21.12.20

Bafo de esperança

 

“Antes que a crueldade faça / de vítima as crianças” (Murilo Antunes)



As últimas três crônicas falaram de minhas leituras nos primeiros oito meses de confinamento. Escrever sobre os livros foi um exercício de memória para o miolo mole aqui. Ainda que não tenha feito resenha, crítica, qualquer coisa parecida com isso, ao escrever sobre tantas e tantas páginas, quis mostrar como me relaciono com elas. Mas escrever sobre livros foi também um jeito de me manter um pouco fora do assunto que domina o país: seu descaminho.

Ao fazer isso, não detive os acontecimentos, o que é uma pena.

Nesse período:

O assassinato de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes completou mil dias, e ainda há muito (tudo?) por descobrir sobre essa pistolagem política. Quem mandou matar Marielle e de enfiada ceifou a vida de Anderson?

As primas Emilly, quatro anos, e Rebecca, sete, crianças inocentes e, não por coincidência, negras foram mortas na porta de suas casas no início de dezembro. Juntam-se a outras dez que, no estado do Rio de Janeiro, morreram só neste ano e em circunstâncias parecidas: Anna Carolina, João Vitor, Douglas Enzo, Luiz Antônio, João Pedro, Kauã Vitor, Rayanne, Ítalo Augusto, Maria Alice e Leônidas. Em muitos desses casos, a morte ocorreu por tiro desferido por um policial.

Em uma cena de horror, dentro de uma loja da rede Carrefour, dois homens que faziam a segurança do estabelecimento mataram João Alberto, um negro. João teve uma morte semelhante à de George Floyd, americano também negro que foi asfixiado pela perna de um policial. No caso brasileiro, uma senhora, de celular na mão, acompanhava de perto os dois seguranças — era a coordenadora deles, soube-se depois — e outros funcionários do mercado auxiliaram no assassinato, por exemplo impedindo a mulher de João Alberto de se aproximar dele. A coordenadora e esses outros foram indiciados.

(Não custa lembrar que, segundo o Atlas da Violência, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Brasil, em 2018, 75,7% das vítimas de homicídio eram negras. Mais do que isso: entre 2008 e 2018, a cada 100 mil habitantes, o número de negros mortos saltou de 34,0 para 37,8, ou seja, um aumento de 11,5%, número menor do que a redução dos assassinatos entre não negros, que saiu de 15,9 para 13,9 a cada cem mil, redução, portanto, de 12,9%.)

Enquanto escrevia sobre minhas leituras: inventaram a não-queimada amazônica para estrangeiro ver; não renovaram o contrato do teste de genotipagem dos vírus da Aids e da hepatite C, o que impacta a escolha do tratamento; usaram a Abin, órgão público, para auxiliar um dos filhos do presidente a se safar da suspeita de fazer rachadinhas quando foi deputado estadual no Rio de Janeiro; chamaram a China para a briga — quer dizer, um inconsequente fez uma lambança diplomática.

A Covid-19, que havia diminuído, recrudesceu. Claro que não foi pelos ajuntamentos em praias, em festas. Não foi pela falta de máscaras. O negacionismo e a incompetência administrativa dos mandatários da república não têm um dedo de responsabilidade sobre a situação, óbvio que não, foram os inimigos do país que, durante o nosso sono, espalharam o vírus em nossas casas. Para completar, a vacina, que já se aplica lá nas estranjas, aqui é apenas uma palavra na boca da pior política.

Durante vinte e dois dias, um apagão tomou o Amapá. Estando tudo às escuras, o governo federal não viu o estado e empurrou com a barriga a solução, mesmo uma provisória. A população, além de sofrer todas as consequências da falta de luz (conservação de alimentos, comunicação, abastecimento de água e por aí afora), se viu acuada por criminosos.

Para tentar reverter o baixo astral da crônica, cito dois ou três fatos que podem servir de alento.

Trump foi despejado do poder.

Existe a vacina.

Mais uma boa-nova? 

Em 2019, Emicida lançou AmarElo, um disco que serve como ponto de confluência da cultura negra brasileira — que passa, em termos musicais, pelo samba, pelo funk, pelo hip hop, pelo rap — e de onde ecoam a música banhada em toda essa influência e o grito de resistência da gente negra, que não aceita mais tudo isso que temos visto: assassinato de Marielle, Emilly, Rebecca, João Alfredo, discriminação no mercado de trabalho, impedimento de acesso às universidades, exclusão da política, perseguição religiosa etc. E bem agora, enquanto eu falava de minhas leituras, um documentário em volta de um show que Emicida fez no Municipal de São Paulo (no Municipal, sim) foi disponibilizado na Netflix. Disco e documentário fazem de Emicida o bafo de esperança que nos ajuda a atravessar esses dias imerecidos.


6.12.20

O que fiz das minhas leituras de confinamento: final

 Para encerrar os comentários sobre minhas leituras em tempo de confinamento, faço mais alguns e, se não estou errado, feito isso, terei dado conta dos livros de prosa lidos entre março — quando terminei, ainda antes do confinamento, “Os miseráveis”, de Victor Hugo — e novembro.

Pais e filhos” (Cosacnaify), de Ivan Turguêniev, uma história que, situada num momento de transição na Rússia, quando se dá o fim da servidão, popularizou o termo niilista. No romance, o tal niilista é o sujeito frio, científico e, por ironia e o grande achado do autor russo, incapaz de se manter em pé diante do amor. “O caminho de San Giovanni” (Companhia das Letras) é uma série de ensaios memorialísticos, que têm como pano de fundo a cidade natal de Ítalo Calvino. O papel do cinema, a plantação do pai, aspectos da cidade pequena se juntam na cabeça desse escritor tão peculiar que, por meio da escrita, nos conduz pela geografia de seu pensamento.

Numa blitz à estante, encontrei “O corpo e outras histórias” (Companhia das Letras), de Hanif Kureishi, livro com uma novela — “O corpo”, que é (estamos num momento em que se é possível nos transferir para outro corpo) e não é (a questão da técnica e a consequência social não são muito exploradas) ficção científica — e uma série de contos, eu diria que bem estranhos, desses que dão uma chacoalhada no leitor. Ainda assim, nada parecido em intensidade e risco ao que faz Sam Shepard no romance “Aqui de dentro” (Estação Liberdade). O múltiplo autor, ao mesmo tempo que escreve um romance, o desestrutura. Talvez por isso, Patti Smith, ex-companheira de Shepard, diz que, ao ler os originais, navegou “por um mosaico de ecos de conversas, perspectivas alteradas, lembranças claras e impressões alucinatórias”.

A visita de João Gilberto aos Novos Baianos” (Companhia das Letras), de Sérgio Rodrigues, usa como tema o futebol (é do autor “O drible”, um dos romances contemporâneos que resistirão ao tempo), a música e o mundo da literatura. Se Sérgio Sant’anna escreveu, nos anos de 1980, “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” (Companhia das Letras), cujo conto-título mostra como toda a cidade se mobilizou pelo show de João Gilberto, cancelado na última hora, Sérgio Rodrigues narra a visita do cantor (um artista reconhecido, já um pouco senhor) aos Novos Baianos (aquela turma jovem, que vivia em comunidade e sobre a qual recaíam todos os tipos de suspeita: amor livre, uso de drogas). Os dois contos ajudam a entender como o pai da bossa nova transformou-se em “mito”. No caso do livro de Rodrigues, seus contos sobre o mundo da literatura são um achado, deliciosamente irônicos.

Procurando dar conta de leituras atrasadas, li “Ensaio para o adeus”, de Eliezer Moreira (Editora Patuá), um romance de suspense, baseado em uma história muito peculiar, a de um repórter que, ao cobrir um assassinato, vê que o morto é a sua cara e com ele passa a ser confundido. Eliezer foi finalista do Jabuti de 2019, com outro livro, pelo que li a respeito, na linha desse primeiro, “Olhos bruxos” (Penalux).

