22.4.23

Burnout Cívico

Prensados pelas redes sociais, a gente se vê obrigada a se posicionar o tempo todo, grande parte das vezes sobre assuntos leves ou absolutamente fora de nossa área de conhecimento ou curiosidade. O que pensamos a respeito do ajuste fiscal; da reforma do ensino; da permanência daquele ministro reconhecidamente ficha-suja; do tal novo arranjo do futebol, a sociedade anônima do futebol (SAF); da internação compulsória dessa gente perdida de si que circula pelas cidades; da mudança de sexo na infância; da inteligência artificial? Houve uma época em que, reconhecendo nossa ignorância, procurávamos ler algum artigo para pelo menos entender o que estava em jogo. Agora vem tudo num vapt-vupt de um post, sem contar a lavagem cerebral das mensagens capciosas que pousam na tela do celular – preparadas com o intuito único de angariar devotos a causas escusas.

Estou sofrendo um burnout cívico. Tomo chá de camomila? De cogumelo? Passo a andar de olhos vendados? Me chafurdo na leitura de entretenimento? Ouço apenas os discos da Xuxa? Entro com uma ação pedindo ressarcimento por assédio moral? Me entoco no meio do mato?

Ô Brasil difícil! Melhor pensar que é assim em tudo quanto é canto. Viver em comunidade, por menor que ela seja, significa embates, lutas por espaço; no fundo, disputa de poder. Tudo bem, mas, aqui na terrinha, estamos caprichando. Não é mais uma questão de participação política ou alienação, é o excesso. Sei da importância de ninguém soltar a mão de ninguém, mas, por favor, soltem a minha, preciso sair correndo. Doutor, vou ter um troço.

Corro, mas do Brasil não saio e continuarei a lutar por ele. Só que estou doente dessa contenda na qual entro com a impressão de ser um inocente útil, o zé-mané cansado. Vejo que muitos brasileiros, atrasados, decidiram pelo deixe-o do ditatorial “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Se debandaram para Portugal, Estados Unidos, Austrália, não sei mais onde, com a esperança de fugir de nossas mazelas. Essa turma se esquece de que, num mundo globalizado, o Brasil enviará, via TV, streaming etc., sua dose diária de racismo, homofobia, misoginia e entornará o caldo sujo da injusta distribuição de renda na cara de todos, todas e todes (abraçado à erudição, rechaço o novo pronome, ou, fiel à urgência do agora, abraço-o?). Não se pode esquecer do tio do zap e seu empenho em compartilhar absurdos de toda espécie. De um jeito ou de outro, como o Brasil fincará as garras nos que se ausentaram, cair fora não resolve nada. Pelo menos com isso me consolo.

Então dou de ombros? Bebo o bar da esquina? Todos os bares da rua? Os da cidade? Me caso com vinte mulheres? Assalto um banco? Vou curar berne de bois soltos em pastos abertos pela grilagem no Pará?

Talvez eu melhore fugindo das tretas impostas pelos outros e inventando as minhas. Sertanejo universitário não é nem sertanejo nem universitário. Goiabada é o melhor doce do mundo (seguido de perto pelo arroz-doce), mas nem pensem na cascão, que não chega aos pés da lisa. Os grandes designers criam coisas estupendas, lindas e cheias de sabedoria, mas ninguém até hoje fez nada tão simples e tocante quanto a estrela solitária do Botafogo. Para cada xícara de arroz, duas e meia de água quente; qualquer coisa diferente disso é embuste e má culinária. Não fosse o chifre, o de Capitu em Bentinho, o Brasil nem teria uma literatura nacional. 

Ando me identificando com a galinha-d’angola: Tô fraca!, tô fraca!, tô fraca! Que canseira.

8.4.23

O teatro da rua


Cazuza andava nas ruas, trocava um cheque, mudava uma planta de lugar, dirigia o carro, tomava um pileque (quiçá dirigisse bêbado) e ainda tinha tempo para cantar. Eu não tenho carro, os cheques sumiram do meu cotidiano (o dinheiro de certo modo também), por puro respeito à natureza não toco em planta de jeito nenhum, mas, sim, tomo meus pileques, canto o suficiente para vencer o meu silêncio e ando nas ruas, ah, como ando nas ruas. Esse exercício lubrifica as juntas e o cérebro.

