Em
maio circulou pela internet reportagem sobre um dicionário muito particular, o “Casa das estrelas: o universo contado pelas
crianças” (não há notícia de que tenha sido traduzido no Brasil, e o
título é o que consta das matérias). O livro, um apanhado de definições
genéricas, foi resultado do que o professor colombiano Javier Naranjo recolheu
no seu convívio com crianças ao longo dos dez anos em que lecionou numa região
rural de seu país.
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Naranjo, autor do livro. |
Há
coisas realmente surpreendentes. Uma pequerrucha de sete anos, Natalia Bueno,
diz que a igreja é “onde a pessoa vai perdoar Deus”. Imagino que o professor catalogou
essa “definição” sem fazer nenhum juízo de valor a respeito. Já não sei se, ao
sair o livro, a menina não tenha levado um bom corretivo. De seus pais. Do
pároco local. Eu considero a frase um soco nas nossas certezas religiosas, o
que me apraz, não por ser assunto religioso; de fato me apraz tudo que vá
contra qualquer outra certeza. É meu espírito anárquico, e cínico.
Menos
controversa é a frase de Duvan Arnnulfo Arango, que, no alto de seus oito anos,
definiu o céu como sendo “de onde sai o dia”. Com a mesma idade, Leidy Johanna
García afirmou que a lua “é o que nos dá a noite”. Para terminar as citações,
com pitada poética e uma ironia desmesurada, ao definir mãe, Juan Alzate (seis anos)
disse que “mãe entende e depois vai dormir”.
Ao ler
a matéria, me lembrei de Gabriel García Márquez. Se há algo que marque a
literatura do colombiano são algumas das imagens que ilustram suas histórias.
Boi que sobe escada (“O outono de um patriarca”). Borboletas amarelas que
anunciam a presença de Maurício Babilonia (“Cem anos de solidão”). O médico
que, ao auscultar um coração, ouve as lágrimas que o paciente derrama dentro do
peito (“Crônica de uma morte anunciada”).
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García Márquez. |
Por pouco não alinhavo uma teoria. Já ia dizendo que o realismo mágico é apenas uma reportagem de García Márquez sobre as entranhas de seu país, haja vista que os meninos do dicionário são tão realistas mágicos quanto ele. Mas aí me curvei às minhas lembranças de pés quebrados. E Kafka, lá doutra banda? E Juan Rulfo, anterior ao colombiano? E os surrealistas? Não encontro razão, mas, nessa viagem rasa, aportei em Murilo Mendes , ele também cheio de imagens brutas. Num de seus poemas mais conhecidos, uma paródia à “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, ele canta: “Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade/ e ouvir um sabiá com certidão de idade!” E noutro momento, em “O homem, a luta e a eternidade”, seus versos finais são estes: “Um dia a morte devolverá meu corpo,/minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins/meus olhos verão a luz da perfeição/ e não haverá mais tempo.”
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Murilo Mendes, por Guignard. |
Entre
o pensamento bruto das crianças colombianas (e de qualquer outra, na verdade) e
os trabalhos de García Márquez ou Murilo Mendes, há uma linha estendida, longa;
numa ponta, o bárbaro; na outra, a sofisticação, o pensamento profundo e
articulado. Mas pergunte a um escritor, os que citei ou outros, o que procuram.
Aposto um contra mil que todos querem recuperar a criança que um dia foram,
querem abraçar a espontaneidade e a visão assustada e virgem que os pequenos têm.