Destaco duas leituras de mulheres, Lívia Garcia-Roza, “Meus queridos estranhos” (Record), e Andressa Barichello, “Ter a escrita” (Editora Patuá). Lívia escreve sobre uma mulher transitando entre os quarenta e os cinquenta anos abandonada pelo marido. Apesar de ele falecer logo em seguida e a viúva não tardar a casar-se de novo, a dor de ter sido abandonada perdura. O fato de ter uma filha adolescente, caprichosamente adolescente, não consegue ocupar esse vazio, se é que não o aumente. A mulher burguesa, educada, sem grandes limitações financeiras, enfim, moderna, caminha pelo livro percorrendo um arco muito bem (d)escrito de nuances. O livro de Andressa é de crônica. Sou cronista e não consigo fugir de comparar o meu mundo ao de Andressa. Começo pelo óbvio: eu um homem, ela uma mulher. Eu nos últimos passos da minha quinta década de vida, ela na força da juventude. Eu cada dia mais enfrentando o mundo de fora para dentro, ela, de dentro para fora. Gosto dessas diferenças. Seja como for, o talento da escritora foi reconhecido pelo Jabuti, que incluiu seu livro entre os semifinalistas do prêmio de 2019.

O último livro do período é realmente uma charada, pode ser um livro de ensaio ou um metarromance, um livro de humor ou, o que não descarta o humor, de reflexão profunda sobre a escrita. O título dá uma pista sobre o “mistério” alimentado por Marcel Bénabou, “Por que não escrevi nenhum de meus livros” (Tabla). O autor era, ao lado de Calvino e outros, membro do Oulipo — Ouvroir de Littérature Potentielle —, grupo que se impõe, na construção de uma história, regras limitantes, por exemplo, escrever sem usar a vogal “e”, o que fez Georges Perec em “O sumiço”. No livro que comento, a primeira discussão de Bénabou é como alguém pode não escrever nenhum de seus livros. A partir daí, há um embate intenso entre o leitor e o escritor, entre o escritor que tem pressa em publicar e o que não tem nenhuma, entre o escritor e o sujeito que deseja apenas um banho de sol. Como minhas crônicas foram sobre leitura, logo, um campo largo para meu esquecimento mostrar toda sua força, cito do livro: “Hoje, quando por exemplo arrumando caem-me às mãos certos folhetos em que anotara os títulos e as datas de minhas leituras de então, fixo-os longamente, incrédulo e consternado que absurda bulimia foi essa que me fez devorar tantas obras cuja lembrança não guardei, nem mesmo de tê-las manuseado?”

Matemática Bufa (publicado em Contos de homem, livro de 1995)

Veja, por exemplo, o Zé.

Biscateiro, faz ponto a uns trinta quilômetros de casa, assalariado mínimo. Só na condução ele gasta em torno de 20% da propina. Somando os outros gastos, inclusive a indispensável birita do dia-a-dia, chega-se a um déficit fácil.

Surpresa: Zé tem duas mulheres, Neide e Fátima.

Neide é esposa, papel passado em cartório, com testemunha, terno, vestido branco e tudo. O tudo incluindo uma saborosa sidra gelada, estourada sob os aplausos dos parentes mais próximos e o olhar amistoso e contente dos sogros.

Sim. e lua-de-mel. Perfume de Neide parecendo fugir do quarto do hotel. A vontade de Zé fugindo mesmo pela porta afora, voltando ao quarto, doendo. O encontro? Desculpe, uma foda ótima.

Fátima apareceu depois, e não há qualquer explicação baseada em crise de Zé e Neide, pileques inconsequentes do biscateiro ou pura peruagem. Sei lá, foi um flerte. Foi uma coisa tão forte, querendo e empurrando um para o outro, que não teve jeito.

No início, Zé quis guardá-las em compartimentos separados da sua afeição. Escondeu da Neide a Fátima e da Fátima a Neide. Mas ...

Um salário mínimo já é quase nada, é conta a pagar no próximo mês. Sabe, é o capricho de uma pedindo, e o não-querer nada da outra pedindo mais ainda. A grana não dava. E mais: era uma dor na consciência tão grande, que meteu duas caninhas na goela, um chiclete no bafo, colocou Neide no colo e falou de supetão.

Imagine Neide. Moça talhada para isso mesmo, não poder tomar a sopa sozinha, dividir o leite condensado com os nove irmãos etc. e tal. Sua resposta foi um silêncio manso, canto de passarinho. E um pedido: conhecer a outra.

Mesma coisa fez Fátima. Disse não se espantar, mas fazia questão de dizer à primeira que a respeitava, dali por diante, mais que à própria mãe.

 

O triângulo se fechou na sala da casa de Zé e Neide, tomando as seguintes decisões:

i) Fátima se mudaria para alguma casa ali perto;

ií) Os três trabalhariam para conseguir mais grana;

iii) Estavam felizes.

O que veio depois foi glória, glória, o além da glória. Juntando os três salários mínimos, descobriram que a cada um cabia mais que um salário. Fazendo de suas despesas uma coisa única, pouparam e compraram uma televisão, fizeram roupas bonitas para os fins de semana. Milagre: geladeira, cerveja gelada e Zé chegando sempre cedo em casa.

Ali pelas dez horas em um leilão velado, uma delas arrematava o companheiro e levava-o para exibir seu vigor sereno e incessante.

Esse era mais um lado dessa matemática. Cada uma delas, mesmo tendo apenas metade, tinha um inteiro. Na lógica do quando está comigo é meu, tinham o desejo saciado, e o olho nem pensava em futuro ou martelava saudade do passado.

Havia, contudo, nisso tudo, um sistema sem solução: a cobiça. Zé, baseado em sua experiência recente, imaginou que uma terceira mulher talvez lhe possibilitasse um carro. Não queria, é verdade, nenhum carro do ano, modelo esportivo, roda talalarga. Um Fusca antigo, uma Rural, Chevette, Gordini, TL, Corcel, o que fosse, ia diminuir a distância entre o biscate e a casa, ia aumentar o tempo de Zé para suas meninas.

Deixa de voltar mais cedo para casa um dia, adentra o bar da dona Sara e, sob os vivas dos camaradas antigos, aquece o espírito de cana, a coragem começa a dar pulinhos e o olho gruda em Neusa.

Neide e Fátima estão em casa, não têm nenhum pensamento ruim ou expectativa frustrada. Sabem que mais cedo ou mais tarde o Zé chega. Estão um pouco ansiosas porque querem contar a ele dos filhos que vêm. E tricotam, das receitas aprendidas juntas, os primeiros sapatinhos.

Agora é esperar. Se ele trouxer notícias de Neusa ou a própria, em carne e osso, será que o brim do ciúme esgarça?

Antes que ele se adiante, soltando a língua, recebe a notícia. Mal absorve a emoção, pensa no dinheiro. Não será pouco? Elas ouvem o plano, Neusa incluída, e sorriem esperança. Zé procura a vizinha proprietária de um cômodo e o aluga.

Neusa chega no dia seguinte, distribuindo uma alegria imensa, escancarando à toa o riso fácil. Em instantes já é convidada para ser madrinha das duas crianças. Apenas um detalhe gostaria de esclarecer: vai contribuir para aquela cooperativa com mais de um salário; em compensação se ausentará de noite. Portanto, Zé é dela pelas manhãs: café, pão e, sic, pau. 

E a creche? Sabe quanto custa? Uma fortuna. Solução: a quarta mulher. Esta já nem é propriamente escolhida nem se amiga para valer das outras. A quinta mulher, Neide não a conhece. Nem progressão geométrica daria conta da velocidade com que Zé se amasia com novas mulheres.

Mais importante, contudo, é saber se Zé, um dividido por entre infinitas, quase zero, dançava ainda apenas a dança do amante infalível ou se planejava o próximo sonho de consumo. 

Zé, bem, o velho Zé rodava em círculo, grana pede mais grana. Já não trabalhava. Tinha casa própria. Tinha carro, moto, lancha. Tinha cavalo correndo no Jóquei. Filho estudando na PUC. Filha atriz. E, pasme, uma amante. Sim, uma amante tradicional, escondida das outras, trancafiada em um pequeno apartamento do subúrbio, com direito a frequentar desfiles de moda, lugares da moda, e tudo o mais.

E o que ele não faria por ela, moça de seus vinte anos no máximo? Faria gatos e lagartos. Se grana pede mais grana, ele estava disposto ao pior: ao roubo.

Quando ela lhe pediu um apartamento na Zona Sul, raspou o dinheiro do banco, vendeu a casa, os carros, a filha. Banana para as esposas.

Surpresa: conseguiu ficar com menos de um salário. Na verdade, meio. Menos, 25%. Quase nada, 1% de um salário mínimo.

A realidade nua e crua e a matemática pura quando se juntam, é o que digo, não há como escapulir. Zé é Zé sempre. No máximo, na opulência da quinta dose, permite fingir-se milionário para o espelho sujo do banheiro, no bar de décima categoria. Prova do não-teorema.

