deixando para trás aluguéis, taxas e impostos atrasados. Foi morar longe e começou a economizar nas refeições, a descolar umas caronas para não enfiar o salário todo no transporte urbano. A mulher se mandou para a casa dos pais, lá na cidade do interior, e logo entrou na justiça cobrando-lhe uma pensão pra lá de escorchante.

Conheceu a solidão da pessoa sem dinheiro. Maldisse seu infortúnio e deu de beber. Um dia, embalado pela cachaça (das baratas, nada de luxo), pegou um papel e escreveu: “Sou o lateral esquerdo – ou talvez o beque central – ou talvez o quarto zagueiro – ou talvez o lateral direito – ou todos eles, incluindo o cabeça de área – de minha defesa devassada”.

Seria poeta, decidiu com a certeza do borracho. Escreveria umas coisas aqui, outras ali e, para não perder o hábito, roubaria uns versinhos. Ninguém notaria, afinal quem lê poesia nesse mundo? Se viu recitando seus versinhos nos programas vespertinos de televisão. A fama logo se traduziria em grana. Estava quase feliz com seus devaneios quando o pileque passou, deixando, ainda, a maldita ressaca no descontrole de tudo. Nessa hora, ouviu a mãe dizendo aos vizinhos: “o Carlinhos, coitado, entregou a rapadura”.



3.7.23

A mesa vizinha

Passáramos (o escritor moderno talvez prefira escrever “havíamos passado”, mas há pássaros em passáramos, e eles acabam de pousar bem aqui) o dia indo e vindo entre o velho e o novo apartamento de meu filho e minha nora. Levávamos a parte miúda da mudança: roupa, talher, louça, material de limpeza, livros, mas também duas televisões grandes e até o tampo da mesa de jantar, de vidro, frágil. Terminada a tarefa, fomos deixar o carro na locadora e encontrar um bar para molhar as palavras, estancar o suor, jogar conversa fora, enfim, essas coisas nomeadas de um jeito a não escancarar o fato de que fomos beber. Comemorávamos a casa nova, o sucesso do nosso trabalho, o fato de termos passado o dia juntos.

No bar, sentamo-nos ao lado de uma mesa ocupada por quatro mulheres. Duas mais velhas, uma intermediária e uma menina de uns dez anos, no máximo doze. Conjecturei que era uma família e apostei que a criança estava acompanhada da bisavó, da avó e da mãe. Depois eu soube que não, eram as suas duas avós, a materna e a paterna, e sua mãe. Como eu disse, quando chegamos, elas já estavam lá e, digo agora, de lá saíram no mesmo momento que a gente. Venci a timidez quando esperávamos a condução. Aproximei-me da mãe da menina e perguntei sobre o parentesco (pelo menos essa curiosidade eu não carreguei).

Ainda no bar, elas fecharam e reabriram a conta algumas vezes, quase sempre pediam mais três chopes, embora uma das senhoras tenha passado a tomar refrigerante a partir de determinada hora. Ou tenha tomado um refrigerante e, em seguida, voltado ao chope.

A menina, que estava de costas para mim, foi quem prendeu minha atenção. Enquanto as mais velhas tagarelavam, como é o esperado em mesa de bar, ela jogava no celular, o que passou a ser habitual nos dias de hoje. Ao olhá-la batucando a tela, notei suas unhas, eram enormes e carregadas de esmalte carmim. Mais tarde, quando ela se levantou e pude vê-la de frente, percebi que estava maquiada de um jeito que nem mesmo em moças mais velhas, adolescentes e jovens tenho visto.

A menina, ao estar caracterizada como adulta, parecia presa ao passado e, agarrada ao eletrônico, ao futuro – que já é presente, mas, em perspectiva, está bem aquém do que será em breve. As outras mulheres também davam sinais ambíguos. Falavam o que eu não conseguia captar – e nem queria, afinal, estava com os meus celebrando um dia produtivo –, mas houve uma hora em que a mãe da menina, filha de uma senhora, nora da outra, usou uma expressão bem masculina para falar de uma atitude tomada certa vez: “meti o dito-cujo (não foi bem essa palavra, mas uso-a para não ferir o pássaro que voou sem sentido algum no início da crônica) na mesa”. Não é raro eu ouvir mulheres usando expressões assim. Tudo, inclusive a linguagem, anda mais complexo do que imagino.

