“Há um menino /
há um moleque / morando sempre no meu coração / toda vez que o adulto balança /
ele vem pra me dar a mão” (Milton Nascimento e Fernando Brant)
Minha primeira namorada... ih, agora tive dúvida se foi uma
ou outra. Pelo espaço onde se davam nossos encontros — eu morava na rua do Ouro,
em Passos —, era a Sá Chica, a
cozinheira da casa. Se havia ali o elemento tão horroroso do patrão seduzindo a
empregada, o branco, a negra, em minha defesa digo que eu não tinha cinco anos
e Sá Chica tinha a sabedoria de quem caminhava pelos sessenta; e mais: foi a única
vez que algo semelhante aconteceu comigo. Nosso namoro consistia em eu passar, no
meu tratorzinho amarelo todo incrementado, pela porta da cozinha e convidá-la
para um passeio. Ela me dizia algo como “mais tarde você me leva para casa”.
Isso era tudo. Isso era recorrente.
A segunda poderia muito bem levar a uma tragédia de teatro
grego ou de Shakespeare. Meu amor havia sido, se ainda não era, namorada de meu
irmão. Vejam o perigo. Nesse namoro, eu nunca fazia a corte, não a convidava
para passear no meu calhambeque, nada disso, eu simplesmente a contemplava; ela
era minha professora de pré-primário. Meu padrinho chamava, não sei por que razão,
a situação em que a pessoa amada ignora que é amada de namoro ou amor de
traição, o que não era o caso. Minha professora soube, assim suspeito, pela voz
do enciumado irmão ou das descuidadas irmãs, e nem por isso retaliou meu amor, ainda
que não o tenha alimentado. Continuou me tratando bem e distribuindo pela sala seu
sorriso, que devia ser mesmo o que muniu minha paixão, já que, se fecho os
olhos, ainda o vejo.
Naquela época, eu era muito bonito, assim concluo, pois, às
vezes, em sala de aula, minhas colegas corriam atrás de mim. Bem, sei lá se
isso não é dessas memórias inventadas para falsear a dura realidade ou para nos
proteger do primeiro pé na bunda, pouco importa, eu era bonito, e, se a
professora não correspondia ao meu amor, minhas colegas se derretiam por mim.
De todo jeito, há um fundo de verdade, não na minha beleza, mas nisso de agradar as colegas. Uma delas, que se mudou de Passos logo depois dessa época — eu nunca mais a vi e soube recentemente que é médica em São Paulo —, ao ganhar um irmão, pediu aos pais que o batizassem com meu nome. A sugestão foi aceita. Nesse caso, creio, para ter uma vida completa eu não precisaria plantar uma árvore, escrever um livro e ser pai, o que eu fiz e sou — no caso dos livros, tenho feito ainda, e no das árvores, quero voltar a fazer —, bastava alimentar o orgulho de saber que, dando meu nome a um pobre inocente, fui homenageado. Vá lá que eu não era bonito, mas tinha um borogodó.
Os meus leitores habituais talvez tenham percebido ao longo do tempo, e, aos que estão chegando, esclareço: não, não sou esse que agora se apresenta, um ególatra alfa encantado diante de um espelho. Hoje, estou tomado pelo menino que fui, aquele ingênuo, Narciso de voo breve, um tipo básico. Aqui quem escreve não sou eu, é ele. E ele escreve como se pingasse sobre mim a última gota da chuva que prepara o amanhã.