Traços (publicado em Contos de homem, livro de 1995)

 Às vezes sai perdida pela cidade. Procura uma apuirana de onde possa sugar toda a estricnina. Noutras, tranca-se em casa, esperando ser capturada e salva por algo, alguém, pai, mãe, o além.

Resistiu a tudo. Até a um amor.

. . . o amor foi como uma rosa nascendo no concreto: belo, mas inútil.

Não é bonita. Um metro e sessenta, cinquenta e quatro quilos, mãos compridas, unhas grandes de fundo rosado, sobrancelhas finas e cílios espessos. Pés magros de veias salientes, a tez muito branca. Os pelos crespos, vermelhos e abundantes. Nádegas pequenas.

Tampouco é feia. Olho preto de jabuticaba, nariz torneado, boca tímida, carmim. Dentes sempre brancos, sem nicotina. Cabelos muito longos.

Ano passado recebeu um assobio na rua. Chorou. Estoica por fora, não se sabia como por dentro. Que tinha células sabia. Também, que tinha os aparelhos digestivo e reprodutivo. Rins, pulmão. Mas e que mais?

No dia em que acordou com o sexo umedecido e as mãos nele, atirou-se violentamente contra a parede, pousou o ferro quente pelo corpo. Sorriu por se sentir tão bem.

Quebrou os espelhos da casa porque achava que a imagem refletida não era a sua. Era triste assim? Aquelas olheiras dilaceravam mesmo o seu rosto? E as espinhas? Espelho algum dia foi feito para mostrar a dor?

Foi morar dentro do guarda-roupa, fitando a lembrança do espelho. Aí recordou o dia. O pai morto, a mãe chorando, e ela querendo que ele acordasse.

Ela é a Maria José do José e da Maria. A síntese. Não é a princesa que o pai inventaria. Não é a mulher que a mãe desejou.

Quando vai ao bar, diz ao garçom que espera nove amigos. Os outros são meras possibilidades de amizade. Sai antes de a bebida chegar.

Em um domingo de missa, ganhou um beijo. Ainda hoje sabe de cor seu gosto e, quando quer, sente.

Já deu um beijo. No vento.

Conhecia Cecília Meireles. Pegava o telefone, discava um número qualquer e recitava: "Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo". Como ninguém a ouvia até o final, deixou de conhecer a poeta.

O banho quente a tranquiliza. Dentro d’água, mesmo fria, sorri sem culpa ou medo. Batizou essa sensação de amor. 

Agora ela está lá, no alto da ponte, namorando o mar.


A caça (publicado em Contos de homem, livro de 1995)

A mata é hermética. O sol, quando consegue penetrá-la, é um fio, um frio facho de luz.

O que faço aqui? Caço. Comigo levo meu cão, minha arma, o saco para depositar a caça.

Lá vem um bicho. Tum, tum ...

Guardo o elefante.

Minha mãe chega, senta-se na cadeira, perto da mesa, perto da churrasqueira, perto de meu pai. Aproximo-me deles, sirvo-lhes, em bandeja de prata, o elefante temperado. Com o susto, infartam.

Pais ...

A mata cada vez mais fechada, um breu. Os morcegos tentam atacar-me. Primmm ...

Minha mulher chega do cabeleireiro. Está linda, o cabelo como um bolo de festa. Dou-lhe um beijo, prendo-a em meus braços, solto em suas costas os morcegos. Descabelando-se, atira-se pela janela. Plaft seco e buzinas fanhas engarrafam o trânsito.

Mulher ...

No meio da selva, assusto-me com um rio. Lanço nele rede, isca, vara, anzol. Pesco um tubarão.

As crianças acordam ansiosas pelo aquário novo. Enquanto se distraem com os peixinhos, desfaço a armadilha, cai do teto o tubarão. Como a água corre para o ralo, as crianças se jogam nos dentes da fera, que em um último impulso as devora,

Crianças ...

Morreu o cão. Perdi a arma.

Para lá ou para cá. Mata sem fim. 

Caçador...

5.12.20

Circense (publicado em Contos de homem, livro de 1995)

A Egberto Gismonti

 

O lápis traça a maquiagem no rosto do palhaço. A ponta arranha a carne por dentro. Já não há nenhum prazer em representar, em enfrentar a ansiedade das crianças, em proporcionar-lhes o riso. Mas ele terá de fazê-lo, mais uma vez e outras tantas. Para um homem de quarenta anos, recomeçar é um verbo inconjugável, é derrota.

Olha-se no espelho, tudo perfeito. Abre o armário, veste a peça que falta, a alegria que irradiará para a plateia. Trago seco.

A entrada em cena é triunfal. Cumprimenta a criançada, dirige-se para o centro, abre os braços e inesperadamente dá um salto mortal. Seus pés tocam o chão, mas tropeçam. O corpo rola como um aro, batendo nas laterais do círculo. Ao erguer-se, suas calças caem e, ao apanhá-las, deixa escapulir um peido alto. Finge envergonhado, senta-se; levanta-se surpreso com as fezes coloridas, de plástico.

Outro salto leva--o para outro canto do circo e assim sucessivamente, até que todos o tenham visto mais de perto, até que todos, como cúmplices, tenham testemunhado seus blefes, que desencadeiam risos compulsivos. As tábuas da arquibancada zunem.

No próximo pulo, o imprevisto. Ao rolar pelo chão, o palhaço mete o rosto na bosta do elefante. As palmas e as gargalhadas atingem níveis estrondosos, quase silenciam e retornam a toda, num vaivém interminável.

Para quem tem a carne talhada por dentro, o golpe fere as células, deixa o desejo exangue.

 

Émerson sente que seu riso mexe com os órgãos, incha o fígado, comprime o pulmão. Escorrem lágrimas em sua face. O palhaço havia planejado o melhor dos truques: insinuar que o chocolate na cara era bosta de elefante, que o cheiro do doce era o podre fedor da merda.

O rapaz sai do circo repleto. Naquelas duas horas, não pensou no mundo lá fora. Mas, em pouco tempo, está às voltas com uma rua que tem de ser atravessada, com a falta de grana para comprar um refrigerante. O desconforto da arquibancada era agora dor nas costas.

Um movimento brusco, como se pedisse de volta os minutos vividos sob a lona. Abraça-se a um poste, fecha os olhos e sonha com o mundo do circo. Fugirá na companhia para atuar como trapezista, contorcionista, macaco, leão, qualquer coisa.

E é assim, vivendo tudo isso, que Émerson tropeça na calçada e cai, metendo o rosto na bosta de um cachorro.

0 mesmo riso da lona explode ao lado de Émerson. São as crianças vindas do circo, vendo na cena de rua a repetição da trapaça do palhaço. Mas ele sabe que não há truque, nem o gosto nem o cheiro daquela merda se parecem em nada com o chocolate. Levanta-se, xingando todos os que o olham, fazendo os piores gestos possíveis. Vai-se arrastando para casa, para o quarto, para as roupas, para a mala. Para o circo.

 

Os trailers formam o círculo. Os animais nas jaulas cuidam de empestar o ar. As crianças correm por entre as tendas metálicas. A bailarina esfrega suas roupas e lava outras para o mágico. O trapezista sai para procurar mulher.

Alonso cerrou as cortinas. Tira a roupa de palhaço e toma a primeira talagada de cachaça. Em breve, a segunda, a terceira, e outras tantas. Em breve, o nariz de bola de pingue--pongue é amassado pelas suas mãos; o lápis da maquiagem (faca?), quebrado; as roupas, rasgadas.

 

O passo de Émerson é determinado. A bolsa, com suas roupas, é pequena e cinza. Sua vontade brada. Fecha a mão e toca a porta.

 

 Afonso ouve a batida e não sabe se o barulho é luz ou tiro de bala--morte.

Trocam olhares e dizem muito. Entram. Trancam a porta. Lá estão.

 

O próximo espetáculo é amanhã. Ou nunca.


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Certamente foi ouvindo Palhaço, do disco Circense, que escrevi o conto. Se quiser ouvi-la, clique aqui.

22.11.20

O que fiz das minhas leituras de confinamento: II

Dando sequência à crônica de quinze dias atrás, falo um pouco mais sobre minhas leituras do confinamento.