Saio pouco de casa, talvez por isso tenha me encantado, melhor dizer – sem querer me proteger de um possível julgamento –, me assustado com aquela mesa. Não deve ser nada diferente nos muitos botequins da cidade, é que perdi a cancha, a malícia, enferrujei. Em devaneio, até escuto o pensamento irônico borbulhando na cabeça daquelas mulheres: “Por aí, seu cronista, tu não vai chegar a lugar nenhum, não envelheça tão casmurro”. Casmurro? Eu? Então me respondam: em que alcova andará escondida minha Capitu?

19.6.23

Futuros

 

O futuro começou ontem

Em entrevista a Daniel Prado (BBC News Brasil), o indígena ticuna Alex Rufino contesta a visão de que, após a queda de um avião, a sobrevivência de quatro crianças indígenas em floresta densa da Colômbia teria sido um milagre. Ao se afirmar isso, ele pondera, não se toma a perspectiva de quem nasce íntimo da floresta, portanto protegido por ela. Rufino nos oferece uma sabedoria alternativa, e nela estão tanto o aprendizado corriqueiro (o que comer, como se proteger de animais) quanto a teia espiritual que atua no sentido de dar bom destino àqueles que se encontram à deriva.

Nós, urbanos, perdemos dia a dia o contato com o passado. Nossa sede é de futuro, acreditando que a colheita brota do nada. Estamos ansiosos pela inteligência artificial – capaz, dizem alguns, e não nos importamos muito com isso, de ceifar a vida humana da face da terra –, do mesmo modo com que esperamos o novo modelo do carro ou do relógio que medirá as horas e nosso batimento cardíaco e que talvez nos faça, durante o sono, virar de lado para facilitar a respiração. Nossa fé é que o passado esteja capsulado nas traquitanas do futuro, portanto não precisamos olhar para trás, um tempo esquecível, morto.

Não sairíamos vivos da floresta, mas os indígenas têm sobrevivido não é de hoje ao nosso mundo, que lhes é hostil. Não só hostil, inimigo. Destruímos quase tudo que era deles, cabendo-nos agora, em respeito, deixar-lhes (aos poucos restantes) as terras que cuidam e preservam desde muito antes de uma formalidade constitucional. Podemos ir além, despir-nos de nossa soberba e aprender com a sabedoria milenar que cultivam. Um pouco mágica? Bastante, por isso potente. Na entrevista de Rufino, ele diz que a mãe das crianças indígenas, morta no acidente, espalhou-se em espírito pela floresta e ajudou seus filhos a sobreviver aos quarenta dias.


O futuro terminou ontem

Eu não a conhecia, na realidade, jamais havia ouvido falar seu nome. Portanto o anúncio de sua morte poderia ter me passado despercebido ou me custado apenas o acionamento de um daqueles botões de solidariedade da rede social. Mas não. Um querido amigo, logo de manhã, começou a dividir conosco seu luto, seu abandono. Esse amigo, além de livreiro, é poeta e perdia uma amiga também poeta. Logo, outros conhecidos meus também se manifestaram. A poeta que perdeu o futuro tinha a idade de meu filho mais velho, jovem demais. Eu não a conhecia, repito, mas a dor daqueles que a perderam me feriu igualmente e de tal modo que o dia todo pensei sobre aquela morte. Talvez o fato de ser uma poeta torne pior o que já é terrível – a morte de uma jovem. Morreu uma jovem justo agora que precisamos dos que carregam os grãos do passado até o futuro, assim como os indígenas, assim como as poetas.

5.6.23

Distraído nefelibata

 

Sou um pedestre distraído. Aliás, hoje quem não é um pedestre distraído? A maioria está capturada pelo celular, alguns conversando com a mãe, checando se ela tomou os remédios da manhã, se marcou o médico, outros olhando o nude que fez soar o alarme do zap. Sim, a turma já olha ali na calçada, sem constrangimento, afinal o nu deixou de ser uma coisa privada. Convidado pela amiga, você vai ver a foto do joelho recém-operado do marido dela e se depara não só com aquilo como também com uma enormidade diminuta ou uma pequenez robusta. Tudo na boa. Novos tempos.

