29.1.23

Com o rosto descoberto

Mesmo tendo tomado quatro doses da vacina, mantenho algumas precauções contra a Covid. Uso, por exemplo, máscara em ambientes fechados. No entanto, em comparação ao que foram meus dias entre 2020 e 2022, estou soltinho.

Em janeiro, fui a festas de amigos. Papos descontraídos, ainda que resvalando de quando em quando nas atrocidades cometidas por aqueles afastados do poder pelo voto.

O confinamento havia me deixado meio cabreiro, com um pé atrás em relação às pessoas. Sempre gostei delas, sou bastante sociável, principalmente se me chamam para conversas em torno de abobrinhas e outros quitutes. Mas o afastamento social, num momento em que realidade e mentira foram intensas e cambiantes, fez com que, isolado, eu construísse um cenário sombrio sobre o ser humano.

Não tinha expectativa de que todos houvessem se transformado em direitistas antidemocráticos, mas temia que pudessem ter perdido as manhas do convívio social. Depois de dois anos flambado no medo, me parecia impossível que alguém continuasse falando de um gol, de um rosto bonito, daquele livro injustamente pouco lido ou de uma saudade escorchante de um tio meio doido, meio poeta. Ou que se debatesse uma polêmica inconsequente por doze horas e mil chopes e se cultivassem a ironia e até um certo cinismo.

A boa notícia: nem todos sucumbiram. Os assuntos frívolos, apesar de tudo, se mantêm vivos como sempre estiveram. Voltar à rua – compartilhar um chope, uma sessão de cinema, uma caminhada, encontrar um amigo por acaso na feira ou na porta do banco – redimensiona a vida, esta que é dura, aliás, como é desde os tempos do pecado original. Temos, é verdade, uma responsabilidade geracional: cortar o delírio direitista que não só se vale da mentira, como também cria histórias inverossímeis e as enfia goela abaixo até de gente esclarecida. Tarefa, no entanto, conciliável com a alegria.

Ainda sabemos rir e sorrir; debochar de nós e do outro. Mantemos a capacidade de argumentar sobre aquilo que ignoramos. Continuamos um pouco ingênuos, quase loucos e nem um pouco loucos.

A leveza não se perdeu, asseguro.

14.1.23

Grito

 Havia um acúmulo. Desde 2013 – com destaque para a retirada à força de Dilma Rousseff da presidência em 2016 e a eleição de um político de extrema direita em 2018 –, os abençoados de sempre preparavam o bloqueio da estrada que nos levava, aos tropeços, a uma democracia estável. Umas pedras eram jogadas ali, uma ponte destruída acolá. Os últimos quatro anos assistiram à avalanche cuja causa foram as dinamites da incivilidade e não os transtornos das intempéries.

Repito, havia um acúmulo. Mas de quê?

De desesperança. Com isso, tornou-se urgente devolver ao palco aqueles que, a duras penas, conseguiram, no período que vai da posse de Sarney ao governo Dilma (principalmente nos anos de governo do PT), um mínimo de visibilidade e voz política. Falo de negros e mulheres, da comunidade LGBTQIA+, de indígenas, dos trabalhadores, dos desassistidos, enfim, dos marginalizados de sempre, acrescidos, nos últimos quatro anos, de artistas, mesmo aqueles que tinham voz e, na concepção do país regredido à Idade Média, passaram a ser tratados como bandidos.


Foto: AP Photo/Eraldo Peres


A posse do dia primeiro de janeiro foi o grito das vozes, emudecidas, mas não mortas, da democracia. E tudo ali funcionou. Foi uma mulher preta, a catadora de lixo Aline Sousa, quem entregou a faixa ao presidente. Ela subiu a rampa do Palácio na companhia de Lula e de sua companheira, Janja, da cadela Resistência (símbolo do acampamento mantido perto de onde Lula esteve preso em Curitiba), de um cacique (Raoni), de um garoto preto e morador da periferia de São Paulo (Francisco Silva), de um professor (Murilo Jesus), de um metalúrgico (Weslley Rocha), de um artesão (Flavio Pereira), de um jovem que, por conta de uma meningite, sofreu, quando tinha três anos, uma paralisia cerebral (Ivan Baron) e de uma cozinheira (Jucimara Fausto). A voz das vozes silenciadas se fez ouvir. Todos eles (e outros tantos) seriam enumerados e chamados ao palco – “vocês existem e são valiosos para nós” – na posse do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, ele mesmo um negro.

Basta demonstrar apreço à democracia e dar visibilidade aos carentes para garantir um bom governo? Não. É preciso melhorar a vida da população, que, no caso do Brasil, é heterogênea, indo dos trinta milhões de famintos àquela pequena porção de ricos que, sozinhos, têm uma renda superior à dos 90% restantes. É possível agradar a todos? Não. Eu espero que os avanços se deem no sentido de proporcionar as mínimas condições de vida aos mais pobres. Isso exige ações na economia e nas outras áreas e requer precisão e boa vontade dos executores das políticas.

Uma semana depois da posse festiva, que espalhou esperança aos que apostam num país diverso, inclusivo, pacífico – embora com embate de visões de mundo –, uma horda de fascistas, uns poucos crédulos, outros obedecendo a ordens (ainda a descobrir ou confirmar de quem), destruiu o patrimônio público. Não qualquer patrimônio, miraram aquele que a ideia de uma nação moderna construiu, as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário desenhadas por Niemeyer. Além dos prédios, danificaram importantes obras de artes, o que, vindo de quem veio, a extrema direita, não é de se estranhar.

Enfim, vimos um nudes do Brasil cindido, esse país que não resolveu grande parte de seus problemas estruturais (racismo, privilégios de toda sorte, poder excessivo na mão dos militares, concentração pornográfica de renda etc.). Neste momento, chegamos ao ponto no qual ou cuidamos desse débito histórico ou o ataque à democracia se transformará em guerra. Dela sairá um país pior, certamente nas mãos de um autoritário.

Devo confessar, no entanto, que, ao ver a posse das ministras dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e da Igualdade Racial, Anielle Franco, um balanço desses dias me leva ao otimismo.