Apesar do que dizem — e acertadamente tem sido contestado —, somos um país racista e nós, os brancos ou criados como tal, temos de nos perguntar todos os dias, como fazia uma antiga campanha na TV Brasil, onde guardamos ou escondemos nosso racismo. A leitura de negros me ajuda nessa busca em mim, que, assim espero, logrará que eu apague o que resta, o que está incrustado. “O crime do cais do Valongo” (Malê), de Eliana Alves Cruz dialoga diretamente com “Um defeito de cor” (Record), de Ana Maria Gonçalves, uma leitura de 2019. Escritos por negras, ambos tratam da escravidão no século XIX e dão voz a escravas ou ex-escravas, mostrando as dificuldades para sobreviver num mundo violento não só por conta da escravidão, mas também do machismo. Os dois, cada um com seu estilo, trazem à tona a complexidade daquela sociedade em reverberação até hoje e que vai muito além do ensinado na escola, pelo menos na minha do final dos anos de 1960, início dos de 1970.

Noutra linha, caminha “Rio Negro, 50” (Record), do também sambista Ney Lopes. Ney fala de um Rio de Janeiro negro, absolutamente negro, arrancando 40% (número aproximado de negros e pardos na década de 1950, segundo o IBGE) da população da cidade da condição marginal com que aparecem na “literatura branca”. Num romance que eu chamaria de coletivo — não há um foco direto e permanente na vida de um ou de outro, o interesse é pela comunidade —, vemos passar, em dois bares do centro da cidade na época do vexame da Copa de 1950, intelectuais, atrizes, cantoras, vendedores de amendoim, jogadores de futebol, ativistas, advogados, bicheiros. Negros, todos negros. A forma narrativa escolhida pelo autor é, a meu ver, uma aula.

Li também autores não negros. Um deles, Leonardo Almeida Filho, fala, em entrevista, das influências sofridas na escrita de “Nessa boca que te beija”, romance lançado pela Patuá. De um lado Graciliano Ramos (“Angústia”), de outro Augusto dos Anjos, em cujos versos Leonardo buscou o título. Engana-se quem pensa que pesa sobre o autor a consciência dessa influência, pois sua personagem, um escritor atormentado, improdutivo, entregue a uma paixão um tanto quanto obscurecida, tem camadas próprias. Esse escritor em crise escreve um romance, e, no romance, a personagem escreve um poema. Enquanto lia o livro, eu gravava uns poemas e espalhava-os por minhas redes sociais, e o escrito pela personagem da personagem (e que aparece como peça autônoma em outro livro de Leonardo, “Babelical”, também da Patuá) foi um deles.

É também um autor improdutivo a personagem de “Um romance de geração” (Companhia das Letras), de Sérgio Sant’anna. Nos livros de Sérgio, não raro, outras artes — nesse, o teatro — têm um papel importante. As situações que o autor explora são sempre muito atuais, no caso o embate entre o escritor (homem) e a repórter que o vai entrevistar (mulher), entre o escritor decadente e seu ego, entre a repórter insegura e seus próprios limites, enfim, irônica, inteligente, controversa, a literatura do Sérgio, uma vítima da pandemia, é das mais impregnadas pelo assombro contemporâneo. 

Apesar de o dramaturgo decadente de Sérgio ser um perfeito exemplo de filho privilegiado do patriarcado, o romance não o defende, o expõe. Se falo da questão de gênero, me lembro de “6 contos da era do jazz”, de F. Scott Fitzgerald (L&PM), outra leitura atual. Fitzgerald é visto como aquele que deu voz à juventude e soube captar a efervescência dos anos de 1920 ao perceber o novo rumo tomado pelas mulheres. Apesar desse reconhecimento, Frances Fitzgerald Lanahan, sua filha com Zelda, anota no prefácio que, embora se encontrem no livro duas mulheres mais ousadas, “ninguém, nestas histórias, beija ninguém, a menos que haja entre tais pessoas laços matrimoniais ou paternos”, e completa: “o livro é inteiramente destituído de sexo, tal como presumimos encontrar nos escritos modernos”. Ou seja, Fitzgerald não foi muito além de colocar mulheres em festas cheias de excessos e em carros dirigidos por playboys, ainda que sua literatura não se resuma a isso. Já Virginia Woolf, lidando com um mundo bem mais conservador — também sem beijos e cenas de sexo —, avançou naquilo em que Fitzgerald não. Em “V. Woolf — contos completos” (Cosacnaify), fica patente que sua literatura é um espaço de reflexão sobre a mulher. Woolf tem um repertório técnico incrível, seus contos são muito diversos, às vezes circunspectos, noutras, atirados. São tristes, filosóficos e, em direção oposta, engraçados. Um vestido pode provocar numa mulher o sentimento mais profundo e obrigá-la a uma exploração vertiginosa do que ela é. Um embate com o marido — a quem a esposa via similaridade com um coelho, percepção que passa a fazer parte da vida íntima do casal — pode fazer a mulher seguir por caminhos próprios. A escritora inglesa, sensível perscrutadora da alma feminina, também conta a história de um casal que se tomou de amores por um cãozinho vira-lata.


10.11.20

O que fiz das minhas leituras de confinamento: I

 Enquanto passava os olhos na lista dos livros que li de março até agora, período de total confinamento, a lembrança e o esquecimento começaram a briguinha corriqueira. Resignado súdito do esquecimento, desconfio de quando a lembrança levanta a voz cheia de si e, então, para evitar virar joguete na mão dos dois, me concentrei na lista pensando no que fiz de todos aqueles livros. E é disso que falo nesta e nas próximas duas crônicas.

O espanto ao ler “Pinóquio”, de Carlos Collodi (Cosacnaify), veio do equívoco de reduzir a história do boneco ao crescimento de seu nariz depois de contar uma mentira. A leitura atual mostrou que essa é a menor questão, Pinóquio nem passa por aquela situação tantas vezes. A história, pra lá de violenta, expressa, na verdade, a forma como somos modelados para servir a um sistema hostil, e Pinóquio só ganha corpo humano quando aceita ser parte daquela engrenagem. Esse entendimento do clássico italiano foi parar em uma personagem de um conto que escrevi; rascunhei, melhor dizendo. É uma jovem que vai viver na rua e, depois que seu pai morre e os irmãos somem no mundo, volta a viver com a mãe. Pinóquio é o que ela não quer ser. E não será.

Num outro conto, o narrador vê na frase “se é para ser, é, e não tem qual é”, pensada pelo menino protagonista, um Hamlet deslocado do Reino Unido para a Maré. Penso que o narrador se referia a “ser ou não ser, eis a questão”, e não seria por um desvario desses que eu enfrentaria a peça de Shakespeare. Decidi por sua leitura quando, ainda no conto, uma senhora, ao proteger o menino que fugia de tiros da polícia, diz outra frase, que, na minha intuição (e não na do narrador), era puro Shakespeare, novamente “Hamlet”. Li o livro para concluir que não, o bardo inglês passava longe dali. A leitura de um livro por conta de uma frase lançada numa história, assim é, às vezes, a vida de um escritor.

As leituras serviram também para ver do que tem falado a literatura brasileira. Ronaldo Guimarães, em “Barbárie em cena” (Miguilim), escreve, como o título sugere, um texto teatral, ainda que não na forma, ao narrar a internação de quatro pessoas de nenhum modo loucas no famoso hospital de Barbacena. O manicômio da cidade mineira, mesmo fechado, continua uma ferida exposta, e Ronaldo, límpido e “leve”, nos ajuda a não nos esquecermos disso. Ádlei Carvalho (“As nove páginas de Alberto Silva”, Coralina) e Claudia Lage (“O corpo interminável”, Record) usam a ditadura como pano de fundo. Ádlei, baseado em um trabalho de pesquisa cuidadoso, conta uma história de amor entre uma mulher de família crítica ao golpe e um soldado do exército vítima da estupidez do regime. Um casal de jovens, no livro de Claudia, busca a história de suas famílias — em uma de suas linhas, o livro lida com os limites da escrita. O corpo interminável começa lá, torturado por aqueles que nosso país mal resolvido ainda aceita como dignos de vivas, e continua, no presente, no homem, na mulher, no filho a caminho. A dor é uma herança corpórea.

No livro de Claudia desponta também a questão feminina, pois quem sumiu nos porões da ditadura foi uma mulher, uma guerrilheira. Branca Maria de Paula, em “Nanocontos” (Quixote +Do Editoras Associadas), como tem sido sua literatura, acompanha a mulher em casa, na rua, no amor, no abandono. O texto miúdo (de onde o nano) é uma tarefa de difícil execução, e Branca faz bonito ao enfrentá-la. Elvira Vigna, em “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” (Companhia das Letras), explora suas habituais personagens femininas, fortes e raras, que fogem a padrões ou a não padrões. A desse livro, por uma série de razões, torna-se confidente de um interventor de uma editora que está prestes a fechar e que adora contar suas aventuras com prostitutas. Ela, que poderia ou até deveria repelir o assunto, o aceita, gosta de ouvi-lo. Não só por isso, uma típica mulher de Elvira Vigna.