A minha distração não é dessa natureza.

Posso, no corpo a corpo da disputa pelos espaços exíguos das calçadas estreitas, me perder numa lembrança. Com isso, diminuo a velocidade dos meus passos e provoco pequenos engarrafamentos de gente. Se me perguntam o que está pegando, sou obrigado a dizer que empaquei naquela procura sem sucesso em que estou metido. Qual, criatura? Ah, aquele disco instrumental d’A Cor do Som, aquele em que o Egberto Gismonti faz uma participação especial. Mas isso é motivo para reter os atrasados para o trabalho ou para um encontro amoroso ou simplesmente fugidos de uma situação perigosa? É verdade, mas, olha, aquele som já me salvou, num sabe? Ninguém quer saber, e, como pedestre não tem buzina, metem a mão na cumbuca do xingamento: seu isso, seu aquilo e seu aquilo outro. Me ajudar na procura, ninguém.

Mas quem me xinga? O autômato do celular. Ele anda com a cara enfiada na telinha e nada o tira dali a não ser quando dá um encontrão num distraído de outra natureza. A minha distração requer paradas para olhar ao redor. Não que eu espere achar algum link do disco tatuado no chão, ou mesmo um CD abandonado ao lado de uma lixeira, não é isso, é que a nostalgia daquele disco, como eu já disse, me remete a situações meio bravas que aquelas músicas me ajudaram a superar. Então eu preciso parar e suspirar.

Falo desse disco porque o procuro, ainda que apenas nas plataformas aquém da pirataria, já há algum tempo, mas minha distração, sempre nefelibata, se alimenta de outras e muitas miudezas. Nudes também, mas não os que estão escancarados nos smartfones da vida. Entre minha casa e o mercado onde gosto de comprar o pão francês, aquela menina que hoje, feito eu, rompeu a sexta década de existência, me aparece adolescente em seu biquini verde-água em torno da piscina em que nos refrescávamos e, olhando uns aos outros, fazíamos planos de gente grande. Planos que incluíam, se não eram apenas isso, sacar a pouca roupa que vestíamos e nos visitarmos com a sem-cerimônia que ainda não tínhamos. Como é possível caminhar objetivamente, cioso da responsabilidade que um cidadão tem para o bom fluxo de todos os demais pedestres, com minha juventude e aquela menina com a qual não fui além do convívio em torno da piscina ocupando a minha cabeça? Ah, os distraídos das redes sociais que me desculpem e adquiram um aplicativo que sinalize a existência de outros distraídos a sua frente e os ajude a não tropeçarem em nós, pobres coitados.

É verdade que os distraídos de uma e de outra natureza poderíamos conviver de forma mais harmoniosa, mas, na cidade do Rio de Janeiro, já se vão uns vinte anos ou mais, um prefeito resolveu alargar ruas e estreitar calçadas. Na época, muita gente aplaudiu, tudo indicava que diminuiriam os engarrafamentos de automóveis. Talvez tenha acontecido, mas, aos olhos de hoje, o melhor jeito de fazer isso é tirando os carros das ruas, que desse modo devem ser estreitadas, forçando assim a que as pessoas procurem o transporte público. Reduzindo-se o transtorno do trânsito e a poluição, com calçadas largas, distraídos de toda espécie circularão mais soltos, enfrentando riscos menores de se atropelarem e com isso saírem no braço.

Exagero ao dizer que um mundo de calçadas largas e ruas estreitas garante a felicidade, mas é um bom passo para irmos nos aproximando dela.

22.5.23

O sol pelo basculante: o consolo da poesia

Caio Junqueira Maciel 


Publicado pela editora Urutau, o livro de poemas O sol pelo basculante, do mineiro Alexandre Brandão traz, entre algumas epígrafes, um verso de Drummond, de “A flor e a náusea”, que diz: “O sol consola os doentes e não os renova.” Se esse poema drummondiano está em Rosa do povo, é dali que busco outro, “Consolo na praia”, para alavancar melhor essa basculante solar do poeta de Passos, agora acariocado.

