23.9.23

Em busca do ouro

 Na classe média estamos os nem lá nem cá, muitos cobiçando o andar de cima, oásis da opulência, outros de olho no de baixo, para onde não querem voltar ou despencar. Diríamos que somos um aglomerado desigual e propício a intensa e merecida piada.

Sonhamos com a Disney e, se conseguimos chegar lá, somos vistos como verdadeiros patetas, a tal ponto que, aqui e ali, nos repreendem. Vocês são muito novos para se lembrarem de Pepeu Gomes e Baby Consuelo barrados no parque. Mickey e seus amigos consideraram a figura do casal roqueiro — cabelos e roupas bem coloridos, uma bobagem aos olhos de hoje — muito chamativa, capaz de roubar a atenção dos demais frequentadores. Tem cabimento usar Pepeu e Baby como exemplo da classe média? Não se iludam, pertencem a ela tanto quanto eu — e talvez você — e podem ter ganhado algum dinheiro, mas, sei lá, nunca permaneceram na lista dos mais tocados, nem daqueles que batem ponto nos programas de auditório badalados. E ainda se separaram, e ainda tiveram muitos filhos. Além do mais, a classe média é um território bem extenso, bastante habitado e com diferenças gritantes entre os quase ricos e os por muito pouco fora da pobreza.

Em 2015, a Piauí publicou uma reportagem do escritor norte-americano Walter Kirn. É um texto típico do que se convencionou chamar de jornalismo literário, uma peça que conta a história aos poucos, enchendo-a de pormenores saborosos que, não raro, esclarecem os interesses do jornalista ao contar aquilo. No caso, Kirn resolve levar um cachorro — que, depois de um atropelamento, ficou paralítico e só conseguia andar com um carrinho que lhe era acoplado à parte traseira do corpo — de Montana à cidade de Nova York para entregá-lo à pessoa que o adotou: ninguém mais, ninguém menos que um Rockefeller. A estranheza de um milionário (não um qualquer) se interessar por um cachorro que lhe daria muito trabalho e talvez tivesse uma vida curta motivou o escritor, que viu nessa história material para um possível novo livro. Na verdade, o Rockfeller não era um Rockfeller, e sim um golpista que, não se sabe muito bem como, vivia em altas rodas sem ser desmascarado e mantinha peças de artes caríssimas (Mondrian, Motherwell, Pollock e Rothko). Mesmo achando o sujeito excêntrico, Kirn manteve uma relação (até mesmo uma amizade) com o golpista de 1998 a bem depois, sem desconfiar de suas trapaças. Em 2013, a farsa do milionário veio à tona. Descobriu-se que muitos anos antes ele havia cometido um crime. A reportagem não esclarece como o alemão (sim, era um estrangeiro) chegou tão longe, quer dizer, como deixou o anonimato da classe média e tornou-se um rico de pedigree, nem rico, nem com pedigree. Conheço histórias não desse quilate, mas com o mesmo princípio. Na minha cidade, havia um homem, pai de amigos, que certa vez vendeu um terreno em Belo Horizonte, e o comprador só se deu pelo golpe quando, indo registrá-lo, descobriu que sua nova propriedade estava submersa na Lagoa da Pampulha. O meu conhecido não foi exitoso como o alemão, mas nunca se emendou e viveu tentando dar o pulo do gato, sem, contudo, conseguir deixar o porão onde se amontoa a ralé dos remediados.

Em tempos de internet, além dos golpes virtuais, há outros meios de alcançar — ou pelo menos de tentar — a riqueza. A classe média sabe ocupar um espaço honesto, mesmo aqueles que os falsos moralistas apedrejam sem dó. Soube ainda esta semana de uma moça muito jovem que, vendo-se em apuros financeiros, começou a obter likes de homens e mulheres em sites adultos. Não é a única que se aproveita da imagem, mas ela vai além e se exibe transando com parceiros de ambos os sexos, o que também não é uma grande novidade. Ela inova ao abordar homens na rua e perguntar-lhes coisas assim: “Tapa ou beijo?”; “Dois reais ou um presente secreto?” Isso foi considerado abusivo e gerou uma campanha de cancelamento contra ela. Apesar disso, ou exatamente por isso, seus seguidores em redes sociais nas quais é possível compartilhar conteúdo erótico só têm aumentado. Hoje ela estaria faturando algo como cem mil reais por mês.

A classe média tem aqueles que não dormem no ponto. Com astúcia e sorte, podem dormir na cobertura da pirâmide da distribuição de renda, mas, presos ao destino irônico, quase sempre amanhecem na pindaíba de sempre — ou mais além.