A partir de um livro infantojuvenil, “Sete Orelhas”, de Silvinha Meirelles (Ôzé Editora), fiz uma viagem a um mundo que em parte acabou. Comprei o livro ao ver, na página da editora, a autora e suas filhas (uma fez as ilustrações, a outra, o projeto gráfico) contarem como a história, repetida à exaustão na família, chegou até elas. A história de um matador que coleciona orelhas de suas vítimas também se conta em minha cidade, no caso, situando-a nos tempos dos “contendores da morte”, que, em Passos, na primeira década do século XX, culminou com a intervenção do governo de Minas, num episódio conhecido como “a matança do fórum”, que serviu de base para um romance de Mário Palmério, “Chapadão do Bugre”. Li “Chapadão” há muito tempo;  no confinamento li, do autor, “Vila dos Confins” (José Olympio Editora), livro que não se faz mais no Brasil, em grande parte porque o país mudou, a vida rural, apesar da importância atual do agronegócio, não é mais a dos anos de 1950, mas também porque já não temos a esperança daquele momento entre a ditadura de Vargas e a Militar. Por outro lado, não duvido de que, nesse mundo de milícias e exércitos de contraventores, matadores ainda colecionem orelhas arrancadas de suas vítimas.

24.10.20

O breve Narciso

 

“Há um menino / há um moleque / morando sempre no meu coração / toda vez que o adulto balança / ele vem pra me dar a mão” (Milton Nascimento e Fernando Brant)


Minha primeira namorada... ih, agora tive dúvida se foi uma ou outra. Pelo espaço onde se davam nossos encontros — eu morava na rua do Ouro, em Passos —, era a Sá Chica, a cozinheira da casa. Se havia ali o elemento tão horroroso do patrão seduzindo a empregada, o branco, a negra, em minha defesa digo que eu não tinha cinco anos e Sá Chica tinha a sabedoria de quem caminhava pelos sessenta; e mais: foi a única vez que algo semelhante aconteceu comigo. Nosso namoro consistia em eu passar, no meu tratorzinho amarelo todo incrementado, pela porta da cozinha e convidá-la para um passeio. Ela me dizia algo como “mais tarde você me leva para casa”. Isso era tudo. Isso era recorrente.

A segunda poderia muito bem levar a uma tragédia de teatro grego ou de Shakespeare. Meu amor havia sido, se ainda não era, namorada de meu irmão. Vejam o perigo. Nesse namoro, eu nunca fazia a corte, não a convidava para passear no meu calhambeque, nada disso, eu simplesmente a contemplava; ela era minha professora de pré-primário. Meu padrinho chamava, não sei por que razão, a situação em que a pessoa amada ignora que é amada de namoro ou amor de traição, o que não era o caso. Minha professora soube, assim suspeito, pela voz do enciumado irmão ou das descuidadas irmãs, e nem por isso retaliou meu amor, ainda que não o tenha alimentado. Continuou me tratando bem e distribuindo pela sala seu sorriso, que devia ser mesmo o que muniu minha paixão, já que, se fecho os olhos, ainda o vejo.

Naquela época, eu era muito bonito, assim concluo, pois, às vezes, em sala de aula, minhas colegas corriam atrás de mim. Bem, sei lá se isso não é dessas memórias inventadas para falsear a dura realidade ou para nos proteger do primeiro pé na bunda, pouco importa, eu era bonito, e, se a professora não correspondia ao meu amor, minhas colegas se derretiam por mim.

De todo jeito, há um fundo de verdade, não na minha beleza, mas nisso de agradar as colegas. Uma delas, que se mudou de Passos logo depois dessa época — eu nunca mais a vi e soube recentemente que é médica em São Paulo —, ao ganhar um irmão, pediu aos pais que o batizassem com meu nome. A sugestão foi aceita. Nesse caso, creio, para ter uma vida completa eu não precisaria plantar uma árvore, escrever um livro e ser pai, o que eu fiz e sou — no caso dos livros, tenho feito ainda, e no das árvores, quero voltar a fazer —, bastava alimentar o orgulho de saber que, dando meu nome a um pobre inocente, fui homenageado. Vá lá que eu não era bonito, mas tinha um borogodó.

Os meus leitores habituais talvez tenham percebido ao longo do tempo, e, aos que estão chegando, esclareço: não, não sou esse que agora se apresenta, um ególatra alfa encantado diante de um espelho. Hoje, estou tomado pelo menino que fui, aquele ingênuo, Narciso de voo breve, um tipo básico. Aqui quem escreve não sou eu, é ele. E ele escreve como se pingasse sobre mim a última gota da chuva que prepara o amanhã.



12.10.20

A pergunta de Alice

 

Para Stella Maris Rezende, fã das palavras desenganadas


Alice levanta a mão e pergunta qual a diferença entre Política e política. O professor, que está ouvindo, mas não está lendo, não entende a qual diferença ela se refere e pede que se explique. A aluna carrega em Política, fazendo um som grave no “Po”, e abranda em política, que sai quase como “pulítica”. Os demais alunos fazem coro ao professor, ninguém pesca nada. Ela é dessas que, vira e mexe, levam uma anotação na caderneta: “atrapalha os colegas”, “conversa demais”, “ri alto”, mas, quando chegam as provas, acumula seus oito, poucos, nove, alguns, e dez, em enxurrada.

O professor é seu fã. Sabe que ela capta as coisas no ar, que fará provas espetaculares e que, além de tudo e por sorte, é bem-humorada, sociável, tem o que chamam de inteligência emocional. Ele acredita que, depois de cumprida a vida escolar, Alice será uma mulher pronta a ajudar o país a sepultar, sem o esquecer, o passado escravocrata e misógino.

Não lhe sai da cabeça uma história que passou a contar em reunião de professores e, no entusiasmo, também em mesa de bar. Certa vez perguntou aos alunos se algum sabia o significado da palavra “jucundo”. Era uma preparação para a leitura de um texto no qual a palavra apareceria; um texto antigo, é certo. A sala ficou em polvorosa. Logo, grupinhos aqui e ali cochichavam entre si e riam. O professor com quem todos se abriam perguntou qual o motivo da risada. O garoto levado do fundo da sala, sempre ele, inteligente, mas desinteressado dos estudos, falou que devia ter a ver com “cu fundo” ou “cu junto”. A risada foi tremenda, até o professor riu, e não foi diferente com Alice.

Serenada a algazarra, o professor pediu que o arruaceiro lesse a definição no Houaiss. O menino puxou o ar como se inspirasse a contrariedade e leu sem gaguejar: “que manifesta, que denota alegria; feliz, jovial, vivo; que se apresenta ou transcorre de modo agradável, suave, aprazível”. Os alunos se olharam, e Alice não se conteve: “Professor, me desculpe, mas nunca ouvi uma palavra tão triste quanto essa, ela não pode significar alegria, deve ser por isso que deixou de ser usada.” Na visão do professor, essa história mostrava uma Alice perspicaz e sensível, algo além da inteligência celebrada nas avaliações escolares. Os demais professores concordavam com o colega, não por conta da história, e os amigos do bar não entendiam o que uma coisa tinha a ver com a outra.

Mas agora ela fazia uma pergunta estranha. O professor insistiu no pedido de uma explicação adicional. Alice disse então que a diferença estava em que a primeira era com P maiúsculo e a segunda com minúsculo. A sala em peso soltou um ai, um ai jucundo e um pouco irônico, até aborrecido. Era como se dissessem: “Ora, Alice, por que você não passou logo a visão?”

O professor contornou o zunzum dos jovens, elogiou a pergunta e começou a falar sobre substantivos até levar a conversa para os negócios do Estado, da Polis grega, de onde se origina a palavra política. Tendo chegado ao campo da história, mostrou como era importante e nobre a política, e aí não sabemos se ele queria dizer Política ou política, pois não enfrentou a questão. Terminada a explanação, os alunos estavam com seus olhares perdidos, pareciam mais ignorantes do que quando nem passava por suas cabeças esse assunto.

Mapa encontrado em O Globo.

