31.8.22

“O SOL PELO BASCULANTE” (Urutau, 2022), poemas de Alexandre Brandão



Basculante é um tipo de janela ou, como se dizia antigamente, um “vitrô”, em que uma parte se abre para cima e a outra para baixo, ambas niveladas por um eixo horizontal. É por onde entra a claridade num ambiente. Pode entrar também o sol, quando houver sol. É nesse lusco-fusco que dançam os poemas de “O sol pelo basculante”, inspirada coletânea do poeta Alexandre Brandão.

Produzido durante a pandemia e em pleno confinamento, o livro é quase um relato das visitas que o autor realizou naquele período aterrorizante por que todos passamos há não muito tempo e cujas cicatrizes ainda carregamos. Talvez pela reclusão forçada, talvez pelo silêncio diante do espanto, talvez pelo olhar que se voltou para dentro de si, talvez por tudo isso e mais um pouco, o autor realizou visitas e as contou em forma de poesia. Que visitas?, alguém poderia perguntar. A resposta: à infância, aos amigos, ao passado não tão distante, aos amores, à cidade natal, ao silêncio, ao fazer poético. E ao futuro, por mais paradoxal que isso pareça.

O poema “A gambiarra da garotada” traz uma beleza doída: “Era terço de vó, feitiço de vô promessa de mãe, revolta de pai / e nada de nada de o escuro ralear / e nada de nada de a luz inflamar. Escuro em casa, escuro na rua a cidade, um breu; o país, um alcatrão.”

“Primeira comunhão” fala da idade das descobertas e do suplício de não saber o que fazer com elas: “Eram tempos de missa / de pecados redimidos / de homens sisudos / de mulheres sóbrias. O menino tomou a comunhão. Pelas laranjas roubadas do vizinho, mil ave-marias / não se falou o que fazer com o desejo por dona Salete / não se falou o que fazer da alegria.”

“A montanha e os bichos” é um soco no estômago dos “você sabe com quem está falando?”: “Se a montanha / pensa, pondera, sopesa, / fatalmente conclui: a formiga e o homem têm a mesma estatura. / Para escalar a menor das montanhas, / o homem precisa de corda, treinamento, preparo físico. / A formiga, não. / Pode ir por dentro, comendo a terra, ou / por fora, como se, intacta, escorresse. / Se a montanha aprende, logo sabe que, embora minúsculos, / o homem e a formiga não são a mesma coisa. / Eficiente, a formiga / bruto, o homem. / Mas é possível que a montanha se interesse apenas pelos pássaros.”

“Em casa” remete diretamente ao confinamento durante a pandemia: “Hoje não desci à portaria. Não sei o que é do porteiro. / Não sei o que é do portão. Não sei o que é do asfalto / sem o peso apressado de ônibus e tensões.”

“Papo de branco” dispensa comentários; sua pungência fala sozinha: “Não vai acontecer com você / muito menos com seus filhos / (Não aconteceu com seus pais). / Portanto, fique calmo / observe o céu, / cheire a flor / cante para um deus todo seu. / Dance com a volúpia da sorte / dois pra lá, dois pra cá e nenhuma culpa. / O pé do soldado, o joelho do meganha — repara — / são atraídos pela pele preta.”

É clichê dizer que poemas emocionam aqueles que gostam de poesia. “O sol pelo basculante” me emocionou. E eu não estou nem aí para os clichês.

Mário Baggio (1), em seu perfil no Facebook

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(1) Escritor, redator, revisor e produtor de conteúdo, é autor, entre outros, de "Antes de cair o pano" (Editora Urutau, 2022) 

27.8.22

De última hora

A caminho da mesa no fundo do bar, o cronista comanda um chope e uma porção de amendoim ou azeitona, o que for mais fácil. Senta-se de frente para a porta, pois não quer perder um só acontecimento. O garçom deixa seu pedido e volta para perto do outro garçom. Ambos se colocam bem na entrada, um à direita, o outro, cotovelo apoiado no balcão, à esquerda. O da direita mexe no celular, o outro olha a rua. O cronista pensa no distanciamento, na incomunicabilidade. Sorve um bom gole do chope, que está bem tirado e na temperatura ideal. Ele gostaria de desejar muita coisa na vida, mas, no fundo, o chope é o máximo a que chega. Fora isso, cultiva um nada de vaidade, que é uma espécie de desejo insaciável.

