25.2.21

Urgência no céu

 Ao olhar para a Terra, como faz todas as manhãs, Deus sentiu um baque. Só agora?, pensou o arcanjo que ordena os pensamentos de Deus. Pensou, mas não ousou falar, afinal, um ano na Terra é um segundo no relógio divino, não deveria ser tão inflexível com Deus, logo com Ele. Mas Deus, e isso é que importa, sentiu o baque ao ver que um corpo invisível, tanto quanto Ele, mas sem a Sua significância, pregava uma derrota fragorosa em Seus filhos. Dessa vez, Suas crianças não promoviam a guerra para matarem umas às outros, embora as guerras persistissem, elas simplesmente caíam feridas ou mortas pelo tal vírus. Não só por ele, concluiu Deus, ao fixar melhor Seus óculos no rosto que nunca se cansa. Suas crianças lidavam mal com o bichinho, não teriam aprendido nada com as situações similares enfrentadas ao longo da História. Eram destituídos de inteligência? Deus sabia que não. Suas crianças guerreavam até quando não havia motivo, motivo lá deles, que Deus nunca compreendeu ao certo.

Deus foi olhando caso a caso. A Nova Zelândia e outros poucos lidaram bem com tudo desde o início, ali estava uma gente que aprendera alguma coisa. Israel cuidava bem dos seus, aplicando-lhes rapidamente a vacina, embora maltratasse seus vizinhos palestinos, dificultando-lhes o acesso ao elixir. Uma gota de alegria e outra de tristeza. A Europa ia aos trancos e barrancos, porém ricos como eram, dariam um jeito em tudo. O mesmo aconteceria nos EUA, no Canadá. A África é a lágrima de Deus, e ele preferiu olhar mais tarde e com cuidado aquele caso. Talvez tivesse de intervir, sabia-se lá se segurando a mão dos poderosos dos países ricos, fazendo-os transferir recursos e/ou vacinas, ou mandando uma tormenta onde abundasse a indiferença em relação às crianças que deram início à vida na Terra.

Quando bateu os olhos no Brasil, Deus caiu sentado. Os arcanjos deram-lhe de beber, molharam Seu rosto, afrouxaram Suas vestes. Seu arcanjo confessor pediu aos outros que saíssem. Deus nem esperou que o arcanjo se aproximasse depois de fechar a porta e foi logo dizendo: muitos mortos, uma sandice atrás da outra, políticos interessados em si mesmos e não em quem representam, a pobreza crescendo como flor no Éden, o amor sendo ceifado como praga. O confessor nunca havia visto Deus assim, quer dizer, já, mas havia, dessa vez, uma entrega, uma desistência. Deus retomou a voz. Disse ao arcanjo que precisaria pensar bem em como agiria, e ele agiria. (O arcanjo suspirou, ah, o velho Deus!) Uma primeira atitude seria talvez cosmética, não se importava, era necessária. Que lhe chamassem Aurélio e Houaiss.

— Senhores, o que é Brasil?

— Um país, Pai — adiantou-se Houaiss.

— Disso eu sei, embora no momento preferia não saber. Mas a palavra, o que é?

— Substantivo masculino, hoje nome do país, mas foi primeiro a árvore que ali abundava, o Pau-brasil. Por extensão, e ainda como substantivo, a cor dessa árvore, um avermelhado, uma tintura fabricada com sua madeira — explicou-lhe Aurélio.

— Um substantivo. Pois os senhores, sentem-se ali e tratem de transformá-lo em um adjetivo.

— Um adjetivo, Pai?

— Sim, Houaiss. Um adjetivo que ande ao lado dos piores, daqueles que existem para marcar os que andam longe de mim.

Os dois dicionaristas, um pouco acabrunhados, sentindo-se traidores da pátria, não tinham o que fazer, uma ordem de Deus não se questiona, cumpre-se. Além do mais, bem, além do mais, eles olhavam para o país e viam como tudo encaminhava para a destruição. Dia triste no infinito.

Um comentário:

Estação das Letras disse...

Muito bom , Alexandre! Saudades de vc!