28.11.19
25.11.19
O estilo sabático
O olhar
perspicaz, é isso que cobram de nós, de nós, os escritores. O meu, falo em tom
de derrota, passa longe da perspicácia, do tino, que é sinônimo de perspicácia,
da compreensão, que é um passo além. Escrevo mais sobre o que não vejo e talvez
nem exista, mas, pontuo com estardalhaço, essa crônica não é nenhum lamento,
autocrítica — que fique, no momento, no campo da política partidária —, nada
disso. O que é então?
Atrasado, bem
atrasado, tive um lampejo e, a partir dele, rabisquei uma teoria. Teoria é exagero,
vou dizer uma coisa que saltou aos meus olhos hoje, um sábado que substituiu o
resto chuvoso da semana por um sol ameno, um sábado entre outros mais de dois
mil que vivi no Rio, a maioria deles no mesmo bairro.
Antes de
anunciar a descoberta — palavra que deveria estar entre aspas, mas, como estou
presunçoso, afinal nunca lancei uma teoria, ainda que, como disse, não se trate
de uma teoria, vou dispensar as aspas —, preciso esclarecer que a tal descoberta
não necessariamente valha para Paris, para os países nórdicos, nem mesmo para a
região amazônica, quiçá não alcance São Paulo ou Niterói. Vou ser mais radical,
não posso afirmar que valha para Madureira, São Cristóvão, no máximo aconteça o
mesmo no Flamengo e em Copacabana, bairros adjacentes a Botafogo, esse pedacinho
da cidade que, segundo li por aí, está entre os mais cults do planeta.
A tese: há um
jeito típico e exclusivo de se vestir aos sábados pela manhã.
Como descobri? Observando
as pessoas e a mim mesmo. No caso masculino, aquela camiseta velha, se não velha,
amarrotada, a que foi usada num chope na quinta e depois ficou na bagunça do
quarto, esquecida de ser jogada na roupa suja, encontra razão para ser vestida
ou mais uma vez vestida. Pressionados a justificar tamanha deselegância, alguns
devem se mostrar preocupados com o aquecimento global, com a necessidade de economizar
água e evitar ao máximo o descarte de água com sabão em pó no esgoto urbano. Não
importa se falam honestamente ou se é só mais uma forma de sair pela tangente, o
fato é que, no sábado de manhã, os homens resgatam a camiseta velha ou amarrotada.
A bermuda escolhida pode até não estar amassada, mas é velha, vê-se pelo
modelo, ninguém mais traja aquele corte, aqueles bolsos, aquele tecido. No caso
do chinelo, deve-se ponderar que os homens de Botafogo (amplio para os cariocas,
sem medo de errar) não o descalçam nem para dormir, portanto, se o sábado
exigisse uma camiseta nova e uma bermuda da última coleção, o chinelo seria
exatamente o mesmo.
As mulheres continuam
cultivando a vaidade, ainda que o mundo dê seus pulos e elas estejam exigindo
igualdade de tratamento no mercado masculinizado, clamando aos céus o amadurecimento
de seus parceiros, dando banana para a caretice de uma sociedade ainda horrorizada
com a pauta multicolorida da sexualidade e tantas outras lutas políticas de suma
importância. Aqui tenho de fazer um esclarecimento. A vaidade da qual falo não
é vazia, doentia, feito aquela que escravizou uma conhecida. Conta-se que
durante a vida toda seu marido nunca a viu sem maquiagem. Se ele tinha um compromisso
muito cedo, ela se levantava uma hora antes e se embelezava, quer dizer, naquele
tempo embelezar era isso. A questão está aí. Hoje a vaidade não se dá pelo
outro — há casos que sim, paciência, é a tal exceção —, a vaidade é um estar
bem consigo mesmo. Nesse aspecto, a mulher não cai na esparrela de vestir-se do
amarrotado. Quer dizer, até veste-se, notadamente nos sábados matutinos, mas sobre
ele joga um lenço, um cinto, um brinco, enfim, um adorno qualquer para dar um
trato à informalidade. E, dessa forma, nessa hora precisa e nesse dia preciso, sai
à rua.