Bate o dedo indicador na mesa, mas, sem produzir som para não chamar a atenção do garçom, não precisa dele. O dedo, obedecendo a uma música que só toca dentro do cronista, dança. O garçom do celular se aproxima do outro, mostra qualquer coisa na tela e os dois riem. Quer dizer, o que não se desgruda do aparelho ri desbragadamente, o outro, aquele que deixou o chope e a azeitona na mesa, é mais contido, talvez tenha sido apenas educado.

De vez em quando, ao passar pela calçada, alguém cumprimenta os garçons ou o atendente de balcão. Uma jovem senhora avisa que virá mais tarde, tem uma amiga do interior em sua casa e faz questão de que ela experimente as pataniscas de caranguejo. O cronista se dá conta de que, apesar de frequentador assíduo, jamais comeu daquela iguaria. Quando vai além da azeitona e do amendoim, repete o peixe à milanesa, acompanhado de arroz não com brócolis, mas de brócolis — uma licença poética, uma delícia culinária. No bar, estão ele, os dois garçons — um distraído com o celular, o outro retraído, talvez pensando em boletos, problemas familiares ou cultivando nostalgias —, o atendente do balcão e a turma da cozinha, gente que a despeito do pouco movimento tem muito trabalho; cortam cebola, descascam e amassam alho, limpam carne, preparam a massa do bolinho de bacalhau, fazem sabe-se lá o que com o caranguejo, recheiam pastel, amolam facas, cantarolam. Da mesa, é possível ouvir um pouco da comportada algazarra.

Ainda hoje deverá enviar a crônica à revista. Não tem ideia do que escrever. O bar vazio vezes o vazio daqueles poucos homens à espera dos clientes vezes o vazio do próprio cronista resulta em nada. Pede mais um chope e um novo potinho de azeitona. Chega a pensar em beber uma dose, uma cachaça mineira, mas desiste, afinal, há uma crônica a ser escrita. Uma crônica a ser escrita e nada a dizer. Ou por outra: há o que dizer. O governo continua péssimo. O amor não se cansa de bater com a cara na porta. A comédia toma conta das ruas, das mesmas ruas que servem de cenário à decadência. Sim, não falta assunto, mas o cronista não quer lidar com eles. Sua pretensão é observar e falar do que pouco se revela.

Dado o prazo apertado e a delícia do chope que o deixará mais tempo no bar às moscas, talvez não lhe reste outra saída a não ser a de escrever a crônica da falta de assunto. Chegar a esse ponto é a derrota, pelo menos a dele, que não é nenhum Braga ou Mendes Campos; nenhum Pelé das letras.

Pede o terceiro chope e, vá lá, um chorinho de uma daquelas de Salinas. Antes de a cachaça descer goela adentro, deixa-a descansar na boca e formigar a língua. Poderia escrever sobre os pequenos prazeres, mas quem está para pequenos prazeres? Os garçons se aproximaram um do outro e, claro, acompanham um grande acontecimento que se passa na tela do celular. Quando nada acontece, alguma coisa acontece, ainda que de forma mentirosa, no mundo virtual.

Morde com força a azeitona. No impacto dos dentes com o caroço, uma obturação leva a pior. O cronista a recolhe e embrulha-a num guardanapo de papel. Antes de enfiar no bolso aquela bolota branca, passa a língua no buraco do dente e sente o gosto do fracasso, prato mal cozido e sem tempero. Apesar disso ou exatamente por isso, pensa ter encontrado uma crônica. A tarefa será escrevê-la com humor, um mínimo de humor.