 Drummond começa seu poema assim: “Vamos, não chores.../ A infância está perdida./ A mocidade está perdida./ Mas a vida não se perdeu.” No livro de Brandão, estruturado em 8 partes, a primeira vem justamente falar da infância, do “Menino de mim”. O poeta fala de seu refúgio numa mangueira, do cavalo trotão e sua “tristeza zaina”, das descobertas sensuais do corpo, da gambiarra vencendo a escuridão.

 A segunda parte, “Coração pequeno”, que também remete à equação drummondiana do coração vasto ou pequeno diante do mundo, Alexandre branda versos que abordam primeira comunhão, circo, celebração com chope, morte e o “pequeno infinito” que é o seu moleque jogando basquete, “enterra seu seus sonhos e/ resgata, na entrada do garrafão/ a fé na vida.” Um poema elegíaco à morte de uma amiga fecha essa segunda parte, em que a partida para o além significa em aceitação do voo.

 “Diminutas sirenes” batiza a terceira parte: aqui a natureza dá suas cartas, com formiga, montanha, peixe, pássaros e até o prosaico pernilongo, o que porta as tais “diminutas sirenes”. Depois, na quarta parte, vem o cortejo dos “poemas datados”, a tensão da pandemia, o poeta diante da única via ou última quimera; o dia contendo mil horas; o cheiro do medo. E há ali um poema de que gosto bem, é “meu canto”, revisitação daquela frase bandeiriana que a poesia está nas estrelas e nos chinelos. Alexandre canta sua havaiana marrom, sem uma das tiras, e, em vez de tirar, põe de vez sua poética no cotidiano e com isso nos consola.

 Na quinta parte, “O azul não é um acontecimento”, contrabalançando com as sombras da pandemia, o poeta exalta o prazer de estar vivo, o amor que resiste ao redemoinho, a busca do sol não obstante haja a “destruição triunfante”. Porém, em outro texto, afirma que é preciso reagir diante das montanhas de medo. Hesitando entre a paralisia do azul e o movimento, o poeta traça seu mapa, inclui ausências e sai em busca dos “Fantoches”, que é o nome da sexta parte. Se a poesia parte do homem, do logos e do cosmos, esse bloco se estica ao mundo, seja Minas, Bagdá, as guerras e as cidades. E as urgências, as urgências com relação às mortes estúpidas provocadas por balas perdidas.

 Na sétima parte, “Aqui e ali do poema”, mesmo sabendo da dificuldade de se escrever poemas profundos, o poeta sabe que palavra poética traz seu sol, é consolo, afaga a alma, traz esperança. É preciso insistir com “palavra verso estrofe”, liberar trovões reprimidos, “alfabetizar a lucidez do infinito.”

 No epílogo, “Fuga em prosa”, mesclam-se os signos da prosa e da poesia. Poetas, crianças, cachorro, cidade. Que cessem os latidos, a caravana da poesia passa e traz o sol que nos consola, todas as vezes que um poeta refaz e renova o necessário ofício de lutar com as palavras.

18.5.23

BH íntima e distante




Morei três anos em Belo Horizonte, entre 1977 e 1979, assim, sempre que volto à cidade, sinto um misto de intimidade e distanciamento. Vivia no bairro Santo Antônio, frequentava primeiro o icônico Estadual Central – projeto de Niemeyer –, depois o Promove da Gonçalves Dias, batia pernas na Savassi e no Centro, visitava amigos, tudo a poucos metros da república que dividia com minhas irmãs e alguns conterrâneos. As maiores distâncias a que eu ia eram, de quando em quando, o Mineirão e, para encontrar um dos meus primeiros amigos na cidade, a Nova Suíça, o que exigia que eu tomasse pelo menos dois ônibus. A área mais central conheço bem, me desloco com desembaraço. Recentemente, novos amigos (graças à literatura) têm me levado à Cidade Nova, à Nova Vista e até a Sabará. Bares de familiares, por sua vez, e já há algum tempo, me oferecem um drinque no Prado (bairro em que se passa o espetacular “O amanuense Belmiro”, de Ciro dos Anjos) e na Lagoinha. Enfim, enquanto percorro os “novos” lugares, busco alongar meus braços para envolver a verdadeira extensão da cidade.