Alice pensou, pensou, coçou o queixo, enrolou os cabelos com o indicador e, então, abriu uma folha grande em que sopas de letrinhas se espalhavam. Setas mostravam que o partido A, inimigo do B num estado, era coligado a ele em outro estado. Em alguns lugares longe dos grandes centros — por exemplo, ali, onde, no passado, Graciliano Ramos atuou como prefeito, — o partido à direita da direita fazia acordos com o da esquerda sem exageros.

O professor sentiu-se acuado, não que a aluna apontasse alguma bobagem no que ele dissera, mas, mesmo assim, sentia-se prensado contra a parede — contra o muro foi a imagem que se formou em sua cabeça. Aproximou-se de Alice, pediu a atenção de todos e foi muito categórico, ainda que falasse suavemente, quase sussurrando: “Não deu certo, moçada, até aqui não deu certo. Mas é preciso insistir, a gente aprenderá que o importante é a política com P maiúsculo. A tarefa é de vocês, a quem peço desculpas”.

Saiu da sala de aula com as mãos no bolso e, pesando sobre as costas, uma tristeza grande e barulhenta, cujo significado, ele tinha certeza, não constava dos dicionários. Estava triste feito a palavra jucundo nos ouvidos de Alice.








26.9.20

Vênus

 Enquanto a tragicomédia de erros, crueldades e mentiras se repete diariamente a partir de um Brasil que dá de ombros para as mortes pela Covid e para o misto de crime e desastre ambiental que abate com força a Amazônia e o Pantanal, cientistas descobriram a existência de gás fosfina em Vênus. Formado pela combinação de fósforo com três átomos de hidrogênio, esse gás, dizem — não conheço, nunca cheirei, só ouço falar —, é fedorento e sobrevive onde há pouco oxigênio, o que é o caso da atmosfera do planeta cujo nome é o mesmo da deusa do amor e lhe foi atribuído por ser, depois da lua, o objeto celeste mais brilhante. Estudos minuciosos analisarão a chance de haver alguma espécie de vida no planeta. Na época em que eu fazia o ensino fundamental e o médio, Vênus era tido como o nosso mais próximo vizinho, mas, de lá para cá, descobriu-se que essa distância depende do ritmo com que os planetas cumprem sua jornada em torno do Sol, ou seja, ora é ele que está coladinho na Terra, ora é Mercúrio. Não importa essa filigrana, o importante é, como eu sempre soube e está por ser confirmado, não somos as únicas vidas na imensidão.




Para mim, apenas um cronista sem dinheiro no banco, mas com um parente importante, já morto, nenhum efeito prático terá a existência de outras vidas em nossa galáxia. Gostaria de acreditar que a humanidade, diante da descoberta, compreendesse a nossa pequeneza e deixasse de lado, da noite para o dia, o egoísmo, a maldade e a ganância, dando adeus à mentira e a todas as formas de obter o poder para fins exclusivamente opressores. Mas não acredito. Não só sou um macaco evoluído (evoluído?) como também sou um macaco velho evoluído. Os homens, derrotem vírus, controlem o aquecimento global, encontrem vidas extraterrestres, não mudarão. Somos o erro dos deuses, o que é uma pena, pois, na minha ignorância, imagino estar ocorrendo em Vênus o que ocorreu na Terra no início de tudo. Deve ser uma “cena” exuberante e intensa, fertilidade em estado bruto.

Debruçados na janela do universo, cientistas acompanharão a evolução desde o zero. Eu, com um pouco de inveja, sugiro a eles e a elas, inclusive a Clara Sousa-Silva, a portuguesa que faz parte da equipa (como dizem os de Portugal), que, nas horas tensas, deem um jeito de avisar aos venusianos para não se meterem por determinados caminhos. Nós os conhecemos muito bem, é uma fria. 

12.9.20

Seis meses

 

Tempo é templo (Sônia Peçanha)


São 19h54m, e um vizinho grita Vasco. No fone de ouvido, Antologia do Violão, de Paulinho Nogueira, um dos primeiros discos instrumentais que curti na vida e que encontrei bem agora numa plataforma de música. Acabei de ver dois filmes em sequência: “A sociedade literária e a torta de casca de batata” (de Mary Ann Shaffer) e “Intriga de estado” (de Kevin Macdonald). O primeiro tem boas sacadas de roteiro — que, contudo, descamba para uma história de amor com final clichê — e uma péssima atriz no papel principal. O segundo, um thriller envolvendo matéria investigativa de um jornal, políticos americanos e interesses privados sobre funções típicas de estado, no caso a segurança, é bem dirigido e bem interpretado, bom divertimento.


Não vejo as séries de que tanto se fala por aí, sou impaciente para acompanhar histórias a serem lançadas em gotas, episódio a episódio, temporada a temporada. (Como eu faria na época em que Dom Quixote ia a público desse modo, folhetim a folhetim?) Ficar na mão de produtores e seus interesses é demais para o caipirinha aqui. Prefiro os livros, os filmes, as músicas e as finais do basquete, que, muito por conta do engajamento dos atletas em relação aos conflitos raciais nos Estados Unidos, assisto com meu caçula.


A vida nesses quase seis meses de confinamento poderia estar restrita a isso ou também a isso, já que não podem ser esquecidas a faxina, a organização das refeições, a disciplina nos pagamentos dos boletos, as conversas do Whatsapp. Não se consegue perder de vista a pandemia e suas vítimas e as vítimas de sempre, haja ou não pandemia, os negros, as mulheres, os pobres. Enfim, os desgovernos (federal, estadual e municipal) nos beliscam segundo a segundo, impedindo qualquer escapismo de nossa parte.


Acontece que o infortúnio é um cão insaciável, pronto a morder as pessoas que amamos. Mesmo consolado pelo violão de Paulinho Nogueira ou maravilhado pelas enterradas de LeBron James, não abandonamos a preocupação com os filhos e os amigos. E não é para menos.


Esse equilíbrio do confinamento, entretanto, foi ferido pela notícia vinda de uma amiga: Sônia Peçanha, dona de uma escrita refinada e contundente, mulher cujo sorriso e cujas poucas palavras dão fôlego para uma vida, não está mais aqui. Em trinta e três anos de convívio em torno de nosso Estilingues, aprendi com Sônia sobre a delicadeza, acompanhei a evolução de seu talento — o texto preciso e poético — e compreendi, a partir dela, o que é uma postura ética frente à criação.


Soninha não foi vítima da Covid-19. Não posso dizer que tenha sido vencida pela estupidez reinante no país, apesar de conhecer seu posicionamento crítico, indignado. De todo jeito, ela se vai quando atravessamos um dos piores seis meses de nossa vida coletiva, seis meses intermináveis, durante os quais envelhecemos duas, três, quatro, ene vezes além do tempo cronometrado.

30.8.20

Outro tipo de cronista

 Na zoologia dos escribas, há o cronista cansado, que, ao contrário do sem assunto, tem muito a dizer, mas não tem fôlego. Sendo assim, desconversa, cochila entre vírgulas e economiza diálogos.

— Não!

— Sim.

— No duro?

— Da cebola.

E o leitor que se esforce para saber se falavam mal do presidente, do ponta-esquerda do Bangu ou se viajavam de um ácido ingerido no verão de 1968 e que, do nada, bateu de novo. Ele que se levante da cadeira e, pela janela, veja o que acontece na rua e descubra a crônica não escrita, sequer rascunhada.

O cansaço não é como a manga, que tem qualidade, ou como o automóvel, que tem marca. Assim mesmo, é fibroso, pode fundir e, quando baixa no lombo do cronista, faz do pobre coitado um procrastinador contumaz, encurtador de frase e espichador de silêncio. Daí, o cronista cansado, só de pensar, sua e, para não piorar, deita-se de conchinha com o vento do ventilador e conta no máximo até dois para não ficar esgotado.

Sou desse espécime, ainda que tenha de esclarecer que... ah, outro dia me explico. Outro dia, mas não fujo de cumprir a função social do cronista, qual seja, preencher um pouco mais a folha em branco. Saio de mansinho deixando um poema um tanto quanto melancólico.


O peixe e o nada



O que do rio se pesca,
o peixe e o nada,
nada por nada,
nada por nadar.

Cumprindo a vida, o peixe
ocupando espaço, o nada.
Jantamos o peixe
depois de almoçados pelo nada,

com quem vamos deitar.





