27.2.23

Encontro de escritores

 

A C.J.M. e S.F.

Não sei o que vocês imaginam quando veem uma foto de um grupo de escritores. Eu penso em diálogos profundos, reflexões, críticas que se fazem uns aos outros, além de alguns arranca-rabos. Mas, de fato, não é bem assim, ou, quando um dos escritores sou eu, certamente não é bem assim. Se um dia vier a circular uma foto em que eu e dois escritores mineiros estamos no quase carnaval de fevereiro de 2023, vocês verão que jogávamos botão. A imagem não serve como metáfora sobre a reflexão literária ou o fazer literário, ainda que seja poética, afinal os atletas tinham entre sessenta e setenta anos.

Antes desse encontro, havia jogado botão pela última vez com meu filho mais velho, agora com trinta e três anos. Digamos que ele tivesse dez na época, portanto fiquei mais de duas décadas fora dos gramados de madeira. Isso talvez explique o meu último lugar no campeonato recente. Não foi um vexame, joguei até bem, entretanto, não sei se me elogiando ou me criticando — ou se elogiando e criticando —, o dono dos times e do estádio e anfitrião desse encontro me disse que poeta já sou, mas que, no botão, eu tenho de me esforçar bastante. Preferi me agarrar à parte ligada à poesia, porém, cá com meus botões, não os de acrílico e sim os mentais, já planejo um treinamento forte. Quero voltar lá e, além de me encantar com a variedade de borboletas que circulam pelo jardim, dar uma surra em ambos. Uma surra tão forte que os leve a escrever poemas como aqueles feitos por quem perde um amor.





13.2.23

Uma crônica pungente

 

A crônica, vocês sabem, fala de tudo e mais um pouco. E, quando lhe falta assunto, fala da falta de assunto, numa espécie de terapia a céu aberto. Os assuntos tratados por ela, desde Machado de Assis até meus colegas da Rubem, não têm limite, podendo ser uma reflexão sobre o guarda-chuva, como a de Cássio Zanatta neste ou noutro espaço, não estou certo. Ou um acerto de contas com a memória sobre as tormentas, como fez aqui mesmo e recentemente o Rubem Penz, aliás, em crônica que poderia ser lida como complementar à de Zanatta. Enfim, o cronista escreve sobre o pó da rua ou o do universo. Ou sobre a lama de qualquer galáxia.

Minha memória (vacilante) e meus conhecimentos (parcos) não resgatam, entretanto, nenhuma cujo assunto seja o pum. Peço desculpas aos mais sensíveis –aconselho-os a abandonar a leitura, não lhes fará falta (a crônica, sejamos sinceros, não faz falta a ninguém, mas felizes são os que têm esse textinho mixuruca entre seus principais esteios) –, mas vou escrever sobre o pum.

Nos primeiros cuidados com o bebê começa a estigmatização dessa autêntica e necessária manifestação do bom funcionamento do corpo. “Que pum foi esse, neném?” Daí a pouco, a própria criança passa a rir quando lhe sai o barulho trovejante, de origem desconhecida. Não é raro ver a criaturinha olhar pelos quatro cantos à procura do bicho carrancudo que berra ou zurra ou grasna ou muge daquele jeito. Como tudo se aprende, já nos primeiros anos de escola, o pum passa a ser uma grande porta de socialização. Os “punzeiros” tornam-se populares. Conheço um, hoje avô de família, que sonorizava o hino nacional. Enfim, é mais ou menos nessa época que começam a surgir teorias – que se diga: puro senso comum, sem pesquisa comprobatória. Se é barulhento – portanto, de origem evidente –, não fede e é cômico. Se é silencioso – de evidência questionável (“não fui eu”) –, é puro cheiro e trágico. Na vida adulta, chegam os casamentos e, nessa matéria, um cotidiano de combate e aceite.

A questão é que o pum, coisa tão comum, insisto, passa a ser visto como antissocial, embora, ao que parece, não seja assim em todas as culturas. Na Índia, ouvi dizer, os baixos ventos soariam livres em qualquer ambiente. Me lembro daquela piada de uma família italiana (ah, como são preconceituosas as piadas!) que se encontra num domingo de macarronada na casa em que vive o avô com seus noventa anos e meio tantã. Apesar da decadência, é o patriarca e se senta à cabeceira e, como todo velho e relho, fica alheio à conversa interminável entre os comensais. De vez em quando, ele fica meio de lado. Alguém corre para colocá-lo na posição correta com medo de que ele esteja se desequilibrando. Depois de ser “socorrido” duas ou três vezes, o nono não aguenta e reclama: “mas eu não posso nem ...?” O nonagenário não usa a palavra infantil que tenho usado, preferindo aquela catalogada como palavrão. Bobagem, não existem palavrões, mas, por uma questão pessoal, prefiro ocultá-la dessa crônica que não é daquelas das quais se possa dizer que não fedem nem cheiram.

Recentemente estive em algumas rodas de septuagenários e ouvi a confissão de que, naquela idade, perde-se o controle sobre o pum. As pessoas se sentem constrangidas, afinal é uma vida inteira de repressão e a prova concreta de que, ao envelhecer, não se é mais dono do próprio corpo. Ao mesmo tempo, é uma alegria. É o soltar a franga, o sair do armário de uma de nossas mais básicas funções, talvez a mais reprimida. Aqueles meninos porto-riquenhos, ao cantarem “não se reprima, não se reprima”, bem podiam estar mirando a turma da terceira idade e não a que se despedia da primeira.

A crônica, quando não tem do que falar, do não ter do que falar ela se apossa, repito. Algumas, no entanto, exageram. É o caso desta, que termina aqui para não perder o pouco da graça que tencionou ter.