27.3.23

Guardem para mim

Sou desmemoriado. Não tanto na realidade. Para algumas coisas, a cabeça funciona. Um amigo no trabalho sempre fala assim: “Alexandre, contando com sua boa memória, como foi que de uma outra vez resolvemos essa questão aqui, ó?” Não raro, sei responder. No entanto há instâncias inalcançáveis.

Nomes, por exemplo, eu os esqueço bastante. Puxei a minha mãe, a quem eu criticava por isso. Mãe, não é Flora, é Flórida. E ela dava aquele risinho. Só não tenho o mesmo risinho sapeca de dona Haydée – por muitos chamada de Idê e, no papel, de Aidê, Ydê, enfim, de várias formas abrasileiradas ou nem tanto do nome de origem francesa –, no mais estou igual a ela. O problema com nome me atormenta por exemplo em dia de lançamento de livro. Eu obrigo quem ficar responsável pela venda a colocar um post-it com o nome da pessoa, mesmo que a pessoa diga que é minha mãe. Aliás, se disser isso, melhor sair correndo, é um fantasma. Mas, não tenhamos medo, mamãe seria o fantasma mais camarada da face da terra.

Registrarei alguns casos que estão sumindo da minha lembrança, assim vocês os guardam e, quando eu precisar – é claro que precisarei, a idade está chegando –, já sei a quem recorrer. São bobeirinhas, compreendam. É a parte afetiva da vida, e sei lá se não a efetiva também.

Lá pelo meus doze anos, eu tinha uma paquera, e ela não me dava bola. Certa vez, reunidos em torno da piscina da casa de um amigo, ela me chamou de pateta. Doeu! Mas naquele dia mesmo, numa conversa que descambou para histórias em quadrinho, ela disse que seu personagem preferido era o Pateta. Apesar dessa bandeira, nós nunca namoramos. Fiquei muito impactado pelo adjetivo.

Fomos eu e um amigo andar pela periferia de minha cidade natal. Ela era pequena, mas a divisão pobreza e não pobreza existia ali como em qualquer parte do Brasil. Eu não era rico, mas, aos olhos dos meninos do bairro, era sim. E o que aconteceu? Uma turma começou a correr atrás de mim e de meu amigo. Eles nos atiravam pedra, xingavam. Nós nos enfiamos num pasto e fomos correndo até chegar à linha de trem de ferro. Naquela época, circulavam os últimos cargueiros, um pouco depois fechariam a Mogiana e alguém surrupiaria os trilhos, bem, mas isso é outra história. Eu e meu amigo começamos a andar sem olhar para trás, certos de que os garotos continuavam na nossa cola. Além disso, seguíamos atentos a um possível aparecimento da “Maria Fumaça”, um perigo muito maior. Depois nos acalmamos. Havíamos escapado. Meu amigo então contou que um preso fugira da cadeia (localizada na Praça da Liberdade, vejam só) e que o bandido tinha uma particularidade: ele se transformava em objetos. Por exemplo, ele bem poderia ser aquele cupinzeiro bem ao nosso lado. Saímos em disparada novamente. Não fosse a fome, talvez estivéssemos correndo até hoje.

Eu tinha tosse de cachorro. Muito seca, seca demais, acho que era de cachorro grande, mas manso.

Eu peguei a bola pela direita, fui entrando em diagonal – uma jogada típica de um ponteiro do Botafogo –, driblei dois adversários, entrei sozinho na área e chutei nas mãos do goleiro. Num só lance, meu ápice e meu ocaso como jogador de futebol.

Eles bem queriam que eu fosse o Romeu da montagem da peça na escola. Minha vergonha me impediu. Tive de conviver com o ciúme de ver o escolhido, ao beijar a Julieta, beijar a menina que eu amava. Quando eu e ela íamos ao cinema, ela nem me deixava pegar em sua mão.

Fui para a primeira comunhão com uma camisa estampada, em tons azuis. Não tenho foto, mas a minha irmã mais próxima em idade dizia que eu parecia um homenzinho. Sabe, eu parava com as pernas meio abertas e os braços cruzados, numa pose de quem não seria lá grandes coisas na vida. Os pecados estavam por ser cometidos.

Minha primeira namorada não foi um porquinho-da-índia, mas eu também me enredei pelo amor assim para além do humano. Por isso, tive muitos bichos. Por isso, tive bicicletas. Por isso, me ajeitei com a solidão desde muito cedo.

Nas duas vezes em que levei pedrada na cabeça – a primeira da vizinha da casa da frente, a segunda de um amigo da rua que depois, e não por isso, foi ser padre –, eu não havia feito nada.

As duas meninas convidaram a mim e ao meu primo para irmos os quatro a uma fazenda. Não haveria ninguém lá além de nós. Puxa, era um sonho, tudo que gostaríamos. Mas não fomos, ah, não fomos. Às vezes, não tenho saudade nenhuma de meus quatorze anos.

Contei à minha tia de minha dificuldade em guardar nomes. Ela, no alto de seus noventa, noventa e poucos, me disse que tinha uma estratégia para isso. Quando encontrava alguém cujo nome lhe escapava, dizia: “Você tinha um apelido, não é?” A pessoa logo reagia ou dizendo o apelido ou negando que o tivesse e afirmando o nome. Meu nome é Alexandre, Xandão (não é de hoje, vem de muito antes de virar modinha) é o apelido. Guardem isso também, nunca planejamos o que será esquecido.

