26.9.22

Sobrevoo em Poços de Caldas

 Aos poucos, vou dando meus passinhos fora de casa. Ainda uso máscara e mantenho os braços prontinhos para uma nova dose da vacina contra esse vírus furibundo. Venha quando quiser, garota. Montado nessa coragem contida, fui à décima-sétima edição da Flipoços (Feira Literária de Poços de Caldas), cujo patrono foi, no aniversário de 50 anos do antológico Clube da Esquina, Milton Nascimento.

Gosto de ver os ônibus escolares desembarcarem meninos e meninas pequenos e outros já adolescentes e acompanhar a sua movimentação. Falam muito e se encantam com tudo. Em Poços, com um vale-livro nas mãos, eles foram à compra. Sem me apoiar em nenhuma ciência, acho que a moçada correu para os livros de fantasia e cards de não sei quê. Ah, não vou reclamar de suas escolhas, exigir que prestigiem a alta literatura, prefiro deixá-los na deles. Se são picados pelos livros, hoje leem isso, amanhã aquilo.

Festas e feiras literárias se fortalecem com mesas pensantes, convocações e compartilhamento de beleza. Na Flipoços, houve encontros importantes, como aquele que reuniu os responsáveis por eventos similares espalhados pelo Brasil. A Fli do Xingu, a de Pernambuco, a do Cerrado de Minas, o Fórum das Letras de Ouro Preto, a (quase septuagenária) Feira do Livro de Porto Alegre e a Bienal de Minas estavam lá na companhia de Gisele Ferreira, a idealizadora da feira anfitriã. Levantaram como proposta criar uma espécie de federação e, assim, ganhar força política para pressionar as várias instâncias do Estado e se aproximar da iniciativa privada.

Na Flipoços, tive notícias do Polígono Sul-Mineiro do Livro, esse entrelaçamento de pessoas e instituições que, naquele espaço de Minas, a minha Minas, faz um esforço tremendo em prol da leitura. O Polígono armou mesas para pensar a leitura e premiar leitores da região que se destacaram ao longo do ano. Acompanho o que essa turma faz, é espetacular.

A grande estrela da feira em ano musical foi Ney Matogrosso. Ele participou, num dia, da mesa de lançamento de sua biografia e, no outro, acompanhou a exibição do documentário sobre sua trajetória, feito por Felipe Nepomuceno, e respondeu a algumas manifestações da plateia. Diante de uma figura que, mais que um ídolo, parece um farol, sobrou emoção, e muita gente não conteve as lágrimas. Alguns, como eu, estavam assim porque esse senhor de oitenta anos carrega uma ideia de país pela qual lutamos e que, hoje, está ameaçada. Outros tinham em Ney a força que lhes deu ar e coragem. Um homem, no meio do caminho entre a juventude e a velhice, pediu a palavra. Não queria dizer nada, apenas que Ney o autorizasse a se aproximar (de máscara, porque Ney anda de máscara) do palco e beijar sua mão. Naquele beijo, de um, o beijo de todos.

Em feiras e festas, os bastidores são tão importantes quanto os eventos. Na secretaria, onde tomávamos um bom expresso e beliscávamos um delicioso docinho de leite, trocávamos ideias e livros, firmávamos amizades, prometíamos encontros. Não há como não registrar como as responsáveis (equipe feminina, o que é digno de registro) pela organização do evento nos acolhiam de forma eficiente e amorosa. Coisas de Minas, posso garantir.

Tive encontros com gente não ligada diretamente à feira. Procurei o Pedro César, músico e ativista de Poços, que eu havia conhecido no ano passado no Rio. Tomamos algumas cervejas, e ele me apresentou a outros jovens – à Carol, por exemplo, que papeou comigo enquanto eu tomava um chope num dia e, no outro, papeou comigo também tomando um chope  – e me aproximou da esperança, esse sentimento que nos estão sequestrando. A intermediação da mesa de que participei foi feita pela Cacá D’Arcadia, outra jovem bem preparada e que disputa, pelo PT, uma vaga na Assembleia de Minas.

Todos os encontros foram precedidos por um não previsto. Cheguei à cidade às cinco da manhã, e Danilo estava na rodoviária para me levar ao hotel. Conversador, ele logo disse que não era da cidade, havia nascido não muito longe dali. Perguntei onde. Em Passos. Minha cidade, ora! Ele então perguntou de que Brandão eu era, já que na terrinha há pelo menos dois ramos (meu pai era de um, minha mãe do outro). Antes que eu respondesse, ele quis saber o nome de minha mãe. Naquela altura, Danilo apostava em quem ela poderia ser. Quando falei Haydée, ele disse que era filho da Dionésia. Ah, a Dionésia! Ela começou a frequentar nossa casa para fazer as mãos e os pés de dona Haydée e, nos feriados e férias, de não sei mais quantas mulheres. Mas Dionésia ultrapassou essa função e ajudou minha mãe no joguinho de loteria, no pagamento dos boletos, nisso e naquilo. Muitas vezes, fazia companhia à minha mãe, almoçava com ela, papeava. Enfim, Dionésia doou parte de seu afeto a nossa família, e nunca conseguiremos agradecer tamanha generosidade. Esse encontro com o Danilo e, de quebra, com meu passado anunciava dias lindos, exatamente como foram.