17.8.20

A luta de Emilinho

Se tem alguma coisa que o irrite é ser chamado de Emilinho, tratamento carinhoso que lhe grudou logo na infância e, deixando de ser carinhoso, continuou até depois de ele se tornar um respeitado jovem senhor. Onde já se viu? Tudo bem que o chamassem assim quando era pequeno, afinal de contas Emílio é praticamente sinônimo de circunspecção, qualidade que não se pode cobrar de uma criança, muito menos de uma espevitada feito ele.

Mas, chegado aos 12 anos, isso deveria ter tido um fim. Não teve no seio da família e, pior, contagiou a roda de amigos. Os que frequentavam sua casa ouviram e levaram para a escola, para o futebol. Ainda calhou de ter outro Emílio, bem mais forte e alto, na mesma sala de aula. Emílio era o forte; ele, Emilinho.

E aos 15? Mudança nenhuma, a coisa tinha criado raiz. Ah, Emilinho, me faz companhia. Pô, Emilinho, deixa de ser fominha, passa essa bola. Só faltou alterarem o nome no registro civil. Emilinho GM. Quanta crueldade.

Aos 18, começou a cobrar a mudança. Ao entrar na faculdade, apresentava-se como Emílio e Emílio ficou sendo até que reencontrou, na cantina, a antiga colega de ginásio, Célia; cursariam, naquele semestre, uma matéria eletiva para ambos. Passaram a ir juntos ao cinema, e um levou o outro para conhecer os amigos e, bem, Emilinho saiu da boca de Célia, entrou pelo ouvido de todos e ecoou na faculdade. Emilinho do Direito, isso, aquele crânio. Pois, diga-se a verdade, Emilinho era mesmo um crânio, estudioso e perspicaz. Só não queria ser esse “inho”, mas era “inho” que ele era.  

No estágio, foi Emilinho de cara, veja se um fedelho daquele seria outra coisa. E, se isso é possível, mais Emilinho ficou sendo à medida que todos reconheciam suas habilidades, seu potencial. Nossa, tão novo e tão capaz, eita, Emilinho. Contentava-se com o fato de, na formalidade dos tratamentos no Fórum, chamarem-no de Emílio GM.

A primeira namorada, que não foi a Célia, mas uma amiga dela, vejam só, Tininha, foi responsável pelo pior momento de todo esse imbróglio. Quando os dois chegavam para o chope ou à porta do cinema ou do clube, os amigos logo diziam que os “inhos” haviam chegado, que poderiam então dar início aos festejos, ou entrar na sala, ou mergulhar na piscina. O namoro não durou muito, e Emilinho se distanciou dos amigos para ser Emílio na vida.

Foi, de fato foi, mas não por muito tempo. Passou a ser chamado de doutor Emílio GM por clientes, juízes e advogados em tribunais, acrescido ainda de um vossa senhoria. Fora dali, Emilinho. Até mesmo a secretária — que, no início, cumpria todas as formalidades dispensadas ao chefe — não resistiu quando passou a ter uma segunda função na vida dele, a de namorada e, depois, de esposa. Primeiro nas saidinhas de final de tarde, depois nos primeiros beijos e nos folguedos com que brindavam os corpos, por fim, no próprio escritório, só o chamava de Emilinho. Às vezes, meu Emilinho, noutras doutor Emilinho. Há de se dizer que, apaixonado como nunca havia sido nem jamais seria, esse Emilinho saído da boca de Maria Adelaide soava diferente, nem lhe feria o brio.

Eis que chegou a paternidade, e era hora de dar um basta naquilo. Ninguém é filho de Emilinho. Bilu, bilu, teteia, minha princesa Odalea, este aqui sou eu, seu papai, Emílio GM. A neném deu aquela babadinha típica dos bebês, apertou o dedo do pai e, no que não foi percebido, piscou com ironia os lindos olhinhos. Aos dois anos, chamava o pai de Linho; aos quatro, de Lilinho; aos 15, de monsieur Milinho. O pai morria pela filha, única, soberana, e só via amor em tudo.

A última de Emílio, façamos seu gosto e o chamemos assim, foi pensar que, se na vida comum a coisa fugira de seu controle, no mundo virtual, relativamente novo, em construção, ele poderia fazer-se Emílio GM como de fato era. Criou perfil em todas as redes com um maiusculíssimo EMÍLIO GM. Inteligente, planejou uma estratégia para aparecer. Nadando numa onda que surgia, fez de seu perfil um destilador de falsas acusações a políticos que insinuavam alguma preocupação social. Eram todos comunistas, ateus, inimigos da família.

Sucesso. Sucesso absoluto. Sucesso tão estonteante que em pouco tempo lá estava ele em manifestações conservadoras, às quais ia sempre com uma camiseta verde e amarela com um imenso EMÍLIO GM no meio do peito. O nome — mais que nome, marca — passou a ser gritado por todos e pintado em camisetas, que apareciam, manifestação a manifestação, aos montes. A glória. Mais que glória, milagre. Antigos amigos do então Emilinho, ao se reencontrarem com esse arauto do conservadorismo, passaram automaticamente a chamá-lo de Emílio. EMÍLIO GM. A glória.

Hoje, ao voltar de uma dessas aglomerações, EMÍLIO GM encontrou um bilhete assinado a quatro mãos, as duas de Maria Adelaide e as duas de Odalea. Nele estava escrito: “Emilinho, não gostamos disso em que você se transformou. Passar bem.” 

1.8.20

Augustinho Sentinela

Augustinho era quase adolescente quando ouviu de um amigo do pai que bom, bom mesmo, era a ditadura, tempo de foco e retidão, quando ninguém ficava se perdendo em devaneio, pensando em coisa ruim, aberto ao pecado.

O rapazola gostou de saber que na ditadura havia foco. Foi um bálsamo para suas angústias — que ele, crendo-se muito criativo e até irônico, tratava como angústias augustinas —, pois não conseguia mais viver sempre questionando tudo, inclusive determinados assuntos delicados. Delicados, sim, pois, de vez em quando, ele olhava os moços da mesma idade e até os mais velhos com um olhar carregado de suspiros. Ah, isso não, não macularia o nome da família. Que viesse a ditadura e arrastasse o mal e o pecado para longe, implorava aos céus.

Nessa época, aproximou-se de Deus, quer dizer, na sua visão, aproximar-se de Deus era primeiro fazer a catequese e depois frequentar com assiduidade a igreja. Ajudava na missa e, fora dela, cuidava para que tudo estivesse certo quando o pastor falasse a seu rebanho. Tornou-se um auxiliar do sacristão, um homem com seus 30 anos de muita energia e olhos pretos e magnéticos. Augustinho teve de combater o diabo na casa do Pai. Pelas barbas do profeta, de todos os profetas, dos apóstolos e santos, amém!

Deus era bom e clemente, mas a ditadura, pensava Augustinho, é que acabaria com os seus tormentos, terrenos todos eles. Assim, começou a pesquisar como poderia seguir a carreira militar, pois os militares é que, tendo implementado a ditadura uma vez, implementariam uma segunda. Quando ela chegasse, Augustinho, que já seria Augustão, estaria entre eles, talvez os liderasse. Abraçar a profissão, no entanto, só depois dos 18 anos; havia uma adolescência inteira pela frente.

Agarrou-se mais e mais às orações, o que não o impediu de cometer uns pequenos pecados no isolamento do banheiro e de espichar olhos para o sacristão, para o Merval, aquele bronco do sexto ano, do sétimo, do oitavo... Apesar disso, chegou aos 18 incólume, Deus misericordioso o conservou assim.

A mãe se derretia pela candura do filho. Nem se tivesse feito promessa, Deus a presentearia tão bem. O pai via no menino sinais de novos tempos, estranhos para ele, estranhos até demais, mas certamente melhores, com homens dedicados à família e menos truculentos. Enfim, tudo soava bem e melhorou ainda mais quando o casto anunciou que, servindo ao exército por conta da idade, depois seguiria carreira. Seria general e promoveria a ditadura. A mãe chorou de doce emoção. O pai aplaudiu e, não contendo a alegria, escarrou pela janela.

O exército não era muito diferente da escola, havia jovens de ambos os sexos, aulas e momentos de recreação. A diferença era o empenho físico cobrado. Augustinho, um menino franzino, aparentemente frágil, se revelou, tomou gosto pelos esportes, se destacou nos treinamentos de campo, tornou-se um atleta.