Encosta-se no balcão a fim de pagar a despesa, mas resolve pedir, para tomar em pé, outra dose e mais um chope. A saideira. O garçom do celular se aproxima e lhe mostra aquilo que o fez rir tanto, o tempo todo. O cronista pega o aparelho, firma-o bem na mão, afasta o braço e, aos primeiros segundos do vídeo, chora.

13.8.22

Joaquim

Hoje é Dia dos Pais, e eu, cronista que foge das efemérides como o diabo se regozija com o fogo, lembro-me do meu e dele conto, com afeto, algumas historietas.

Quando saiu “A palavra em construção”, primeiro livro no qual aparecem alguns continhos meus, mandei um exemplar para meus pais. Ao encontrá-los, perguntei ao velho se havia gostado. Sua resposta foi não, que parou a leitura na primeira frase. Ele se referia a “Encontro na madrugada sem lua”, que começa assim: “Meu pai morreu”. Tenho várias maneiras de entender a resposta, mas, tocado pelo humor que ele nutria, escolho a da graça. O fato é que não posso afirmar se leu ou não. Se gostou ou não.

Joaquim viajava o Brasil vendendo tourinhos e novilhas. Na juventude, em um país ainda ruralíssimo, no lombo de cavalo, em comitivas cheias de histórias. Mais tarde, enfiando a boiada num caminhão e indo logo ali, ó, no Pará, ou bem aqui, no interior do Rio de Janeiro. Em Santo Antônio de Pádua, deram-lhe o título de cidadão honorário em reconhecimento ao que fizera pela pecuária local. Se hospedava no hotel do Bidinho, que lhe reservava o mesmo quarto, de onde se ouvia o barulho do rio. Só ficava ali, comentou comigo, para ouvir aquela música.

Nesse hotel, no fim da tarde, juntavam-se os fazendeiros que iam fechar um negócio e amigos que Joaquim fez na cidade, como o inseparável Edmundo do Banco do Brasil. Um juiz de direito aposentado, morador do hotel, era presença certa. Ele, iracundo, e meu pai, moleque que só, não se entendiam. Joaquim gastava noites e noites amolando o senhor. Certa época, inventaram que meu velho tinha um caso com a única fazendeira do grupo, e o juiz, que conhecia minha mãe, não se conformou e passou a soltar os cachorros pra cima daquele “vendedor de boiada de uma figa”. A noite passava, os homens e a única mulher (ou as duas, quando minha mãe estava lá) se divertiam. O mal-humorado, em permanente revolta, ainda que ameaçasse meu pai, o devasso, com violência ou delação, nunca cumpriu a promessa nem faltou às reuniões nem as abandonou nos momentos de maior exaltação. O fato de estar sempre ali é sinal de que se divertia tanto quanto os demais. Aliás, fora daquele momento, ele e meu pai eram pura delicadeza um com o outro. Às vezes, tomavam café juntos e elogiavam a coalhada preparada na cozinha do hotel.

Eu e meu pai não tivemos grandes diálogos, não lhe pedi conselho nem ele achou por bem me dar algum. De todo jeito, alimentávamos cumplicidades. Com quatorze anos, eu dirigia pelas rodovias, enquanto ele, no banco do carona, dormia pesado. Pai, se nos param? Não tem problema, filho, eu também não tenho carteira de motorista.

O velho leu poucos poemas em sua vida, mas, à medida que o tempo passa, eu o decifro poeta. Fazia contas de cabeça de forma impressionante, porém nunca soube ganhar dinheiro. Apesar de ser uma autoridade na arte de reconhecer de longe a potencialidade de uma bezerra ou de um garrote, não cobrava pela ajuda prestada a compradores inseguros ou novatos. Apartava animais como se distribuísse palavras em um soneto, ora buscando a rima, ora preocupado apenas em encaixar tudo num quatro, quatro, três, três.

Ah, se o velho se soubesse poeta!

Ah, se eu houvesse percebido a tempo! 

(Ele me chamava de Xandão, e eu o chamava de Joaquim, intimidade de amigos.)



Joaquim, o neto mais velho, Marcelo, e eu.