Para quem não é do Rio de Janeiro ou está por fora, preciso
dizer o que é a Casa 11. É um sebo. Começou como um sebo e, em seguida, passou
a vender livros novos, portanto é uma livraria. Mas, antes mesmo de se
materializar, foi pensada como um centro cultural. Logo é um centro cultural.
O espaço fica em Laranjeiras, a cem metros do Instituto
Nacional do Coração, um hospital público. A história começa quando uma médica,
num momento de folga, bate perna pelo bairro. Ela encontra, numa galeria antiga
e aconchegante, uma pequena loja vazia, o que a faz se lembrar da livraria que manteve
por longos anos em Santa Teresa. Nostálgica, volta ao hospital e comenta com
outros médicos o ocorrido e os provoca: por que não abrir ali um sebo em
sociedade? Poderiam formar o acervo inicial com livros que tivessem em casa e
receber doações. O custo de manutenção da loja, por sua vez, seria cotizado
entre eles. Logo havia um bom número deles disposto a embarcar no sonho. E não
demorou muito para não médicos também se incorporarem ao grupo. Não sei quantos
são ao certo, mas a Casa 11 tem mais de cem sócios (algumas cotas são compartilhadas
por mais de uma pessoa).
Vai dar errado, vaticina a pessoa que tem na cabeça
sociedades ambiciosas por lucro e eficiência, a métrica capitalista. Na Casa
11, não se busca o lucro, que, claro, vem. Basta vender um livro e há uma
sobra, não é? Mas, no caso, essa sobra ou cobre os custos (que os sócios estão
dispostos a bancar) ou se transforma em novas compras. Mais que vender livros, a
ideia é movimentar a cena.
A inauguração foi um festão. Havia música, vinho, abraços,
encontros. Vez ou outra, promovem festas e já são uma referência em matéria de
lançamentos e mesas de bate-papo. Além disso, o nome passou a circular pela
cidade, parou em jornais, enfim, a maioria das pessoas já sabe o que é. O
antinegócio deu tão certo que alugaram a sala ao lado, a ser inaugurada em
breve, provavelmente com festa.
Como se não bastasse, a Casa 11 promove eventos em outros
lugares, como foi a recente Festa Literária de Laranjeiras, da qual falo em
seguida. Antes pontuo que o tema do empreendimento nefelibata é “mais livros,
menos farmácias”, uma cutucada no fato de que no Brasil as farmácias prosperam
a olhos nus. A doença pode ser curada com leitura, contrapõe a sociedade dos
médicos amantes dos livros.
Com esse espírito, a Casa 11 organizou a festa literária, na
qual livreiros vizinhos (como os do Jacaré Livros) e um pessoal ligado à
gastronomia se juntaram. As palestras privilegiaram a experiência com mediação
de leitura em lugares normalmente excluídos dos investimentos culturais, as
favelas, em particular, deram destaque à literatura indígena e, fiel ao slogan,
à relação entre saúde e literatura. Ainda que um amigo tenha criticado a
ausência de referência a escritores locais – Machado de Assis, do Cosme Velho,
bairro adjacente a Laranjeiras; Sérgio Sant’anna, de Laranjeiras, entre outros que
têm os pés no bairro –, o que é uma boa observação, isso não diminui o caráter inovador
da proposta.
Passei por lá, embora não tenha podido ficar muito tempo. Vi
a mesa sobre mediação de leitura e ouvi o coral do São Vicente (escola do Cosme
Velho, que fica defronte ao prédio erguido no terreno da casa de Machado). Já
conhecia o coral, pois filhos meus estudaram lá, mas, entre a última vez que o
ouvira e a recente, percebi uma evolução impressionante. É verdade que havia um
elemento emotivo muito grande: foi a primeira apresentação do grupo depois de
duas de suas cantoras terem falecido, uma delas muito minha amiga. Além disso,
cantaram Milton Nascimento.
Antes do coral, assisti a uma parte da mesa “Mediação de
leitura e cidadania: use sem moderação”, organizada por Bia Serra, com os
palestrantes negros Vanessa Soares, Otávio Junior e Maria Chocolate. Quando
cheguei, Vanessa Soares terminava sua fala. Ouvi então os outros dois. Otávio
Junior é bem conhecido, e sua experiência está contada em “O livreiro do
Alemão”. Morador do Complexo do Alemão, fominha de bola, com sonho e capacidade
de ser jogador de futebol, seu caminho sofreu uma inflexão ao encontrar um
livro abandonado no campo da pelada. Não custou muito a se perguntar por que os
livros não narravam histórias de meninos como ele – o que lançou na feira é sua
tentativa de ocupar esse espaço. Otávio é um sujeito objetivo, ainda que fale
com emoção. Já Maria Chocolate, uma senhora assim da minha idade, sessenta e
alguns anos, é puro transbordamento. Filha de pais analfabetos, ouvia a
profecia da mãe de que seria professora, o que parecia um disparate – como, no
meio de tanta penúria? Pois aconteceu. E foi além: um dia montou, na varanda de
sua casa, num bairro pobre de Caxias, uma biblioteca, onde orienta crianças em
suas leituras. Dona Maria Chocolate, que também lançava um livro, se espanta com
a própria trajetória: acabou reconhecida (seu espaço foi visitado por Ziraldo, entre
outros), mesmo fazendo tudo de forma precária. É um depoimento comovente. O que
veio a seguir, o coral, a ausência de minha amiga e a música do Bituca elevaram
aquela comoção inicial ao quadrado de mil, a ponto de eu não conseguir esconder
minha emoção e de uma das cantoras (outra minha amiga), lá do palco, percebê-la.