Se as tentações do pecado não lhe deixavam em paz, descobriu que sua força de vontade era maior. Via-se, no futuro, solteiro. Com mulher não se casaria e com... do resto Deus cuidaria como cuidara até então. Seu projeto de vida era acelerar a chegada da ditadura para livrar outros jovens do sofrimento por que ele passava. O mundo deixaria de produzir Augustinhos, quer dizer, não aflorariam angústias augustinas em mais ninguém.

Mas como se tornar um ditador?

Descobriu que ditador torturava. Estudou todas as torturas possíveis e achou por bem experimentar algumas no próprio corpo. De vez em quando, dava um choque embaixo da unha, ficava de cabeça para baixo dez, quinze minutos. Aprendia na pele o que aplicaria como corretivo aos inimigos e, verdade seja dita, se a intensidade do choque fosse maior ou se fosse amarrado em pau de arara, ele responderia a qualquer pergunta, até as de cunho íntimo, nomeando inclusive o que escondia de si. Nessas horas, a lembrança do amigo do pai surgia do nada só para lhe soprar novamente que bons tempos eram os da ditadura, de foco e retidão.

Augustinho virou sentinela. Muito atento aos arredores do quartel, o futuro ditador, moço inexperiente, deixou desguarnecida a retaguarda, que, sem que fosse convidado, passou a ser visitada pelo temido Capitão Expedito, apelidado em cochichos de caserna por Dito Duro. Os mesmos que apelidaram o capitão passaram a debochar de Augustinho, aquele que teria trocado, na marra, a dita pelo dito, a dura pelo duro.

Augustinho estacionou no posto de soldado raso e, não tardou muito, foi desligado do exército. Quando a mãe soube de tudo e mais um pouco, chorou de uma emoção amarga toda vida. O pai, tomado pela ira, escarrou no chão da sala e proibiu o filho de botar os pés naquela casa.

Sem família, sem Deus — que a seu ver lhe virou as costas — e tendo experimentado, do pecado, apenas a dor, Augustinho vive por aí, anda pelas ruas e planeja com seus botões, e só com eles, tornar-se mais cedo ou mais tarde um ditador.


17.7.20

Adolfinho em faxina



Como há males que vêm para o bem, Adolfinho viu na quarentena uma oportunidade de assumir tarefas e zerar dívidas afetivas. Cuidaria da própria refeição, que seria leve, lavaria a roupa, limparia a casa. Leria, ouviria seus bolachões esquecidos no alto do armário, assistiria aos caubóis de que tanto gostava e a outros filmes. Folhearia os álbuns de família e os que mantinha com fotos de seus namoros. Uma parada para reposicionamento. Há males que vêm para o bem. 

Ao tirar os primeiros tufos de poeira do chão da sala, no início da quarentena, Adolfinho ficou espantado. Como era possível que tudo aquilo estivesse ali e ele não visse? Pensou então em Gerusa, a arrumadeira, e foi um pensamento fugaz e indefinido. Quando, em seguida à faxina, a dor nas costas obrigou-o a fazer compressas e tomar um analgésico, voltou a pensar em Gerusa, dessa vez com... saudade foi a palavra que encontrou, mas não era bem o que sentia. 

Quando viu umas lagartinhas entre as folhas de alface, teve ímpeto de jogar tudo no lixo. Suspirou, fez uso da razão, óbvio que algo vindo da terra traria alguns bichinhos estranhos. Correu à internet em busca de uma dica de como lidar com a situação. Paciência, muita água em cada uma das folhinhas, que depois deveriam repousar numa mistura de água com água sanitária. Na dúvida, fez o mesmo com o tomate. Quando viu as mãos ressecadas, pensou em Gerusa com... saudade foi a palavra que encontrou, mas não era bem o que sentia. 

Quando ajoelhou para limpar o vaso sanitário, preparou-se para vomitar, pois, naquela posição, naquele lugar, o corpo só se lembrava de ter estado para vomitar depois de uma bebedeira. Adolfinho controlou-se. Olhou para o que tinha à mão: desinfetante, antibactericida, saponáceo. Fazer uso de tudo, com moderação, deixaria o vaso limpo e asséptico. Poderia passar a esponja do lado de fora e do lado de dentro? E depois poderia utilizá-la na pia? E para a pia bastavam essas coisas? O que usar nas torneiras? Quando sentiu uma fisgada nas costas e percebeu que umas manchas marrons no interior do vaso não saiam de jeito nenhum, Adolfinho pensou em Gerusa com... saudade foi a palavra que encontrou, mas não era bem o que sentia. 

Não demorou muito, ligou para Gerusa. 

— Seu Adolfo, tudo bem? Aconteceu alguma coisa? 

— Não, Gerusa. É que... — percebeu que não sabia por que ligara. Saudade? Vê lá se sentiria uma coisa dessas por ela. Nutria um desejo de convencê-la a voltar ao trabalho, nada de ruim aconteceria. Algum pudor o impediu de ir adiante. 

— Seu Adolfo? 

— Gerusa, liguei para saber se está tudo bem, só isso. Se cuide. 

Quando Adolfinho sentou-se na sala, depois de uma manhã de limpeza e reuniões virtuais, soube pela televisão de Miguel, o menino de cinco anos que morreu por negligência da patroa de sua mãe. Adolfinho pensou em Gerusa com... dessa vez, nem lhe passou pela cabeça o sentimento de saudade; sentiu vergonha. 

Foi fazer a sesta. A palavra vergonha ecoava no ritmo dos pés, que se deslocavam da sala para o quarto. O que fazer com a vergonha? Não soube responder àquela hora, e a dúvida sumiu no sono. Ao acordar, café tomado, ligou e pediu a Gerusa que voltasse, não lhe aconteceria nada e a saudade estava grande, muito grande.

6.7.20

Para nada

Hoje estou apenas para cantorinhar. Ou para catar piolho em cabeça fresca de criança, mas não há criança por aqui, muito menos com piolho.

Não estou é para nada, estou apenas para o passar do sol, como dizia meu tio Ellin. Mas, devo confessar, hoje não há sol. E, vira e mexe, venta. Não é o tal ciclone-bomba que varreu Santa Catarina e Paraná, mas, preveem, não será uma brisa nordestina, uma daquelas deliciosas que serviam de argumento para Bandeira, disposto a abandonar amigos, livros, riqueza e vergonha, convencer sua amada, Anarina, a — deixando para trás filha, avó, marido e amante — mudar-se com ele para Pernambuco, Paraíba, um desses paraísos lá de cima do mapa onde se pode viver de brisa. O ventinho, nem ciclone nem brisa, vai atiçar o mar, levá-lo à ressaca.

Estou para rever filmes, mas, admito, a experiência na sala de casa não me agrada. Gosto do processo de ir ao cinema, principalmente o de rua. Sair do apartamento um pouco antes, comprar ingresso, correr à livraria, folhear as novidades, beber um café, quem sabe comer um pedacinho de bolo e comprar uma garrafa de água na farmácia ou na banca de jornal, onde, aprendi, é mais barato. Ver ou rever filmes agora é na sala e ponto. Se der sorte, os demais confinados fazem companhia; se não, enquanto na tela a moça e o moço trocam olhares, ou um malvado planeja “o” crime, ou uma mulher anda sozinha por um jardim de uma cidade a que nunca fui ou irei, os colegas de infortúnio passarão na frente da tela ou conversarão qualquer assunto sem se importarem com o atento telespectador de filmes que já viu.

Cenário de Dogville
Um problema adicional: onde encontrar os filmes para rever? Não sou bom explorador do submundo da internet e, mais, de alguns filmes guardo uma leve recordação da história, e é tudo. Como aquele francês, uma crônica linda, em que uma moça cuidava do gato de um vizinho que precisou viajar. Com essa exígua informação, como vou achar o filme, me expliquem. Emendo um outro assunto. Vocês concordam que certos filmes se assemelham a uma crônica, outros a um conto — dou como exemplo “A noiva do deserto”, de Cecilia Atán e Valeria Pivato, ou “A janela”, de Carlos Sorín, ambos de nossos vizinhos chilenos e argentinos — e outros a um romance — um tantão deles? E há também os que são teatro. Aliás, o aparentemente mais teatral de todos, Dogville, do dinamarquês Lars von Trier, que se passa num palco, com os cenários desenhados a giz no chão, é, a meu ver, o menos teatral. Ali o cinema mostrou todos os seus truques. Eu deveria rever o filme, mas, repito, onde encontrá-lo? Meus companheiros de confinamento gostarão de ver?

Ah, hoje não estou para nada, estou apenas para regar minhas dúvidas e, aqui e ali, cantarolar músicas que não sei a letra nem de quem são.