20.4.24

Encontro #1

Uma frase assalta Drummond: “eu preparo uma canção em que minha mãe se reconheça”. Não é novato, publicou livros, sabe bem que o que lhe bate à porta é um poema. Apruma o corpo e espera os versos descerem para bicar o alpiste que espalha sobre a mesa de trabalho. Não há nada de inspiração, comprou a semente e inventou a árvore agora ocupada por pássaros famintos. Viver atento o transformou em poeta. Os versos pousam aos poucos. Drummond alimenta os mais feios e, em seguida, com um peteleco, espanta-os, manda-os de volta ao ninho. Noutra oportunidade – quem sabe ainda naquela manhã? –, é provável que os chame outra vez, pois, de repente, não serão tão feios assim. Seja como for, de longe assiste ao alvoroço faminto daquele monte de palavras, algumas já conectadas a outras, pássaros siameses. “Todas as mães se reconheçam, e que fale como dois olhos”. Tudo que recolhe guarda no bolso do paletó, um temporário alçapão de linho. A tarefa pode demorar – poeta de fibra, faz ginástica diária, está pronto para pequenas maratonas –, mas, se as inexistentes musas resolvem resguardá-lo para embates futuros, a escrita acontece num par de segundos. Pronto de vez, não, é apenas uma versão provisória, a ser revista amanhã ou depois, a primeira de umas tantas.

O final, já em verso, é um sopro a ser lançado contra furacões: “Eu preparo uma canção / que faça acordar os homens / e adormecer as crianças”. Feliz com o resultado, até mesmo excitado, o poeta, de novo menino, quer logo mostrar o feito aos amigos, à mãe, à mulher, ao porteiro do prédio, a Deus. Se faz ou deixa de fazer, depende muito do grau dessa pequena loucura. É de se esperar que, experiente, guarde os versos na gaveta e, um pouco febril, enfie-se na água fria, entorne duas doses de uísque ou, ávido por espiar o mundo que sua canção poderá tornar um pouco melhor, se debruce na janela.

Um dia o poema passa a circular. Uma mulher chora ao lê-lo. Tomado pela inveja, um poeta não sabe se beija Drummond e agradece ou se afasta-se daquele que acaba de jogá-lo na sarjeta da qual nunca se levantará. Certo é que o poema acaba lido por um carioca, adotado por Minas, com Minas no próprio nome, Milton Nascimento.

A mãe de Bituca, Maria do Carmo, foi levada pela tuberculose quando ele não tinha nem dois anos. A dona da pensão na qual ela trabalhava acolheu o menino como filho, um querido filho. Adotado por uma família, adotado por um Estado, Milton deve ter se visto naquela canção em que as mães todas, biológicas ou não, de sangue ou de terra, se reconhecerão. Ele tomará de Drummond aquelas palavras para cantá-las e levá-las a lugares aonde o poema talvez não chegue. Compõe então uma melodia. Grava a melodia. Em “Canção amiga”, não canta, como dizia Elis Regina, com a voz de Deus, sua voz é uma deusa, cuja bíblia são as palavras de Drummond.

Depois da audição protocolar, na qual, diante do cantor tão tímido quanto ele, segurou a emoção, Drummond faz outra, longe de todo o mundo, ele e o vinil. O menino toma o desejo do velho poeta e o faz ligar para Vinícius de Moraes, acostumado ao mundo musical, a quem se confessa comovido como o diabo do diabo. Ou não, o entorpecimento o leva à rua, onde gasta a sola do sapato no calçadão de Copacabana. Não tem coragem de assobiar, na realidade não sabe reproduzir a melodia. Não pode cantar aquela música ou qualquer outra, sua voz soaria como montanhas dinamitadas pelo capital, embora num tom agudo, de uma ave disposta a silenciar o céu. Chuta de leve uma lata de cerveja ou xinga em pensamento um cachorro de rua. Volta à casa e, antes de se deitar no quarto de hóspede, pede a Dolores para não ser incomodado. Agitado, vira-se e revira-se na cama. Enebriado pela vaidade, está feliz. Não é vaidade. Ou é. O que importa? Está feliz. Acomoda-se assim de lado, fecha os olhos e, numa velocidade jamais a ser alcançada ao rascunhar um mísero poemeto, dorme o sono do mundo.