11.9.23

Viajando na maionese e na abobrinha

Não faz muito tempo, li “Madame Bovary”, de Flaubert. O autor e o editor da revista em que o romance foi publicado tornaram-se réus porque, aos olhos de seus contemporâneos, o adultério – feminino, se fosse o masculino estava tudo certo, sabemos bem disso – teria ganhado certo glamour naquelas páginas. Não é bem assim, quem leu sabe o fim da intensa Emma, a madame. (Espero que essa pequena confidência não seja vista como spoiler e afaste possíveis leitores.) Não vou analisar ou fazer uma resenha do “romance dos romances”, pois não tenho interesse nem os apetrechos exigidos pela empreitada – sou apenas um leitor amador. Trago-o à tona porque fiquei pensando se nosso “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, não seria um “Madame Bovary” do ponto de vista do monsieur Bovary, que, como todos sabem, inclusive quem nunca leu o livro, é um corno. Corno manso, devo acrescentar, na esperança de atrair novos leitores ao romance francês. De quebra, também ao brasileiro.

Retomei uma leitura de muitos anos atrás e dessa vez fui com ela até o fim: “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso, um livro e tanto, no tamanho (umas 500 páginas) e na qualidade. Quando vejo autores contemporâneos explorando, num mesmo texto, vários narradores, fico pensando que um dos que mais souberam fazer isso foi esse mineiro de Curvelo. Desse ponto de vista, ele é um mestre, e a obra um primor. Mas Lúcio Cardoso (não sei se por pressão externa de pré-leitores ou do editor, ou se interna, a pior delas) não manteve sua história no extremo. Quando nos acostumamos com o fato de o clã dos Menezes ter cruzado a fronteira da moral burguesa, a trama recua e nega o horror, bem, isso até onde seria possível negá-lo naquela altura do romance. No prefácio da publicação comemorativa de quarenta anos da primeira edição, lançada em 2000 pela Civilização Brasileira, André Seffrin diz que “se o último capítulo dilui e desfibra boa parte da tensão e do enigma que o livro encerra, e se no todo a narrativa deixa transparecer um engenho demasiadamente literário, estes detalhes são infinitamente pequenos ante o poder extraordinário da poesia que se levanta destas páginas”. Concordo, e isso me faz pensar no que seria um bom romance. Na realidade, não sei, mas anoto que pelo menos uma – quem sabe duas – de suas partes deve ser muito boa: a história, o texto, a estrutura... ou a coragem de quem o escreve. Flaubert é corajoso. Machado de Assis é corajoso. Lúcio Cardoso é corajoso. Clarice Lispector, Carolina Maria de Jesus, Hilda Hilst, Maria Valéria Rezende são corajosas. Viva a coragem, mesmo aquela – ou principalmente ela – que não tem nada de clara e triunfante.

Troco o assunto literatura por um ameno: comida, que, aliás, dá título a esta crônica em que uso maionese e abobrinha para expressar uma conversa inconsequente, meio à deriva. Sem querer armar confusão, afirmo de forma contundente: a segunda melhor comida do mundo é o pão de queijo. Não os deixarei sem saber qual é a primeira, claro. Num texto em que dei até spoiler, vou esconder uma coisica à toa? A melhor comida do mundo é o pão de queijo da Nilzinha.

Não há comida sem bebida, mesmo os médicos dizendo que é melhor não misturá-las durante as refeições. Olha só, médico nenhum me disse isso, mas essa “verdade” zanza por aí muito antes da existência da internet. Essa, sejamos sinceros, só dá celeridade a assuntos candentes, que despertam apenas o nosso – reles rudes, giróvagos mesmerizados – interesse. Me lembro que em tempos pré-redes sociais uma de minhas irmãs foi convencida de que o jeito mais fácil de emagrecer seria comer com uma colher pequena. Ela adotou a estratégia e, de fato, emagreceu, mas não naquele momento, e sim muitos anos depois, quando já havia abandonado a tal colherzinha, deixado de comer doce e virado rata de academia. Ela é enxutinha agora, passados uns tantos anos após ter recebido a preciosa dica. Se estivéssemos entre 2020 e 2022, interstício do nosso aprisionamento, chamaríamos aquela divulgadora da ciência para nos dizer se a dieta do talher miúdo é comprovada e eficaz, mas, agora que ela cutucou até Freud, parece mais sensato deixá-la de lado e mudar de assunto.

Aliás, não vou mudar de assunto, e sim fugir do enorme parêntese em que me meti. Eu ia falar de bebida e acabei expondo minha irmã e desferindo indelicadezas contra quem eu nem conheço. Falemos de bebida. Não sei se vocês tomam, assim na maciota, um drinquezinho ou uma cervejola. Caso não bebam, não vou aconselhá-los a beber, haja vista que o álcool faz um mal danado e não raro leva ao vício – o que está comprovado, mas há de se pesarem os prós e os contras, pois, nas pesquisas divulgadas até a semana passada, o vinho tinto chileno é visto como um elixir cardíaco. Se você, correndo os riscos do vício e da cirrose, toma um gole aqui e outro ali, preciso dizer o seguinte: beba água entre uma talagada e outra. Não sei se está provado pela ciência – ainda que minha irmã, aquela da dieta, tenha visto na internet que sim –, mas, no meu caso, atenua bem a inevitável ressaca.