29.1.24

Janeiro visto de um cesto de gávea

Nos devaneios a que me entrego vez ou outra e quase sempre, concluo, por exemplo, que não deveríamos nos assustar com a inteligência artificial, haja vista que a literatura é o resultado de uma certa IA. Assim como faz a máquina, para escrever um poeminha, é preciso ler outros tantos, misturar uns com outros, respeitar ou não a métrica, à moda de uns, as formas clássicas, à moda de outros. Um erudito talvez leia mil livros, a IA, alguns milhões, senão todos. No entanto, o primeiro vai ao banheiro, a segunda não. Nosso diferencial – e nossa vantagem – portanto, meus amigos, está no fato de irmos ao banheiro. O dia em que a máquina pedir um tempinho para fazer xixi, adeus humanidade.

Há algo de muito errado com nossos figurinistas, pelo menos os de novela. Em Paraíso Tropical – novela de 2007 que se passa no Rio de Janeiro, tendo Copacabana como o centro do mundo –, é sempre verão. Há o núcleo dos que jogam futevôlei e o dos jovens que frequentam a praia após as aulas. Há as meninas de programa em roupa minúscula fazendo ponto ao longo da orla. Enfim, é como é essa cidade-inferno. No folhetim, todavia, fora da praia, os homens se agasalham – de terno, no escritório, de casaquinho desses que as mães aconselham os filhos e as filhas a levarem caso o tempo mude, nos outros ambientes –, enquanto as mulheres não ou quase nunca não. Uma amiga lançou a ideia de que as mulheres com menos roupa obedeceriam ao velho machismo. Pode ser, mas eu vejo como um problema de verossimilhança (ou marketing da indústria do vestuário). Numa mesma cena, os homens – que já estiveram em marte – estão no inverno, e as mulheres – que transitaram por vênus –, no verão. Acordai, figurinistas.

Quando cheguei à Folha Seca, livraria no centro do Rio que completou no dia 20 de janeiro vinte e seis anos, encontrei seu dono, o Digão, carregando cadeira, ajeitando o piano e as caixas de som. Para quem não sabe: no dia de São Sebastião, o padroeiro da cidade, a Folha Seca promove uma festa de rua maravilhosa. Grandes músicos vão para lá e dão altas canjas. A vedete é um piano de cauda, que vai passando de mão em mão. A gente ouve em sequência chorinho, samba-jazz, bossa nova e o velho e bom samba. Pois bem, encontrei o Digão pegando no pesado e comentei que o havia conhecido quando ele era livreiro da Dazibao. Dei-lhe uma espetada: livreiro, não, um repositor de livro. Ele então me disse que aqueles eram tempos bons, agora, dono do negócio, carregava cargas mais pesadas. Dito isso, foi levar cadeiras para a turma do samba. A vida de um empreendedor cultural não é fácil.

A passagem de dezembro para janeiro foi, em termos de saúde, um pouco complicada. Nada sério, só aquelas chatices que surpreendem nosso corpo dando-nos um alerta de nossa mortalidade (será que devo almejar a Academia de Letras?). Primeiro foi um evento – realmente não sei como me referir a isso – de herpes-zoster. Apareceu no olho direito. Dei sorte, não tive dor, o que parece raro nesses casos. No primeiro dia útil do ano, fui ao escritório, o que só faço de quando em quando, pois trabalho à distância. No ônibus, um senhor caiu. Me levantei para ajudá-lo: me agachei, dei-lhe a mão, ele se apoiou em mim e se levantou. Quem por pouco não se levantou fui eu. Enquanto o ajudava, uma pinçada na coluna quase me nocauteou. Um anti-inflamatório e uns analgésicos aliviaram a crise nos dias seguintes. A Solange, que trabalhou em casa por trinta anos, quando soube do caso e de sua consequência lombar, me mandou um conselho: “Ó, vencida a barreira dos sessenta anos, ao presenciar um acidente assim, o máximo que devemos fazer é exclamar: Ah, coitado!”

Li mais devagar neste janeiro à beira dos sessenta graus. De todo jeito, coisas boas. Algumas estão aí à disposição dos leitores (“A casa da mãe dos homens”,  Telha, de Ione Mattos, e “As filhas moravam com ele”, Caos e Letras, de André Giusti), outras têm de ser garimpadas em sebos (“A língua da serpente”, Lê, de Jeter Neves) e, por último, um inédito. Sobre este não anuncio o título nem o autor, mas aguço a curiosidade de vocês: é um livro que, numa escrita leve e sem pompas, não parece muito diferente, mas é.

Estar num cesto de gávea pressupõe estar num barco à vela, a caminho de uma Índia qualquer, encarregado de avistar terra logo adiante. Não estou em barco nenhum. A imagem serve para dizer que estou sobre as águas da cidade submersa pela chuva. Sob os desígnios do deus marítimo e menino, o El Niño, com o auxílio luxuoso de anos de crescimento urbano desordenado e incompetência misturada com má-fé (ou pior) do poder público, as águas sobem pelas ruas e derrubam as casas dos morros. A chuva não tem piedade de ninguém, ou, um pouco a Caetano e Gil e sendo mais exato, ninguém, não, dos que são “quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres”.

