31.8.22
“O SOL PELO BASCULANTE” (Urutau, 2022), poemas de Alexandre Brandão
27.8.22
De última hora
A caminho da mesa no fundo do bar, o cronista comanda um chope e uma porção de amendoim ou azeitona, o que for mais fácil. Senta-se de frente para a porta, pois não quer perder um só acontecimento. O garçom deixa seu pedido e volta para perto do outro garçom. Ambos se colocam bem na entrada, um à direita, o outro, cotovelo apoiado no balcão, à esquerda. O da direita mexe no celular, o outro olha a rua. O cronista pensa no distanciamento, na incomunicabilidade. Sorve um bom gole do chope, que está bem tirado e na temperatura ideal. Ele gostaria de desejar muita coisa na vida, mas, no fundo, o chope é o máximo a que chega. Fora isso, cultiva um nada de vaidade, que é uma espécie de desejo insaciável.
Bate o dedo indicador na mesa, mas, sem produzir som para
não chamar a atenção do garçom, não precisa dele. O dedo, obedecendo a uma
música que só toca dentro do cronista, dança. O garçom do celular se aproxima
do outro, mostra qualquer coisa na tela e os dois riem. Quer dizer, o que não
se desgruda do aparelho ri desbragadamente, o outro, aquele que deixou o chope
e a azeitona na mesa, é mais contido, talvez tenha sido apenas educado.
De vez em quando, ao passar pela calçada, alguém cumprimenta
os garçons ou o atendente de balcão. Uma jovem senhora avisa que virá mais
tarde, tem uma amiga do interior em sua casa e faz questão de que ela experimente
as pataniscas de caranguejo. O cronista se dá conta de que, apesar de frequentador
assíduo, jamais comeu daquela iguaria. Quando vai além da azeitona e do amendoim,
repete o peixe à milanesa, acompanhado de arroz não com brócolis, mas de
brócolis — uma licença poética, uma delícia culinária. No bar, estão ele, os dois
garçons — um distraído com o celular, o outro retraído, talvez pensando em boletos,
problemas familiares ou cultivando nostalgias —, o atendente do balcão e a
turma da cozinha, gente que a despeito do pouco movimento tem muito trabalho; cortam
cebola, descascam e amassam alho, limpam carne, preparam a massa do bolinho de
bacalhau, fazem sabe-se lá o que com o caranguejo, recheiam pastel, amolam facas,
cantarolam. Da mesa, é possível ouvir um pouco da comportada algazarra.
Ainda hoje deverá enviar a crônica à revista. Não tem ideia
do que escrever. O bar vazio vezes o vazio daqueles poucos homens à espera dos
clientes vezes o vazio do próprio cronista resulta em nada. Pede mais um chope
e um novo potinho de azeitona. Chega a pensar em beber uma dose, uma cachaça
mineira, mas desiste, afinal, há uma crônica a ser escrita. Uma crônica a ser
escrita e nada a dizer. Ou por outra: há o que dizer. O governo continua
péssimo. O amor não se cansa de bater com a cara na porta. A comédia toma conta
das ruas, das mesmas ruas que servem de cenário à decadência. Sim, não falta
assunto, mas o cronista não quer lidar com eles. Sua pretensão é observar e falar
do que pouco se revela.
Dado o prazo apertado e a delícia do chope que o deixará
mais tempo no bar às moscas, talvez não lhe reste outra saída a não ser a de
escrever a crônica da falta de assunto. Chegar a esse ponto é a derrota, pelo
menos a dele, que não é nenhum Braga ou Mendes Campos; nenhum Pelé das letras.
Pede o terceiro chope e, vá lá, um chorinho de uma daquelas
de Salinas. Antes de a cachaça descer goela adentro, deixa-a descansar na boca
e formigar a língua. Poderia escrever sobre os pequenos prazeres, mas quem está
para pequenos prazeres? Os garçons se aproximaram um do outro e, claro,
acompanham um grande acontecimento que se passa na tela do celular. Quando nada
acontece, alguma coisa acontece, ainda que de forma mentirosa, no mundo
virtual.
Morde com força a azeitona. No impacto dos dentes com o caroço, uma obturação leva a pior. O cronista a recolhe e embrulha-a num guardanapo de papel. Antes de enfiar no bolso aquela bolota branca, passa a língua no buraco do dente e sente o gosto do fracasso, prato mal cozido e sem tempero. Apesar disso ou exatamente por isso, pensa ter encontrado uma crônica. A tarefa será escrevê-la com humor, um mínimo de humor.
