Comecei a gostar de música quando era miúdo de tudo, criado num ambiente em que não era raro ter cantoria, com sanfona e violão. Nascido no interior de Minas Gerais, a música caipira – que, para diferenciar da sertaneja atual, ganhou o sobrenome raiz – sobressaía às demais, ainda que, numa casa de irmãos mais velhos e antenados, eu ouvisse desde os primeiros passos de um Chico Buarque até os garotos de Liverpool que disputavam a fama com Jesus Cristo. Depois, na adolescência das décadas seguintes, para desespero de mamãe, o Pink Floyd e mais tarde o Queen fizeram pouso e escândalo na nossa casinha no Beco dos Aflitos. Ao contrário de muitos amigos, não deixei de lado a MPB, e Milton Nascimento tratou de abrir a porta de um mundo amplo e diverso.
Foi um movimento natural querer ser um compositor de música
e letra. Por sorte, nada do que fiz permaneceu, ainda que eu me lembre de trechos
como: “você que faz minha cabeça vem comigo pr’eu não parar” (parceria com meu
primo Paulinho de Araçatuba); “Conrado, hoje jornal fechado, ilusão de tê-lo sempre
ao meu lado”; “Luz e companhia, um fósforo aceso na madeira podre do coração
azul”. Sabe-se lá por quais motivos guardamos coisas assim e esquecemos nomes,
senhas, o caminho de casa em dia de porre homérico, mas isso não importa, o que
vale é que a música me ajudaria a escrever meus contos (não guardei o primeiro,
mas sei do que tratava: um funcionário da Petrobras via uma sujeira no chão da
sala de sua casa e refletia sobre ela), poemas e crônicas. Esse estímulo seria
intensificado quando, um pouco depois, cheguei, como ouvinte, à música instrumental:
um pouco de chorinho, de violão e piano brasileiros, depois jazz e umas investidas
na música clássica.
Se eu, escritor principiante, não tivesse nenhuma ideia, me sentava
diante do computador, ligava uma música sem palavras e, não demorava muito, surgia
ali na tela uma frase e logo depois outras tantas que vinham em companhia ou
socorro da primeira. Bem diferente de hoje: se começo a escutar música no meio da
noite, batata: vou ficar no fone até duas, três da matina, sem fazer nada além
daquilo. Nada? Ora nada, a música é uma amante sem corpo que liga todas as
máquinas de minhas fantasias, sem me dar o alento do gozo final. Vou querer (e
poder) sempre mais. O problema será encontrar forças no dia seguinte. Por isso,
tenho preferido manter a audição como uma atividade diurna, a melhor companhia nas
caminhadas feitas nessa paisagem chamada Rio de Janeiro. Mas não é a mesma
coisa. Na caminhada, a música é apenas uma presença discreta, um, como diria Marisa
Monte, barulhinho bom. O fato é que a música já não me faz escrever – até mesmo
atrapalha –, mas não consigo considerá-la apenas um entretenimento. Vou contar
uma historinha que ilustra bem isso.
Dia desses, eu fazia uma coisa rara: ver vídeos no Youtube. Assistia
distraído à playlist do Duo Metafonia, mais ouvindo do que vendo. Batucava
os dedos, balançava o corpo, mas aos poucos a voz, as melodias, os instrumentos,
os arranjos e as letras foram pedindo uma atenção mais aguda. Como bom mineiro,
me perguntei que trem bonito era aquele.
Que trem bonito é aquele? Já bem atento, fui me respondendo:
é o trem que trafega na tradição nobre da nossa cultura, de músicos que, compondo
agora, estão sendo parceiros de Chiquinha Gonzaga ou de Sueli Costa, de Caymmi
ou de Roberto Mendes, de Noel Rosa ou de Aldir Blanc. O Duo Metafonia (@metafonia.duo,
no Instagram) fala com a tradição, a rearranja e, como os grandes, joga para o
futuro uma versão modificada dessa tradição. Enfim, produzem um som sem firula
e sem mesmice.
Nora Fortunato – poeta e violoncelista da Orquestra Petrobras
Sinfônica – e Walter Ribeiro – músico popular e cria da Bahia – fazem música para
criança (no Spotify, Cirandaê) e para adulto. Assim como Vinícius e sua “A Arca
de Noé”, o duo vê na criança uma inteligência a ser respeitada e provocada. Quando
se volta aos adultos, alcança aquele ponto em que a música é simples, mas não simplória,
é sofisticada, mas não excludente. Nora e Walter compõem e escrevem caprichados
arranjos. Além disso, transformam uma história do João Paulo Vaz em música para
criança e revelam o Nuno Rau como um letrista tão bom quanto o poeta que é.
Estaria diante de um duo bom de ouvir não fosse o caso de a Nora e o Walter terem-se tornado meus amigos, um desses que convidam a sua casa e servem cerveja, que bebo sem moderação. Servem também um bonito estrogonofe, que eu, saciado pelo violão e pela voz do Walter e pelo contracanto do violoncelo da Nora, me privo de comer.
5 comentários:
Linda estória, if music be the food of love...abs David .
Show de tudo!
Obrigado, David e Afonso. Se há música, bailemos!
Que bela crônica, Xandão! Viva a Música!
Bia, querida, escrevendo esse texto, pensava em você, também no David, em amigos que fazem da música a própria vida.
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