Na classe média estamos os nem lá nem cá, muitos cobiçando o andar de cima, oásis da opulência, outros de olho no de baixo, para onde não querem voltar ou despencar. Diríamos que somos um aglomerado desigual e propício a intensa e merecida piada.
Sonhamos com a Disney e, se conseguimos chegar lá, somos
vistos como verdadeiros patetas, a tal ponto que, aqui e ali, nos repreendem.
Vocês são muito novos para se lembrarem de Pepeu Gomes e Baby Consuelo barrados
no parque. Mickey e seus amigos consideraram a figura do casal roqueiro —
cabelos e roupas bem coloridos, uma bobagem aos olhos de hoje — muito
chamativa, capaz de roubar a atenção dos demais frequentadores. Tem cabimento usar
Pepeu e Baby como exemplo da classe média? Não se iludam, pertencem a ela tanto
quanto eu — e talvez você — e podem ter ganhado algum dinheiro, mas, sei lá,
nunca permaneceram na lista dos mais tocados, nem daqueles que batem ponto nos
programas de auditório badalados. E ainda se separaram, e ainda tiveram muitos
filhos. Além do mais, a classe média é um território bem extenso, bastante habitado
e com diferenças gritantes entre os quase ricos e os por muito pouco fora da
pobreza.
Em 2015, a Piauí publicou uma reportagem do escritor
norte-americano Walter Kirn. É um texto típico do que se convencionou chamar de
jornalismo literário, uma peça que conta a história aos poucos, enchendo-a de
pormenores saborosos que, não raro, esclarecem os interesses do jornalista ao
contar aquilo. No caso, Kirn resolve levar um cachorro — que, depois de um
atropelamento, ficou paralítico e só conseguia andar com um carrinho que lhe era
acoplado à parte traseira do corpo — de Montana à cidade de Nova York para entregá-lo
à pessoa que o adotou: ninguém mais, ninguém menos que um Rockefeller. A
estranheza de um milionário (não um qualquer) se interessar por um cachorro que
lhe daria muito trabalho e talvez tivesse uma vida curta motivou o escritor, que
viu nessa história material para um possível novo livro. Na verdade, o Rockfeller
não era um Rockfeller, e sim um golpista que, não se sabe muito bem como, vivia
em altas rodas sem ser desmascarado e mantinha peças de artes caríssimas (Mondrian,
Motherwell, Pollock e Rothko). Mesmo achando o sujeito excêntrico, Kirn manteve
uma relação (até mesmo uma amizade) com o golpista de 1998 a bem depois, sem
desconfiar de suas trapaças. Em 2013, a farsa do milionário veio à tona. Descobriu-se
que muitos anos antes ele havia cometido um crime. A reportagem não esclarece
como o alemão (sim, era um estrangeiro) chegou tão longe, quer dizer, como deixou
o anonimato da classe média e tornou-se um rico de pedigree, nem rico, nem com
pedigree. Conheço histórias não desse quilate, mas com o mesmo princípio. Na
minha cidade, havia um homem, pai de amigos, que certa vez vendeu um terreno em
Belo Horizonte, e o comprador só se deu pelo golpe quando, indo registrá-lo,
descobriu que sua nova propriedade estava submersa na Lagoa da Pampulha. O meu
conhecido não foi exitoso como o alemão, mas nunca se emendou e viveu tentando
dar o pulo do gato, sem, contudo, conseguir deixar o porão onde se amontoa a
ralé dos remediados.
Em tempos de internet, além dos golpes virtuais, há outros
meios de alcançar — ou pelo menos de tentar — a riqueza. A classe média sabe
ocupar um espaço honesto, mesmo aqueles que os falsos moralistas apedrejam sem
dó. Soube ainda esta semana de uma moça muito jovem que, vendo-se em apuros
financeiros, começou a obter likes de homens e mulheres em sites adultos.
Não é a única que se aproveita da imagem, mas ela vai além e se exibe transando
com parceiros de ambos os sexos, o que também não é uma grande novidade. Ela
inova ao abordar homens na rua e perguntar-lhes coisas assim: “Tapa ou beijo?”;
“Dois reais ou um presente secreto?” Isso foi considerado abusivo e gerou uma
campanha de cancelamento contra ela. Apesar disso, ou exatamente por
isso, seus seguidores em redes sociais nas quais é possível compartilhar
conteúdo erótico só têm aumentado. Hoje ela estaria faturando algo como cem mil
reais por mês.
A classe média tem aqueles que
não dormem no ponto. Com astúcia e sorte, podem dormir na cobertura da pirâmide
da distribuição de renda, mas, presos ao destino irônico, quase sempre amanhecem
na pindaíba de sempre — ou mais além.