15.1.24

A música alimenta

Comecei a gostar de música quando era miúdo de tudo, criado num ambiente em que não era raro ter cantoria, com sanfona e violão. Nascido no interior de Minas Gerais, a música caipira – que, para diferenciar da sertaneja atual, ganhou o sobrenome raiz – sobressaía às demais, ainda que, numa casa de irmãos mais velhos e antenados, eu ouvisse desde os primeiros passos de um Chico Buarque até os garotos de Liverpool que disputavam a fama com Jesus Cristo. Depois, na adolescência das décadas seguintes, para desespero de mamãe, o Pink Floyd e mais tarde o Queen fizeram pouso e escândalo na nossa casinha no Beco dos Aflitos. Ao contrário de muitos amigos, não deixei de lado a MPB, e Milton Nascimento tratou de abrir a porta de um mundo amplo e diverso.

Foi um movimento natural querer ser um compositor de música e letra. Por sorte, nada do que fiz permaneceu, ainda que eu me lembre de trechos como: “você que faz minha cabeça vem comigo pr’eu não parar” (parceria com meu primo Paulinho de Araçatuba); “Conrado, hoje jornal fechado, ilusão de tê-lo sempre ao meu lado”; “Luz e companhia, um fósforo aceso na madeira podre do coração azul”. Sabe-se lá por quais motivos guardamos coisas assim e esquecemos nomes, senhas, o caminho de casa em dia de porre homérico, mas isso não importa, o que vale é que a música me ajudaria a escrever meus contos (não guardei o primeiro, mas sei do que tratava: um funcionário da Petrobras via uma sujeira no chão da sala de sua casa e refletia sobre ela), poemas e crônicas. Esse estímulo seria intensificado quando, um pouco depois, cheguei, como ouvinte, à música instrumental: um pouco de chorinho, de violão e piano brasileiros, depois jazz e umas investidas na música clássica.

Se eu, escritor principiante, não tivesse nenhuma ideia, me sentava diante do computador, ligava uma música sem palavras e, não demorava muito, surgia ali na tela uma frase e logo depois outras tantas que vinham em companhia ou socorro da primeira. Bem diferente de hoje: se começo a escutar música no meio da noite, batata: vou ficar no fone até duas, três da matina, sem fazer nada além daquilo. Nada? Ora nada, a música é uma amante sem corpo que liga todas as máquinas de minhas fantasias, sem me dar o alento do gozo final. Vou querer (e poder) sempre mais. O problema será encontrar forças no dia seguinte. Por isso, tenho preferido manter a audição como uma atividade diurna, a melhor companhia nas caminhadas feitas nessa paisagem chamada Rio de Janeiro. Mas não é a mesma coisa. Na caminhada, a música é apenas uma presença discreta, um, como diria Marisa Monte, barulhinho bom. O fato é que a música já não me faz escrever – até mesmo atrapalha –, mas não consigo considerá-la apenas um entretenimento. Vou contar uma historinha que ilustra bem isso.

Dia desses, eu fazia uma coisa rara: ver vídeos no Youtube. Assistia distraído à playlist do Duo Metafonia, mais ouvindo do que vendo. Batucava os dedos, balançava o corpo, mas aos poucos a voz, as melodias, os instrumentos, os arranjos e as letras foram pedindo uma atenção mais aguda. Como bom mineiro, me perguntei que trem bonito era aquele.

Que trem bonito é aquele? Já bem atento, fui me respondendo: é o trem que trafega na tradição nobre da nossa cultura, de músicos que, compondo agora, estão sendo parceiros de Chiquinha Gonzaga ou de Sueli Costa, de Caymmi ou de Roberto Mendes, de Noel Rosa ou de Aldir Blanc. O Duo Metafonia (@metafonia.duo, no Instagram) fala com a tradição, a rearranja e, como os grandes, joga para o futuro uma versão modificada dessa tradição. Enfim, produzem um som sem firula e sem mesmice.

Nora Fortunato – poeta e violoncelista da Orquestra Petrobras Sinfônica – e Walter Ribeiro – músico popular e cria da Bahia – fazem música para criança (no Spotify, Cirandaê) e para adulto. Assim como Vinícius e sua “A Arca de Noé”, o duo vê na criança uma inteligência a ser respeitada e provocada. Quando se volta aos adultos, alcança aquele ponto em que a música é simples, mas não simplória, é sofisticada, mas não excludente. Nora e Walter compõem e escrevem caprichados arranjos. Além disso, transformam uma história do João Paulo Vaz em música para criança e revelam o Nuno Rau como um letrista tão bom quanto o poeta que é.

Estaria diante de um duo bom de ouvir não fosse o caso de a Nora e o Walter terem-se tornado meus amigos, um desses que convidam a sua casa e servem cerveja, que bebo sem moderação. Servem também um bonito estrogonofe, que eu, saciado pelo violão e pela voz do Walter e pelo contracanto do violoncelo da Nora, me privo de comer.