Passei a semana que subtraiu Rita Lee de nós na capital mineira. Minhas saídas foram, na maioria das vezes, para locais que pouco conheço. Visitei um amigo convalescente no Padre Eustáquio, um escritor querido na Cidade Nova, tomei cerveja com outro no Prado e, com o poeta cujo empurrão me jogou nesse mundo da literatura e sua companheira, minha conversa fiel de Whatsapp, comi uma pizza no Carlos Prates.

Durante a pandemia, fui convidado por três amigos, duas escritoras e um escritor, a discutirmos, em encontros virtuais quinzenais, os capítulos de romances que cada um desenvolveria. Jamais imaginei escrever um romance, pois o preguiçoso que mora em mim é um ditador impiedoso. Mas me voltei contra ele e aderi à proposta. Depois de não sei quantos encontros, a maioria de nós chegou a uma primeira versão dos textos. O meu se passa parte em Passos e parte em Belo Horizonte, numa história que se desenvolve entre o final dos anos de 1990 até os dias iniciais da pandemia, período no qual eu estive bem distante tanto de uma cidade quanto de outra. Ao fazer essa opção, fugi daquilo com que tenho mais contato e intimidade e, quando falo do romance, prefiro esquecer o risco de escrever sobre o desconhecido e explorar o motivo de voltar, por meio da literatura, a essas cidades das quais saí, primeiro de Passos, com quinze anos e, em seguida, de Belo Horizonte, com dezoito.

Há uma razão simples e bastante óbvia: não abandonamos o lugar e o tempo em que germinamos. Até os dezoito, vivemos nossos anos mais esperançosos e os mais sofridos. A descoberta do sexo, o desejo de ser adulto, os sonhos de vida, a impossibilidade de conquistar o mundo, tudo está ali. No meu caso, cheguei a essa idade vivendo nas duas cidades de Minas Gerais onde a história do romance acontece.

Especulo que uma outra intenção, pouco clara, terra a ser explorada, ajude a entender essa opção. Os últimos anos, esses em que a incivilidade da direita fez (e continua a fazer) um estrago nas relações básicas entre familiares e amigos, me custaram muito. Me distanciei de muitos mineiros que amo demais, e isso foi o mesmo que ver Minas escapar de minhas mãos. O romance é um jeito de resgatar não exatamente os amigos, mas a mineiridade da qual gosto tanto.

5.5.23

Entrevistas, cantadas e outras coisas miúdas

 

1.

- Você é muito lido?

- Lindo?

- Lido.

- Ah, também não.

 

2.

- Um medo.

- De sarau.

 

3.

Na foto, o turco Mesut Hancer segura a mão de sua filha de quinze anos, Irmak Hancer. O ambiente é de ruína (pedras, concreto, vergalhões e pedaços de móveis à vista), e a menina está morta, estendida embaixo do colchão em que dormia. O pai não a abandona, enquanto as equipes de socorro procuram sobreviventes ou outros corpos.

Faz muito frio na Turquia.

 

4.

Amor, antes de tirar o diabo do corpo, passa aqui em casa. Tem vinho na geladeira e um queijinho da canastra.

 

5.

- Ontem me senti tão brasileiro.

- Foi prum samba, se acabou na feijoada e na caipirinha?

- Não, nada disso, furei uma fila.

 

6.

- Meu filho, você anda comendo muita gemada.

- É que vou fazer um “pode quede”.

- Um quê?

- “Pó de kedis”.

- O quê?

- “Pote quetis.” “Pô, discaste.”

- Seja lá o que for isso, chupa uma balinha, ovo dá um bafo danado.

 

7.

- Como você tem visto a conjuntura?

- Molhando no chuvoso, sendo até mesmo um pouco crochê, me recorro ao chico popular: Deus escreve ovo por linhas chocas.

 

8.