Encosta-se no balcão a fim de pagar a despesa, mas resolve pedir, para tomar em pé, outra dose e mais um chope. A saideira. O garçom do celular se aproxima e lhe mostra aquilo que o fez rir tanto, o tempo todo. O cronista pega o aparelho, firma-o bem na mão, afasta o braço e, aos primeiros segundos do vídeo, chora.
13.8.22
Joaquim
Hoje é Dia dos Pais, e eu, cronista que foge das efemérides como o diabo se regozija com o fogo, lembro-me do meu e dele conto, com afeto, algumas historietas.
Quando saiu “A
palavra em construção”, primeiro livro no qual aparecem alguns continhos meus, mandei
um exemplar para meus pais. Ao encontrá-los, perguntei ao velho se havia
gostado. Sua resposta foi não, que parou a leitura na primeira frase. Ele se
referia a “Encontro na madrugada sem lua”, que começa assim: “Meu pai morreu”.
Tenho várias maneiras de entender a resposta, mas, tocado pelo humor que ele nutria,
escolho a da graça. O fato é que não posso afirmar se leu ou não. Se gostou ou
não.
Joaquim viajava
o Brasil vendendo tourinhos e novilhas. Na juventude, em um país ainda
ruralíssimo, no lombo de cavalo, em comitivas cheias de histórias. Mais tarde,
enfiando a boiada num caminhão e indo logo ali, ó, no Pará, ou bem aqui, no
interior do Rio de Janeiro. Em Santo Antônio de Pádua, deram-lhe o título de
cidadão honorário em reconhecimento ao que fizera pela pecuária local. Se
hospedava no hotel do Bidinho, que lhe reservava o mesmo quarto, de onde se
ouvia o barulho do rio. Só ficava ali, comentou comigo, para ouvir aquela
música.
Nesse hotel, no
fim da tarde, juntavam-se os fazendeiros que iam fechar um negócio e amigos que
Joaquim fez na cidade, como o inseparável Edmundo do Banco do Brasil. Um juiz
de direito aposentado, morador do hotel, era presença certa. Ele, iracundo, e
meu pai, moleque que só, não se entendiam. Joaquim gastava noites e noites
amolando o senhor. Certa época, inventaram que meu velho tinha um caso com a
única fazendeira do grupo, e o juiz, que conhecia minha mãe, não se conformou e
passou a soltar os cachorros pra cima daquele “vendedor de boiada de uma figa”.
A noite passava, os homens e a única mulher (ou as duas, quando minha mãe
estava lá) se divertiam. O mal-humorado, em permanente revolta, ainda que ameaçasse
meu pai, o devasso, com violência ou delação, nunca cumpriu a promessa
nem faltou às reuniões nem as abandonou nos momentos de maior exaltação. O fato
de estar sempre ali é sinal de que se divertia tanto quanto os demais. Aliás,
fora daquele momento, ele e meu pai eram pura delicadeza um com o outro. Às
vezes, tomavam café juntos e elogiavam a coalhada preparada na cozinha do hotel.
Eu e meu pai
não tivemos grandes diálogos, não lhe pedi conselho nem ele achou por bem me
dar algum. De todo jeito, alimentávamos cumplicidades. Com quatorze anos, eu
dirigia pelas rodovias, enquanto ele, no banco do carona, dormia pesado. Pai,
se nos param? Não tem problema, filho, eu também não tenho carteira de
motorista.
O velho leu
poucos poemas em sua vida, mas, à medida que o tempo passa, eu o decifro poeta.
Fazia contas de cabeça de forma impressionante, porém nunca soube ganhar dinheiro.
Apesar de ser uma autoridade na arte de reconhecer de longe a potencialidade de
uma bezerra ou de um garrote, não cobrava pela ajuda prestada a compradores
inseguros ou novatos. Apartava animais como se distribuísse palavras em um
soneto, ora buscando a rima, ora preocupado apenas em encaixar tudo num quatro,
quatro, três, três.
Ah, se o velho
se soubesse poeta!
Ah, se eu houvesse percebido a tempo!
(Ele me chamava de Xandão, e eu o chamava de Joaquim, intimidade de amigos.)