27.2.21

Puxando assunto

Tendo um minutinho, perca-o comigo, porque estou perdido há mais de hora. Perder-se no tempo significa estar com o pensamento ciciando sem cantar e beliscar o braço da irrealidade só para ver se não estou morto. Então, se você se dispõe a perder um minutinho, pode ser que eu não desperdice os meus, que eu tome prumo, consulte o mapa do tempo e encontre uma praça para boa charla, a partir da qual o improdutivo de minhas especulações aporte num diálogo no mínimo agradável.



Como o diálogo se dará assim, eu escrevo, você lê, é imperioso que eu o inicie. Não é difícil concluir que o assunto virá justamente da pororoca de meus devaneios, mas não importa como começam as prosas, importa que evoluam. Depois de um longo tempo distantes uns dos outros, Nelson, Horácio e eu nos encontramos no Bar Luiz, e o princípio da conversa veio de uma proposta feita à queima roupa por Horácio. Que tal se assaltássemos um banco? Num mundo conectado, ele dizia, nada mais fácil. Temos sofrido assaltos virtuais constantes — o roubo de nossos dados, os golpes pelo zap —, assim, na atualidade, assaltar um banco parece fácil, pode-se fazer de casa, mas, naquela época, quinze anos atrás, o mundo ainda ensaiava a plena conexão. Seríamos pioneiros e acabaríamos de vez com os assaltantes de bancos, que são, entre os bandidos, não sei se vocês sabem, os mais respeitados. Pelo menos eram, quando, para assaltar um banco, bastavam revólver e coragem. Hoje assaltam com o uso de drones, bombas e metralhadoras, é um espetáculo que talvez não perdure. O que virá ou já veio é o assalto limpo, à distância.

Horácio não queria assaltar um banco, queria ligar a máquina do papo furado ali entre chopes e milanesa com salada de batata. Nelson e eu mordemos a isca, e a conversa se estendeu. Sobre assalto? Não, falamos sobre o mundo virtual, sobre mulheres, falta de grana, literatura, descalabros políticos, tudo bem temperado no humor, pois meus dois amigos são desses. Horácio era.

Se a coisa começa sempre de qualquer jeito, proponho falar como o envelhecimento, antes de se instalar no corpo, se insinua nos sentidos. No meu caso, por exemplo, fiquei, já na passagem dos meus vinte para trinta anos, menos propenso a acompanhar o que de novo aparecia na música. A velhice precoce ficou restrita à música, pois, para a literatura, continuei e continuo aberto aos lançamentos. Talvez seja uma coisa minha, pode ser. Lembro-me de um lugar comum segundo o qual devemos reservar a velhice para a releitura dos clássicos, sem nos arriscar com os contemporâneos. Se é verdade, nesse diapasão ainda não sou velho. No campo da música, envelheci conquanto permanecesse jovem. O pop, com sua bateria tatibitate entremeando a massa sonora amorfa de instrumentos indistinguíveis, me deixou enfezado ainda nos anos de 1980. Eu pensei, nunca mais ouço essas músicas, no entanto, há três ou quatro anos, viajava de Belo Horizonte para Passos e, no pedágio perto de Itaúna, prestei atenção ao som que tocava. Que lindo! O que era? Michael Jackson.

Estou tentando dizer que eu me fechei ao pop que surgiu no rastro do próprio Michael Jackson. Acho que depois que o pop que me deu nos nervos envelheceu, eu, impiedosa e musicalmente velho, o acolhi. É uma tese e requer tempo para que eu a explique. Exige um chope. Ou dois. Ou três.



Aproveito esse papo de estranhamento, ter envelhecido quando eu era novo, aceitar o novo quando ele envelheceu, e mudo de assunto. — (Estivesse no bar, o número de chopes na mesa possibilitaria empilhar os porta-copos de papelão e jogá-los para cima para tentar agarrá-los sem que nenhum se desprendesse da pilha e antes que todos caíssem no chão.) — Não gosto de armas, se dei dois ou três tiros com espingarda de chumbo foi muito, e foi frustrante. Não vi graça alguma. Nunca quis matar passarinhos, nem a tiros nem a estilingadas, no máximo quis aprisioná-los, e, para tal, armei alçapão e esperei, esperei. Juro, nunca capturei nenhum. Os que tive ganhei de presente, comprei ou barganhei — barganha na qual invariavelmente levava manta. Dos maus negócios não me arrependo, de ter aprisionado passarinhos, sim.