5.9.22

O que fazer durante o horário eleitoral

Entenda aqueles minutos que invadem a programação da televisão ou do rádio como um chamado. Assim, anote o nome de um candidato a deputado estadual, de uma rara jovem lançando-se como deputada federal, de um ou uma senadora em reeleição e dê uma pesquisada para saber um pouco mais sobre eles, pois a aparição relâmpago é insuficiente, não ajuda em quase nada.

Ou fuja à análise mais detalhada do aspirante a legislador, sente-se e ria. É uma comédia, não resta dúvida. Não só há nomes estranhos alguns remetem à profissão, ao negócio, ao fato de o indivíduo ser pastor ou policial, outros parecem apelidos forjados no mais escandaloso bullying —, como também “plataformas” de rachar o bico. No Rio, a credencial de uma determinada candidata é ser irmã de um sujeito cujo mandato acaba de ser cassado por ele ser acusado, entre outras barbaridades, de pedofilia. Quando se para e se toma fôlego, o riso estanca.

A eleição levada como esquete de circo caça-níquel prenuncia um péssimo futuro. Não seria espantoso assistir a um engolidor de fogo devorar a luz, pois é o que faz grande parte desses títeres de donos de partidos. Aquela máxima dos tempos da ditadura — o último a sair apague a luz — se voltou contra nós; não saímos, resistimos, mas um saudosista daqueles tempos não só apagou a luz, mas também arrebentou todos os fios, danificou a caixa de luz, explodiu as usinas.

Melhor então, quem sabe, se distrair com outra coisa. Um olho na TV e o outro no passado. Por favor, só não se engane com o papo de que naqueles tempos tudo era melhor. Leia “Vila dos Confins”, de Mário Palmério, e veja como eram as campanhas eleitorais quando o Brasil era rural e nem em sonho se cogitava a existência de urnas eletrônicas. No romance, um cabo eleitoral se mete no Brasil profundo com a função de agregar os grandes fazendeiros em torno da candidatura para a qual trabalha. Se o coronel fecha um acordo, bem, todos os seus empregados o acompanham — o famoso voto de cabresto. A turma que defende foto do voto ou voto manual deseja a volta daqueles tempos, bons para eles e para mais ninguém. Na realidade, sonham com a época em que nem eleições havia ou só havia, sob muita vigilância, para os cargos menores. São eles os restolhos de uma ditadura que não foi, como deveria, superada, morta e enterrada.

O tempo que o horário político sequestra de nós é propício a rememorar a infância, aquele mágico período em que, retirando alguns probleminhas, problemas ou problemões, ninguém se angustia quanto aos rumos do país, só isso vale um tesouro. Mas insisto: ontem não era melhor que agora, nem hoje será melhor que amanhã, ainda que, sim, houvesse coisas muito boas que se perderam, assim como algumas se perderão daqui para o futuro. Nesse interregno no qual uma horda de siderados quer nos convencer — seguindo um roteiro além de ruim, manipulador — de sua capacidade de resolver todos os problemas do país com soluções simplistas, malabarismos, se é para se dar o direito a um pingo de alienação, entre pela porta de Shangri-lá.

Que tal preparar um milk-shake para compartilhar com as crianças? Ou se aproximar de seu amor e dizer-lhe o quanto a vida é melhor em sua companhia? Ou roubar desse amor um beijo, um arrepio, e oferecer-se de corpo e alma ao corpo e à alma dele? Falar com um velho amigo, aquele que nunca ligou para política e só pensa em futebol? Ah, nada como uma discussão sobre futebol!

Há, ainda, o caminho dos pedregulhos, ou seja, com um paralelepípedo nas mãos, tomar as ruas com a intenção de derrubar tudo ligado a essa gente: sedes de partidos, congresso, assembleias, os palácios modernos de Niemeyer. Confesso que de vez em quando tenho vontades assim, mas a coisa só se acertará a partir da política. São falsos esses que, estando nela, vendem a ideia de que não estão.

Preste atenção no horário eleitoral, ainda que só de vez em quando, pois, entre tantos paspalhos, alguns defendem causas urgentes, pertencem a grupos marginalizados, precisam ganhar voz. Alguns carregam uma vela.