7.4.24

Problemas alheios

 

Na Tailândia – especificamente na província de Lop Buri –, macacos, lá protegidos por lei, têm promovido verdadeiras guerras entre gangues. Não são raros ataques a humanos, mas a coisa fica feia mesmo durante o enfrentamento de um grupo contra o outro. O conflito não ocorre na mata, habitat dos animais, mas no centro urbano. Ou seja, você está lá no seu carro, ou pior, parado na calçada, esperando a chance de atravessar a rua, quando de repente uma horda de primatas cruza à sua frente para brigar com a outra que está bem às suas costas. Não conheço a realidade da Tailândia, portanto não posso afirmar se esse é o maior problema deles. Me arrisco a dizer que não, um país nada mais é do que um saco de problemas.

Apesar do inusitado dessa guerra nos moldes antigos, no tapa e na coragem, sem armas – alguns bichos confeccionam ferramentas para auxiliá-los em suas ações básicas, mas não sei de nenhum que produza armas –, os tailandeses deveriam agradecer pelo fato de suas ruas não serem tomadas pela polícia carioca, especializada em soltar tiros a esmo contra bandidos – verdadeiros ou inventados – nas ruas da cidade, para dizer a verdade, nas ruas em torno das favelas, principalmente em seus becos. Nem pela “nova” polícia paulista. Enquanto os macacos disputavam território, o governador de São Paulo, importado do Rio de Janeiro e com as palavras a seguir, encaminhava o pessoal dos direitos humanos à ONU ou à Liga da Justiça, ao raio que o parta, porque ele não estava nem aí com as críticas à truculência de seus comandados nas periferias. Ainda agora essa polícia matou Edneia, uma jovem de pouco mais de trinta anos, cabeleireira, com seis filhos para criar. A imprensa fala em mais um caso de bala perdida. É insuficiente a explicação, quando não cínica.

Os finlandeses são felizes, os mais felizes do mundo, constata uma pesquisa tradicional. Eu já estive lá e conheço seus dias cinzentos e frios, mesmo fora do inverno. Duvido um pouco dessa felicidade, mas não muito. Como assim? Acompanhe a historinha: num habitual dia sombrio, eu cruzava uma praça de Helsinque e, de repente, o sol se abriu. Uma mulher que ia logo adiante de mim se sentou num banco, tirou a blusa, o sutiã e ficou tomando sua carga de vitamina D. Isso, sim, me cheira a felicidade, ao miúdo da felicidade, mas quantas vezes no ano poderão se dar a esse luxo?

Igualmente não sei se o único problema da Finlândia é o frio. Sei um pouco, na verdade. O alcoolismo é uma questão sensível por lá. Quando estive no país, tinha em mente um dos episódios de “Uma noite sobre a terra” (Night on Earth), de Jim Jarmusch. O filme reúne cinco histórias, cada uma delas se passa em uma cidade, Nova York, Roma, Londres, Los Angeles e Helsinque, e os personagens estão sempre em um táxi. Pela lente do diretor americano, as ruas de Helsinque estão cheias de bêbados, o que constatei em minha visita. Se é certo que as cidades finlandesas jamais serão atacadas por macacos – podem ser por ursos e, às vezes, são – nem pela polícia vingativa e falsamente punitiva brasileira, eles têm, bem ao lado, a Rússia e sua discordância ameaçadora sobre a intenção da Finlândia de entrar para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o que veio a acontecer no ano passado. Uma bala perdida do poderio russo pode extinguir a felicidade e os bêbados da felicidade.

Minha expedição sem sair de casa à Tailândia ou à Finlândia se faz sem bússolas, até sem a orientação das estrelas. Penso na briga de macacos ou na felicidade “medida” pela estatística um pouco para não pensar, por exemplo, nas guerras entre Rússia e Ucrânia ou entre Israel e o Hamas, esta um banho de sangue cruel, comandado por um extremista de direita sem nenhuma visão além da vingança. Ah, senhor da guerra, leia “Judas”, de seu compatriota Amós Oz. Ou simplesmente leia (desconfio da absoluta falta de leitura dessa gente).

Dizem que a grama do vizinho é mais verde, mas a desgraça alheia maltrata mais do que a nossa. Penso assim? Ora sim, ora não. Vagueio, leitora, vagueio, leitor, e, com as mãos no bolso e andando de lado, chuto pedrinhas.