13.7.24

Casa 11

Para quem não é do Rio de Janeiro ou está por fora, preciso dizer o que é a Casa 11. É um sebo. Começou como um sebo e, em seguida, passou a vender livros novos, portanto é uma livraria. Mas, antes mesmo de se materializar, foi pensada como um centro cultural. Logo é um centro cultural.

O espaço fica em Laranjeiras, a cem metros do Instituto Nacional do Coração, um hospital público. A história começa quando uma médica, num momento de folga, bate perna pelo bairro. Ela encontra, numa galeria antiga e aconchegante, uma pequena loja vazia, o que a faz se lembrar da livraria que manteve por longos anos em Santa Teresa. Nostálgica, volta ao hospital e comenta com outros médicos o ocorrido e os provoca: por que não abrir ali um sebo em sociedade? Poderiam formar o acervo inicial com livros que tivessem em casa e receber doações. O custo de manutenção da loja, por sua vez, seria cotizado entre eles. Logo havia um bom número deles disposto a embarcar no sonho. E não demorou muito para não médicos também se incorporarem ao grupo. Não sei quantos são ao certo, mas a Casa 11 tem mais de cem sócios (algumas cotas são compartilhadas por mais de uma pessoa).

Vai dar errado, vaticina a pessoa que tem na cabeça sociedades ambiciosas por lucro e eficiência, a métrica capitalista. Na Casa 11, não se busca o lucro, que, claro, vem. Basta vender um livro e há uma sobra, não é? Mas, no caso, essa sobra ou cobre os custos (que os sócios estão dispostos a bancar) ou se transforma em novas compras. Mais que vender livros, a ideia é movimentar a cena.

A inauguração foi um festão. Havia música, vinho, abraços, encontros. Vez ou outra, promovem festas e já são uma referência em matéria de lançamentos e mesas de bate-papo. Além disso, o nome passou a circular pela cidade, parou em jornais, enfim, a maioria das pessoas já sabe o que é. O antinegócio deu tão certo que alugaram a sala ao lado, a ser inaugurada em breve, provavelmente com festa.

Como se não bastasse, a Casa 11 promove eventos em outros lugares, como foi a recente Festa Literária de Laranjeiras, da qual falo em seguida. Antes pontuo que o tema do empreendimento nefelibata é “mais livros, menos farmácias”, uma cutucada no fato de que no Brasil as farmácias prosperam a olhos nus. A doença pode ser curada com leitura, contrapõe a sociedade dos médicos amantes dos livros.

Com esse espírito, a Casa 11 organizou a festa literária, na qual livreiros vizinhos (como os do Jacaré Livros) e um pessoal ligado à gastronomia se juntaram. As palestras privilegiaram a experiência com mediação de leitura em lugares normalmente excluídos dos investimentos culturais, as favelas, em particular, deram destaque à literatura indígena e, fiel ao slogan, à relação entre saúde e literatura. Ainda que um amigo tenha criticado a ausência de referência a escritores locais – Machado de Assis, do Cosme Velho, bairro adjacente a Laranjeiras; Sérgio Sant’anna, de Laranjeiras, entre outros que têm os pés no bairro –, o que é uma boa observação, isso não diminui o caráter inovador da proposta.

Passei por lá, embora não tenha podido ficar muito tempo. Vi a mesa sobre mediação de leitura e ouvi o coral do São Vicente (escola do Cosme Velho, que fica defronte ao prédio erguido no terreno da casa de Machado). Já conhecia o coral, pois filhos meus estudaram lá, mas, entre a última vez que o ouvira e a recente, percebi uma evolução impressionante. É verdade que havia um elemento emotivo muito grande: foi a primeira apresentação do grupo depois de duas de suas cantoras terem falecido, uma delas muito minha amiga. Além disso, cantaram Milton Nascimento.

