Não faz muito tempo, li “Madame Bovary”, de Flaubert. O autor e o editor da revista em que o romance foi publicado tornaram-se réus porque, aos olhos de seus contemporâneos, o adultério – feminino, se fosse o masculino estava tudo certo, sabemos bem disso – teria ganhado certo glamour naquelas páginas. Não é bem assim, quem leu sabe o fim da intensa Emma, a madame. (Espero que essa pequena confidência não seja vista como spoiler e afaste possíveis leitores.) Não vou analisar ou fazer uma resenha do “romance dos romances”, pois não tenho interesse nem os apetrechos exigidos pela empreitada – sou apenas um leitor amador. Trago-o à tona porque fiquei pensando se nosso “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, não seria um “Madame Bovary” do ponto de vista do monsieur Bovary, que, como todos sabem, inclusive quem nunca leu o livro, é um corno. Corno manso, devo acrescentar, na esperança de atrair novos leitores ao romance francês. De quebra, também ao brasileiro.
Retomei uma leitura de muitos anos atrás e dessa vez fui com
ela até o fim: “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso, um livro e
tanto, no tamanho (umas 500 páginas) e na qualidade. Quando vejo autores contemporâneos
explorando, num mesmo texto, vários narradores, fico pensando que um dos que mais
souberam fazer isso foi esse mineiro de Curvelo. Desse ponto de vista, ele é um
mestre, e a obra um primor. Mas Lúcio Cardoso (não sei se por pressão externa de
pré-leitores ou do editor, ou se interna, a pior delas) não manteve sua história
no extremo. Quando nos acostumamos com o fato de o clã dos Menezes ter cruzado a
fronteira da moral burguesa, a trama recua e nega o horror, bem, isso até
onde seria possível negá-lo naquela altura do romance. No prefácio da publicação
comemorativa de quarenta anos da primeira edição, lançada em 2000 pela Civilização
Brasileira, André Seffrin diz que “se o último capítulo dilui e desfibra boa
parte da tensão e do enigma que o livro encerra, e se no todo a narrativa deixa
transparecer um engenho demasiadamente literário, estes detalhes são
infinitamente pequenos ante o poder extraordinário da poesia que se levanta destas
páginas”. Concordo, e isso me faz pensar no que seria um bom romance. Na
realidade, não sei, mas anoto que pelo menos uma – quem sabe duas – de suas
partes deve ser muito boa: a história, o texto, a estrutura... ou a coragem de
quem o escreve. Flaubert é corajoso. Machado de Assis é corajoso. Lúcio Cardoso
é corajoso. Clarice Lispector, Carolina Maria de Jesus, Hilda Hilst, Maria
Valéria Rezende são corajosas. Viva a coragem, mesmo aquela – ou principalmente
ela – que não tem nada de clara e triunfante.
Troco o assunto literatura por um ameno: comida, que, aliás,
dá título a esta crônica em que uso maionese e abobrinha para expressar uma conversa
inconsequente, meio à deriva. Sem querer armar confusão, afirmo de forma
contundente: a segunda melhor comida do mundo é o pão de queijo. Não os deixarei
sem saber qual é a primeira, claro. Num texto em que dei até spoiler, vou
esconder uma coisica à toa? A melhor comida do mundo é o pão de queijo da Nilzinha.
Não há comida sem bebida, mesmo os médicos dizendo que é
melhor não misturá-las durante as refeições. Olha só, médico nenhum me disse
isso, mas essa “verdade” zanza por aí muito antes da existência da internet. Essa,
sejamos sinceros, só dá celeridade a assuntos candentes, que despertam apenas o
nosso – reles rudes, giróvagos mesmerizados – interesse. Me lembro que em
tempos pré-redes sociais uma de minhas irmãs foi convencida de que o jeito mais
fácil de emagrecer seria comer com uma colher pequena. Ela adotou a estratégia
e, de fato, emagreceu, mas não naquele momento, e sim muitos anos depois,
quando já havia abandonado a tal colherzinha, deixado de comer doce e virado
rata de academia. Ela é enxutinha agora, passados uns tantos anos após ter
recebido a preciosa dica. Se estivéssemos entre 2020 e 2022, interstício do
nosso aprisionamento, chamaríamos aquela divulgadora da ciência para nos dizer se
a dieta do talher miúdo é comprovada e eficaz, mas, agora que ela cutucou até Freud,
parece mais sensato deixá-la de lado e mudar de assunto.
Aliás, não vou mudar de assunto,
e sim fugir do enorme parêntese em que me meti. Eu ia falar de bebida e acabei expondo
minha irmã e desferindo indelicadezas contra quem eu nem conheço. Falemos de
bebida. Não sei se vocês tomam, assim na maciota, um drinquezinho ou uma cervejola.
Caso não bebam, não vou aconselhá-los a beber, haja vista que o álcool faz um
mal danado e não raro leva ao vício – o que está comprovado, mas há de se pesarem
os prós e os contras, pois, nas pesquisas divulgadas até a semana passada, o
vinho tinto chileno é visto como um elixir cardíaco. Se você, correndo os
riscos do vício e da cirrose, toma um gole aqui e outro ali, preciso dizer o
seguinte: beba água entre uma talagada e outra. Não sei se está provado pela
ciência – ainda que minha irmã, aquela da dieta, tenha visto na internet que sim
–, mas, no meu caso, atenua bem a inevitável ressaca.
6 comentários:
Querido
Você é um cronista e tanto.. Coloca na crônica toda a poesia que carrega dentro de si da qual já deu
mostra em um belo livro.. Mas o cronista é muito bom!
Obrigado, Suzana.
Além do vinho que bebo justamente conforme o figurino, adorei aprender o vocábulo giróvago, não conhecia. Vou esperar estar numa roda de intelectuais e empregá-la. Quanto aos múltiplos narradores tive muita dificuldade em ler William Faulkner, são quatro vozes narrativa sem aviso de mudança dessas vozes. Pretendo fazer, como você fez com Madame Bovary, a leitura desse livro.
Meu amigo, suas crônicas são espetaculares. Adoro! Eu acho que Bentinho não foi corno como o Bovary. Mas isso valeu até tese de mestrado, não sou eu quem dará a palavra final, a ponto de matar o bacana da história. A verdade morreu com Machado de Assis, hehehe. Ou, não há verdade. Ele quis exatamente deixar a dúvida, e nisso foi genial, porque essa percepção sobre o adultério muda com o avanço dos anos, né? Abração!
Dag e Ádlei, obrigado pela visita. Dag, leia, leia sim, é fenomenal. Ádlei, eu brinco com essa coisa do Machado (da cornice do Bentinho), num lugar comum, de fato, de fato mesmo, Bentinho e sua Capitu são um mistério, obra de um gênio, o Machado. Nossa literatura é grande porque tem um cara desses.
Que viagem mais saborosa, Alexandre Brandão, literatura, comida, ética. No entanto, não me furto de uma sugestão. A moça que cutucou Freud, na verdade sabe bem de Janssen. Vai nisso, outra sugestão: a série Netflix, Império da Dor. Não vi ainda, mas a minha caçula, atiladíssim, viu, e gostou muito. Pauleira, vou avisando. E, terminando pela abobrinha, que nem teve no prato hoje, almoçamos discutindo o tema. Vale a pena ver. E, cara, você sabe como ninguém fazer um bom mexido, isto é, uma boa crônica. Parabéns.
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