Chego ao ponto:
nas manhãs de sábado — ao menos em Botafogo, repito, não quero ser acusado de
um generalista inconsequente —, circulam as pessoas no extremo de sua
casualidade. Se vamos à feira; se vamos comprar um prego; se vamos procurar um
ramalhete de flores vermelhas ou amarelas ou brancas, tanto faz; se vamos à
farmácia ou a qualquer lugar, até o meio-dia de sábado, nosso traje é casual, com
ou sem um toque de vaidade.
Sábado cedo é o dia e a hora em que a rua parece
uma passarela de almas dedicadas à verdade. Por pouco não caminhamos nus, e é
certo que estamos lindos.
17.11.19
11.11.19
Conversa mole
aos Escritores de Ressaca
Tudo acontece nos grupos de Whatsapp, o que não é novidade para ninguém. Todos ou quase todos estamos ou já estivemos num daqueles alimentados em velocidade estonteante. Conteúdo? Muito “bom-dia”, “Deus te guie”, nada além. Não reclame, há piores. A fábrica de fakenews, o desfile da rudeza, o suspiro e o gemidão insistentes da pornografia, tudo encontrou no aplicativo que está destruindo a chamada telefônica o local ideal de reprodução.
De todo modo, há horas engraçadas e/ou interessantes perdidas nesse museu de nossas podridões. Tenho um velho conterrâneo que toda manhã envia uma espécie de oração, não, não é oração, é uma reflexão, um texto que os menos incrédulos ou os mais esperançosos leem e se sentem bem, fortalecidos. Não é o meu caso, mas tudo bem, é melhor isso do que um cartãozinho com passarinhos piando “boa semana, coração”. O mesmo amigo, passado o meio-dia, dispara o envio de fotos de mulheres nuas, que chega ao infinito nas sextas-feiras. Acho engraçada a situação, apesar de quase nunca ter paciência de ler o texto matinal e de checar as imagens vesperais.
Há um grupo feito especialmente para alguns escritores nos socorrermos uns aos outros quando somos atacados por aquela dor de cabeça que os porres — não os “de vinho, de poesia ou de virtude” à moda de Baudelaire — causam. As prosas são sempre inconsequentes, amáveis, o que não impede de às vezes algum de nós entrar na hora errada (de pileque e não de ressaca) e distribuir meia dúzia de sopapos virtuais à revelia. Tudo perdoável à luz de São Drummond de Lispector Ramos.
Nesse grupo, há poucos dias, levantou-se a “teoria” de que Joyce, recluso para escrever seu romance mais famoso, verdadeira bomba sobre os alicerces da literatura, não encontrava um bom título. Já em desespero, ele ouviu, de um cômodo contíguo àquele em que estava, alguém perguntar: Ouvisse? Foi o que bastou, o título do livro estava ali: Ulisses. Sim, amigos, a troca de mensagens entre escritores que podem, hoje ou amanhã, abocanhar os prêmios literários mais importantes do país, quiçá do mundo, desce a esse nível. Ou a níveis ainda mais baixos, pois, a essa piada infame, emendou-se que Joyce servira de modelo para a velhinha do “A praça é nossa”, aquela que entendia “Ulisses” quando se dizia “ouvisse” ou, como era o mais habitual e motivo dos conflitos envolvendo a personagem, “a camisinha furou” no lugar de “uma vezinha, por favor”.
Ao falar em Joyce, lembro-me de meu amigo Horácio Soares Neto, falecido antes e não por conta do Whatsapp. Pioneiro em informática no Brasil, xilogravurista e escritor, em um de seus romances policiais, acontece de o detetive, caçador e caça, numa hora de aperto, se meter em um hotel de quinta categoria nos arredores da Central do Brasil. O recepcionista, homossexual efusivo, ao se apresentar, diz: “Meu nome é Ulisses, mas pode me chamar de Joyce”.
6.11.19
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