Armas espalhadas entre a população promovem a violência, basta ler as pesquisas para se certificar disso. Mas o que temos no catálogo do poder? Uma bandeja de armas no lugar de uma de alimentos, isso que anda custando o olho da cara num momento em que muita gente retrocedeu da pobreza para a miséria; uma saraivada de tiros no lugar de um pico de vacina. A infelicidade tomou o palco e faz o show. Na plateia, há os que deliram e rugem como se fossem felizes.

Chego àquele instante em que, se estivesse no bar e cansado de falar, beberia um gole longo, olharia para alguma coisa interessante que se passasse na rua, a beleza de uma mulher, a ternura de uma criança que, em vez de andar, saltitasse sem largar a mão de seu acompanhante adulto, o abandono da lata vazia de cerveja a ser amassada pela roda de um carro velho, a imobilidade do poste prestes a ser aceso; olharia para a vida, enfim, tão besta e maravilhosa.

Chego àquele instante em que sou todo ouvidos.

25.2.21

Urgência no céu

 Ao olhar para a Terra, como faz todas as manhãs, Deus sentiu um baque. Só agora?, pensou o arcanjo que ordena os pensamentos de Deus. Pensou, mas não ousou falar, afinal, um ano na Terra é um segundo no relógio divino, não deveria ser tão inflexível com Deus, logo com Ele. Mas Deus, e isso é que importa, sentiu o baque ao ver que um corpo invisível, tanto quanto Ele, mas sem a Sua significância, pregava uma derrota fragorosa em Seus filhos. Dessa vez, Suas crianças não promoviam a guerra para matarem umas às outros, embora as guerras persistissem, elas simplesmente caíam feridas ou mortas pelo tal vírus. Não só por ele, concluiu Deus, ao fixar melhor Seus óculos no rosto que nunca se cansa. Suas crianças lidavam mal com o bichinho, não teriam aprendido nada com as situações similares enfrentadas ao longo da História. Eram destituídos de inteligência? Deus sabia que não. Suas crianças guerreavam até quando não havia motivo, motivo lá deles, que Deus nunca compreendeu ao certo.

Deus foi olhando caso a caso. A Nova Zelândia e outros poucos lidaram bem com tudo desde o início, ali estava uma gente que aprendera alguma coisa. Israel cuidava bem dos seus, aplicando-lhes rapidamente a vacina, embora maltratasse seus vizinhos palestinos, dificultando-lhes o acesso ao elixir. Uma gota de alegria e outra de tristeza. A Europa ia aos trancos e barrancos, porém ricos como eram, dariam um jeito em tudo. O mesmo aconteceria nos EUA, no Canadá. A África é a lágrima de Deus, e ele preferiu olhar mais tarde e com cuidado aquele caso. Talvez tivesse de intervir, sabia-se lá se segurando a mão dos poderosos dos países ricos, fazendo-os transferir recursos e/ou vacinas, ou mandando uma tormenta onde abundasse a indiferença em relação às crianças que deram início à vida na Terra.

Quando bateu os olhos no Brasil, Deus caiu sentado. Os arcanjos deram-lhe de beber, molharam Seu rosto, afrouxaram Suas vestes. Seu arcanjo confessor pediu aos outros que saíssem. Deus nem esperou que o arcanjo se aproximasse depois de fechar a porta e foi logo dizendo: muitos mortos, uma sandice atrás da outra, políticos interessados em si mesmos e não em quem representam, a pobreza crescendo como flor no Éden, o amor sendo ceifado como praga. O confessor nunca havia visto Deus assim, quer dizer, já, mas havia, dessa vez, uma entrega, uma desistência. Deus retomou a voz. Disse ao arcanjo que precisaria pensar bem em como agiria, e ele agiria. (O arcanjo suspirou, ah, o velho Deus!) Uma primeira atitude seria talvez cosmética, não se importava, era necessária. Que lhe chamassem Aurélio e Houaiss.

— Senhores, o que é Brasil?

— Um país, Pai — adiantou-se Houaiss.

— Disso eu sei, embora no momento preferia não saber. Mas a palavra, o que é?

— Substantivo masculino, hoje nome do país, mas foi primeiro a árvore que ali abundava, o Pau-brasil. Por extensão, e ainda como substantivo, a cor dessa árvore, um avermelhado, uma tintura fabricada com sua madeira — explicou-lhe Aurélio.

— Um substantivo. Pois os senhores, sentem-se ali e tratem de transformá-lo em um adjetivo.

— Um adjetivo, Pai?