Meu projeto é, meio zureta, passar todo o restinho de velhice que me sobra caminhando a esmo. O pai de uma namorada perguntava à filha se batendo perna o dia inteiro ela media as ruas para a prefeitura. Quero esse emprego, e estou disposto a trabalhar como voluntário.

O que se ganha caminhando? Além de revigorar o físico, a rua, espaço democrático da caminhada, é um teatro. Dia desses, tomei um ônibus e, como meu cartão estava sem crédito, paguei com dinheiro. Assim, antes de passar pela roleta, tive de esperar o motorista descolar o troco. Foi quando um rapaz de bicicleta deu um tapa na janela do motorista. Os dois trocaram insultos. O ônibus havia fechado a bicicleta um pouco antes, e o entregador de uma rede de farmácia (a camiseta tinha o nome da empresa) estava, com razão, revoltado. O problema é que, sem um meio de resolver a questão de forma civilizada, ele partiu para a briga e, aproveitando-se de um ponto logo adiante, entrou no ônibus e começou a esmurrar o motorista, que se defendeu valendo-se de socos e pontapés. Eu ali, entre os dois. A cidade é violenta, a chance de um deles ter uma arma é grande. Disse a eles para se acalmarem, uma frase sem eco algum.

Houve uma trégua, o rapaz da bicicleta desceu e o ônibus avançou. Só que um pé do seu tênis ficou para trás. Novamente um tapa nos vidros. O motorista abriu a porta e atirou o tênis na rua. Aconteceu então a coisa grave: o entregador tirou o boné, pediu ao motorista que tirasse o dele (o que não foi feito), pois os rostos precisavam ficar descobertos, totalmente revelados. O agora sem boné queria guardar a cara do outro para ir atrás dele, assim como queria que seu rosto ficasse registrado para que, quando chegasse o momento, o motorista soubesse quem se aproximava. Enfim, uma ameaça carregava o incidente para outro nível. Como os dois circulam sempre na mesma rua, não é nada difícil que se reencontrem.

Isso é um teatro? Sim. Quem sabe uma tragédia grega atualizada, menos sofisticada, bastante realista e com o final em aberto. Quando desci do ônibus, fiquei pensando: a briga colocava de um lado o trabalhador com carteira (supondo que a empresa de ônibus faça tudo dentro da lei, o que pode ser uma inocente suposição) e de outro o informal, classe de trabalhador que os tempos modernos (impulsionados pela pandemia) jogaram aos borbotões no mercado e principalmente nas ruas. Naquele momento, o dono da empresa de ônibus e o da rede de farmácias talvez estivessem preocupados com um empréstimo contraído ou com um contrato meio frouxo (do ponto de vista legal) com alguma instância de governo ou com uma compra que não lhes fora entregue. Tinham lá suas preocupações (boas e más) de empresário, mas pouco se importavam com a situação de quem trabalhava para eles (seus advogados cuidariam disso, se necessário). Lavavam as mãos, a seu juízo, sempre impolutas.

Não sei se vocês se lembram de que, no começo da crônica, confessei meu desejo de virar um andarilho sem destino, um espectador atento das muitas peças encenadas no dia a dia. À medida que a escrita avançou, me perdi a tal ponto que contei uma história em que não estou caminhando. Descambei do meu propósito digamos filosófico, mas agora tento terminar com alguma coerência. Falo então de um personagem que somente a caminhada com os pés firmes (ou não) no chão pode revelar.

Na movimentada rua em que vivo, ainda existe um orelhão. Fica na parte larga da calçada (um prefeito estreitou tanto as calçadas, em benefício dos automóveis, que em alguns de seus trechos nem namorados conseguem andar lado a lado, de mãos dadas) em que há uma banca de jornais, uma pequena galeria comercial e uma loja de hortifrutigranjeiros. Enfim, é um ponto agitado. Não é raro eu passar ali e encontrar um homem (entre quarenta e cinquenta anos) sentado no chão, com o telefone na mão: o fio esticado, a parte do microfone bem perto de sua boca, o alto falante longe da orelha. O tempo todo ele fala, fala, fala. Decerto tem algum problema mental, o que não importa a essa crônica. O fato é que, ao falar, ele mostra não ter nenhuma intenção de ouvir. Aquele homem em monólogo é a síntese de nosso tempo.