11.3.23

Coluna social de um lugar nenhum

Rautosco Ó de Liveira anda cabreiro. O nome de sua mulher, Rita, ecoa pela cidade. Rita linda, Rita linda, ouve-se de norte a sul. Ficou orgulhoso no início, e enciumado a partir de uma certa hora. Abriu-se com um amigo e prestou atenção no conselho: tome a Ritalina, meu caro, e relaxe e goze. Rautosco, injuriado, rompeu com aquele maldito. Além de não saber falar o nome de sua mulher, fez aquela alusão de que o seu problema era sexual.

 

Cornélio sofreu uma vida com o nome. De Cornélio a corno é um pulo, o que lhe custou uma adolescência terrível. Mas a maturidade chega, e com ela Cornélio esqueceu as bobagens da juventude. Virou um intelectual respeitado na pequena cidade. Do alto de sua sabedoria, não poupou os ignaros, o que alguns viram como uma espécie de vingança, uma atitude mesquinha, de gente mal resolvida. Enfim, a vida caminhava como sempre caminha, uns fazendo juízo dos outros, falando pelas costas, mantendo relações cordiais no momento de encontros. Até que... No bar da praça, um mocinho humilde, desses que vivem na periferia, mas gostam de frequentar o centro, manter amizade com os ricos, enfim, esse moço soltou que seu pai estava com um trombone nas veias. Cornélio não se aguentou, arregaçou as mangas, vestiu a arrogância costumeira e corrigiu o jovem: “Trombose, querido, trombose”. O rapaz pegou o celular e ligou o vídeo. O pai esticava a perna e dela saía o som de um trombone muito bem tocado, aliás, tão bem tocado que a turma da rua passou a chamar as pernas do velho de Raul de Souza. Cornélio ficou com cara de tacho. Primeiro por ter sido humilhado por um pé descalço, depois por não ter ideia de quem era Raul de Souza. Voltaram a chamá-lo de corno, e daí em diante doeu como nunca.

 

Cilene ficou em silêncio e mascou o chiclete como se tirasse leite das pedras. Dividia sua atenção entre mascar e ouvir. O chiclete é um negócio incrível, ela pensava. No início é doce, depois vai perdendo a doçura, mas, quando menos se espera, um docinho discreto volta à boca. Decerto ouvia menos do que deveria. Ainda assim entendia as intenções do senhor seu chefe. Quando ele deu uma pausa para beber água e encher a xícara de café velho, ela tirou a goma da boca – naquele momento sem doce de tudo – e a pregou na testa do homem. Deu as costas ao mal-intencionado e foi embora numa alegria com sabor de melancia.

 

Ifigênia ganhou o porco na rifa. Havia comprado o bilhete no intuito de ajudar a igreja, que usaria o dinheiro para adquirir mantimentos para os desvalidos de sempre. Ifigênia apostou que não ganharia o sorteio, pois nunca ganhou nada na vida. Quer dizer, ganhou o que o povo chama de pé na bunda. Melhor seria que dissessem levou um pé na bunda, mas preferiam usar, para azar do verbo, ganhar. Azar dela também, pois nunca ganhou nada e, quando ganhou, ganhou um porco. O que faria com um porco? Onde guardaria o porco? Quem sabe o devolvia à igreja e sugeria que fizessem nova rifa ou o matassem e dessem aos que se beneficiariam com o dinheiro arrecadado? Mas isso seria desprezar a sorte, essa que nunca a visitava. Comprou uma coleira – uma coleira! – e foi buscar o bicho. Era uma leitoa vistosa, que Ifigênia não sabia dizer se pronta para o abate. Ou para a reprodução. Não entendia nada de porcos. Ou por outra, não entendia nada a não ser de levar ou, vá lá, ganhar pé na bunda. Nisso era escolada, tinha título de doutora. O homem riu da coleira. Prontificou-se a entregar a porquinha onde quer que Ifigênia quisesse. Ela então pediu que ele a deixasse na porta da quitinete do Hermes. Que levasse junto um bilhete. “Hermes, seu porco vegano, cuida que a filha é tua.” Ifigênia voltou para casa feliz por ter ganhado alguma coisa na vida. A sorte da vingança lhe sorriu. Ou gargalhou.


O prefeito é um entojo, diz a voz popular. Por que votaram nele, ninguém sabe explicar. O outro, o outro era... O outro candidato, pelo jeito, não tinha empatia. Votaram no entojado. Alguns se mandaram para a roça, outros foram visitar os filhos na capital, sem contar os que viajaram para a Europa, enfim, deram um jeito de ficar bem longe da cidade. Houve de tudo, dependendo das possibilidades de cada um. Os despreocupados ou sem condição teriam de conviver com a situação pelos quase mil e quinhentos dias do mandato. Foi quando a Ritinha, casada com o Rautosco, teve a ideia de a população se aglomerar toda manhã à porta da casa do prefeito e cantar músicas de protesto, gritar palavras de ordem, enfim, chatear bastante quem os vinha chateando e, em nada sendo feito, assim continuaria. Se tudo desse certo, ele renunciaria e, descobrindo-se pessoa não grata, se mandaria da cidade. Se tudo desse certo... mas não deu. Quer dizer, deu. O prefeito não aguentou uma semana e renunciou. O vice, moço bom, apesar de se mostrar em breve péssimo administrador, tomou posse e todos viveram felizes para sempre. Menos Rautosco e Ritinha. Ele não engolia aquela história de os conterrâneos acharem a Rita linda. Não só achavam, anunciavam aos quatro ventos. Com essa dor, o enciumado surtou no meio do povo, foi internado e não passa muito bem. Ritinha agora é política, não tem tempo para assuntos domésticos e diz que entrega sem medo o marido aos cuidados do SUS.