— Sim, Houaiss. Um adjetivo que ande ao lado dos piores, daqueles que existem para marcar os que andam longe de mim.

Os dois dicionaristas, um pouco acabrunhados, sentindo-se traidores da pátria, não tinham o que fazer, uma ordem de Deus não se questiona, cumpre-se. Além do mais, bem, além do mais, eles olhavam para o país e viam como tudo encaminhava para a destruição. Dia triste no infinito.

19.2.21

Movimentos (publicado em Contos de homem, de 1995)

Número Um

Mandararn? Eu fui. Está aqui a agulha perdida no palheiro.

 

Número Dois

Ir até lá. Eu queria, e pronto. Juntei as forças, abri as portas. Não brindei despedidas ou apertei mãos, prometendo espaço dentro de mim.

A estrada era um rascunho de deserto. Mas não sofri o sol nem tive sede. Deixei a poeira levantar-se e não virei o rosto para ter certeza de que ficava para trás o que ficava para trás.

Nenhum problema maior. Um ou outro carro na contramão, uma friagem na madrugada. E só. Cheguei.

Encontrei aquilo que eu queria. Comprei o que pude; o resto roubei. Montei meu reino. Construí os castelos, os porões, as estrebarias para os corcéis de guerra, raptei a virgem. Tudo pronto. Ordenei que descessem a ponte. E, estranho, tive medo de entrar.

 

Número Três

Na comunhão do pó, forjo alegria. A lâmina risca os trilhos, o corpo recebe a dádiva. Eu danço, ele dança, nós dançamos. Um carnaval simulado. O sorriso nos lábios é anúncio de pasta de dente. O aperto de mão, negócio fechado. Tenho o controle do leme, mas a sensação de que no barco sou caroneiro.

Amanhã, o último confete estará colado ao peito, ainda. Uma dor incorruptível. Não me devolverão sequer um níquel. Abro janelas, cadê luz? Remexo minhas gavetas, e é um lenço de Soraia, um cinto de Solange. Mas elas, elas mesmas, não estão aqui. Carregaram a lembrança do meu peso, regaram-se com meu jorro, na melhor das hipóteses.

Com que pernas vim dar nesse porto? Eu era moço, viril, e isto bastava. Mas se futuco mais, esgarçando o tecido do colchão, riscando a tinta da parede, abro caminhos. Sigo pelas frestas e molas, nos vazios possíveis. Pronto, tenho ao alcance das mãos. Pego. Aperto. Ai!

Uma minhoca veio viver na minha cabeça. Depois, uma outra, e outra, e outra. Na louça dos meus dentes, cáries. Nas pessoas de ouro, carne. Meus sonhos, imagens desfocadas na lente que é puro mofo.

 

Número quatro

Não restaram nem os ratos; estou só. Parece, assim mesmo, que é o início da festa. A madeira do chão range, pisoteada por passos que já fugiram de mim. No tanque, a roupa úmida cria bolores, meu retrato com cheiro. O som da gota que cai ininterruptamente convida para mais uma dança. Aceito. Apago as luzes, e me solto. Vou-me desfazendo, novelo. Meus fios não viram nada, casaco, colete ou luvas. A última convidada me recolhe, com vassoura e pá. Lança-me no Azul.

 

Número Cinco

Eu chovo.

13.2.21

Veja bem essa gente

 

Para o Matheusinho



Cansado do trabalho usual, o japonês Shoji Morimoto inventou de vender sua maior habilidade: "comer, beber (com responsabilidade, claro) e dar respostas simples". Ele, a uma diária de uns quinhentos mangos, livre das despesas de locomoção e alimentação, atende àqueles que querem companhia. Shoji fica lá quieto, comendo e bebendo, e, a pedido e não passando disso, pode dar um adeusinho numa estação ferroviária. Consta que tem faturado o suficiente para pagar as despesas de casa. Se pudesse, eu o contrataria para ouvir suas respostas simples, coisa rara neste mundo em que sobram respostas simplórias.

Há alguns anos, havia lido sobre serviço similar, oferecido no mesmo Japão. Na reportagem, enumeravam algumas demandas: alguém para se passar pelo pai num jantar com a família da namorada; homem ou mulher para chorar um morto (nossas velhas carpideiras); uma pessoa para, ao chegar a um bar, abordar o contratante assim meio por acaso, como se fosse um desgarrado à procura de um amigo. A solidão também vai ao mercado.