Caminhando pela pista Cláudio Coutinho, um tiê-sangue, aproveitando que não havia ninguém além de mim por perto, pousou num galho e ficou passando o bico de um lado e de outro. Não sei se amolava, limpava ou coçava o bico, mas que o passarinho contou com o fato de que eu jamais o importunaria, nem mesmo tirando uma foto, disso tenho certeza.

 

9.

Beber, bebi. Ficar bêbado, fiquei. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra.

 

10.

Sonhei um poema, acordei sem me lembrar de um mísero sequer de seus versos, mas de sua beleza não me esqueço.

22.4.23

Burnout Cívico

Prensados pelas redes sociais, a gente se vê obrigada a se posicionar o tempo todo, grande parte das vezes sobre assuntos leves ou absolutamente fora de nossa área de conhecimento ou curiosidade. O que pensamos a respeito do ajuste fiscal; da reforma do ensino; da permanência daquele ministro reconhecidamente ficha-suja; do tal novo arranjo do futebol, a sociedade anônima do futebol (SAF); da internação compulsória dessa gente perdida de si que circula pelas cidades; da mudança de sexo na infância; da inteligência artificial? Houve uma época em que, reconhecendo nossa ignorância, procurávamos ler algum artigo para pelo menos entender o que estava em jogo. Agora vem tudo num vapt-vupt de um post, sem contar a lavagem cerebral das mensagens capciosas que pousam na tela do celular – preparadas com o intuito único de angariar devotos a causas escusas.

Estou sofrendo um burnout cívico. Tomo chá de camomila? De cogumelo? Passo a andar de olhos vendados? Me chafurdo na leitura de entretenimento? Ouço apenas os discos da Xuxa? Entro com uma ação pedindo ressarcimento por assédio moral? Me entoco no meio do mato?

Ô Brasil difícil! Melhor pensar que é assim em tudo quanto é canto. Viver em comunidade, por menor que ela seja, significa embates, lutas por espaço; no fundo, disputa de poder. Tudo bem, mas, aqui na terrinha, estamos caprichando. Não é mais uma questão de participação política ou alienação, é o excesso. Sei da importância de ninguém soltar a mão de ninguém, mas, por favor, soltem a minha, preciso sair correndo. Doutor, vou ter um troço.

Corro, mas do Brasil não saio e continuarei a lutar por ele. Só que estou doente dessa contenda na qual entro com a impressão de ser um inocente útil, o zé-mané cansado. Vejo que muitos brasileiros, atrasados, decidiram pelo deixe-o do ditatorial “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Se debandaram para Portugal, Estados Unidos, Austrália, não sei mais onde, com a esperança de fugir de nossas mazelas. Essa turma se esquece de que, num mundo globalizado, o Brasil enviará, via TV, streaming etc., sua dose diária de racismo, homofobia, misoginia e entornará o caldo sujo da injusta distribuição de renda na cara de todos, todas e todes (abraçado à erudição, rechaço o novo pronome, ou, fiel à urgência do agora, abraço-o?). Não se pode esquecer do tio do zap e seu empenho em compartilhar absurdos de toda espécie. De um jeito ou de outro, como o Brasil fincará as garras nos que se ausentaram, cair fora não resolve nada. Pelo menos com isso me consolo.

Então dou de ombros? Bebo o bar da esquina? Todos os bares da rua? Os da cidade? Me caso com vinte mulheres? Assalto um banco? Vou curar berne de bois soltos em pastos abertos pela grilagem no Pará?

Talvez eu melhore fugindo das tretas impostas pelos outros e inventando as minhas. Sertanejo universitário não é nem sertanejo nem universitário. Goiabada é o melhor doce do mundo (seguido de perto pelo arroz-doce), mas nem pensem na cascão, que não chega aos pés da lisa. Os grandes designers criam coisas estupendas, lindas e cheias de sabedoria, mas ninguém até hoje fez nada tão simples e tocante quanto a estrela solitária do Botafogo. Para cada xícara de arroz, duas e meia de água quente; qualquer coisa diferente disso é embuste e má culinária. Não fosse o chifre, o de Capitu em Bentinho, o Brasil nem teria uma literatura nacional. 

Ando me identificando com a galinha-d’angola: Tô fraca!, tô fraca!, tô fraca! Que canseira.