Alguns amigos de São Paulo me contaram que na firma na qual trabalhavam havia um sujeito bom de conversa, verdadeiro sedutor, característica que dava a ele certa desenvoltura no negócio. Descobriu-se com o tempo que era um mitômano. No dia de seu aniversário, ele contratava um serviço para espalhar, pela rua da empresa, faixas enaltecendo seu nome e deixar sobre a sua mesa de trabalho uma magnífica cesta recheada de guloseimas, além de balões e fitas enfeitando os quatro cantos. Havia até bilhete de quem enviava os mimos, alguém fictício. O espantoso para os meus amigos paulistanos é que a estranha figura casou-se com uma juíza. Se era sedutor, por que não haveria de se casar com juíza ou com quem quer seja? Difícil é manter o casamento, mas ninguém nunca soube me dizer se foi o caso, pois o colega pediu transferência, foi para o interior e não deixou nem endereço nem telefone.

Quando, no início dos anos 1980, eu e Carlos fomos à Bolívia, dentre as várias experiências interessantes, uma me marcou de modo especial. Não sei se estávamos em Totora, perto de Cochabamba, ou em Potosí. É provável que estivéssemos na primeira, pois ali convivíamos com as pessoas do local e éramos convidados para visitar suas casas. Numa cidade ou noutra, era um almoço, e eu, depois de me servir, não havendo mesa e cadeira suficientes, fui para um canto do cômodo e me agachei. Comecei a comer e em determinado momento percebi que todos me olhavam. Meu espanhol era (e é) sofrível, então recorri à ajuda de Carlos, chileno, e soube que todos estavam encantados com a minha posição. Não era comum uma pessoa ou um homem de cócoras, ou de cócoras comendo, ou um não boliviano acomodar-se daquele jeito na hora da refeição. Um montanhês de Minas não é um andino.

Na minha cidade, havia os irmãos Máximo e Mínimo. O Máximo se chamava Máximo, e Mínimo talvez fosse apelido. O primeiro, expansivo e mentiroso, conseguia, mal chegasse a qualquer lugar, ficar rodeado de gente interessada em sua conversa interminável. O segundo entrava mudo e saía calado, e entre uma coisa e outra, sentava-se na roda que tinha seu irmão como centro e o ouvia, atentamente o ouvia. Numa síntese rasteira, o Máximo era o máximo, e mínimo era o Mínimo. Um dia, eles sumiram da minha vida, e, desconhecendo o paradeiro e o destino dos dois, só me resta especular. Foram para Serra da Saudade, lá envelheceram e se esqueceram do passado. O Mínimo virou barbeiro e o Máximo, jogador de truco a dinheiro. Pode ser que hoje o Mínimo fale pelos cotovelos e o Máximo chore, inconformado com a velhice. Talvez sejam solitários e tristes, ou, ao contrário, são eles que garantem a alegria da menor — e de nome mais bonito — cidade do Brasil.

Em outubro de 1991, dois meses antes de minha filha nascer, por conta do trabalho, fui a Helsinque. Estava sozinho e gostava de caminhar à toa depois do compromisso. Meu olhar estrangeiro se espantava, por exemplo, com o fato de ninguém atravessar a avenida sem carros quando o sinal estava vermelho para os pedestres. Uma bobagem de espanto, principalmente diante de um outro que eu teria numa das andanças. Ao chegar a uma praça, como se por encanto, o sol apareceu, atravessou a copa das árvores e elevou a temperatura de dez graus para doze, não mais que isso. Uma mulher, que ia à minha frente, sentou-se num dos bancos, tirou a blusa, o sutiã e deu-se ao sol. O sol não ficou por muito tempo, e assim que ele se foi, a mulher se vestiu e tomou seu rumo.

Na república em que me hospedava em Freiburg, na Alemanha, o chuveiro ficava na cozinha e o vaso sanitário, na área comum do prédio. Quando os moradores iam ao vaso, andavam nus pelo prédio. Quando queriam tomar banho, despiam-se na cozinha, tivesse ou não outras pessoas por lá — e, em torno da mesa, sempre havia amigos e amigas. Eu tomava banho no descuido do sono de todos.

Esta crônica começou quando Matheusinho, ao ser questionado sobre por que havia feito uma coisa e não outra, respondeu assim: “Não tive tempo de fazer as duas ao mesmo tempo”. A frase pouco comum disparou meu circuito de associações e me levou às histórias recém-contadas. Sabe, gente, o cronista é, antes de tudo, um carro que só pega no tranco e, uma vez em funcionamento, tergiversa pelas ruas.