Antes do coral, assisti a uma parte da mesa “Mediação de leitura e cidadania: use sem moderação”, organizada por Bia Serra, com os palestrantes negros Vanessa Soares, Otávio Junior e Maria Chocolate. Quando cheguei, Vanessa Soares terminava sua fala. Ouvi então os outros dois. Otávio Junior é bem conhecido, e sua experiência está contada em “O livreiro do Alemão”. Morador do Complexo do Alemão, fominha de bola, com sonho e capacidade de ser jogador de futebol, seu caminho sofreu uma inflexão ao encontrar um livro abandonado no campo da pelada. Não custou muito a se perguntar por que os livros não narravam histórias de meninos como ele – o que lançou na feira é sua tentativa de ocupar esse espaço. Otávio é um sujeito objetivo, ainda que fale com emoção. Já Maria Chocolate, uma senhora assim da minha idade, sessenta e alguns anos, é puro transbordamento. Filha de pais analfabetos, ouvia a profecia da mãe de que seria professora, o que parecia um disparate – como, no meio de tanta penúria? Pois aconteceu. E foi além: um dia montou, na varanda de sua casa, num bairro pobre de Caxias, uma biblioteca, onde orienta crianças em suas leituras. Dona Maria Chocolate, que também lançava um livro, se espanta com a própria trajetória: acabou reconhecida (seu espaço foi visitado por Ziraldo, entre outros), mesmo fazendo tudo de forma precária. É um depoimento comovente. O que veio a seguir, o coral, a ausência de minha amiga e a música do Bituca elevaram aquela comoção inicial ao quadrado de mil, a ponto de eu não conseguir esconder minha emoção e de uma das cantoras (outra minha amiga), lá do palco, percebê-la.




29.6.24

Ônibus em festa

 

Para Shirley


Como ando bastante de ônibus, coleciono suas histórias e transformo algumas em crônica. Mais de uma vez, estive nas mãos de um motorista que não sabia o caminho e dependia da boa vontade dos passageiros. Ouvi diálogos estranhos e até um monólogo sui generis: uma mulher, assim do nada e falando com ninguém, passou a chamar a atenção de Lula, em seu primeiro ou segundo mandatos, para o fato de que, quando aqui é manhã, no Japão já é noite. Na avaliação da passageira, um atraso para o qual o presidente deveria abrir bem os olhos. Durante uma chuva de verão, vi a água entrar pela escada de acesso ao ônibus – um modelo moderno, rebaixado de modo a facilitar a entrada de idosos, mas que não vejo mais em circulação –, como se fosse um passageiro que, em vez de pagar, passa por baixo da roleta. Na crônica anterior a esta, comentei sobre o casal que, ao descer de um ônibus, se mostrou perdido em Botafogo.

O ônibus, mais uma vez ele, dita a crônica de hoje. Aconteceu no dia em que o Chico Buarque completou oitenta anos, o Botafogo arrancou, no último segundo dos dez minutos de acréscimo, um empate contra o Athletico Paranaense e eu havia ido ao lançamento do novo romance do Haron Gamal (“Lucarna”, editora Cajuína). Aliás, uma reunião agradável, com seus cálices de vinho e uma conversa afiada que nos levou a Tomas Mann, cuja mãe, Julia, nasceu no Brasil, em Paraty. Nos lembramos de “Ana em Veneza”, romance no qual João Silvério Trevisan nos conta, a partir da mudança dos Mann do Brasil para a Alemanha, o encontro de Julia, de Ana, a escrava levada daqui para lá, e do compositor brasileiro Alberto Nepomuceno. Embasado em vasta pesquisa, Trevisan, ao confrontar o fim dos séculos XIX e XX e manobrando ficção e ensaio, produziu, a juízo de Haron e meu, um clássico.

Na saída do lançamento, peguei o 435, Gávea-Grajaú. Mal entrei, o motorista falou alguma coisa que não captei o que era. Na continuação da viagem, supus que havia feito alguma graça, pois ele brincava com todo mundo. Prestei mais atenção quando entrou um vendedor. Antes de anunciar seus produtos, ele se aproximou da roleta e, como é de praxe e em agradecimento, ofereceu um doce a quem lhe franqueara a entrada. Os dois trocaram um dedo de prosa. Como tudo foi falado em voz alta, soubemos que o condutor por dezoito anos esteve naquele corre do vendedor. Terminada a conversa, os produtos foram anunciados sem que ninguém tivesse comprado uma mariola sequer. O vendedor desceu ouvindo as palavras animadoras do colega – “vai com Deus, tudo vai dar certo”. Em seguida, um menino sentado à minha frente abriu a janela e muito educadamente foi repreendido. O ar estava ligado, alertou o condutor. O menino entendeu o que era para ser feito, e a mãe, que estava noutro banco, ouviu um tremendo elogio – “que orgulho de garoto!”

Entraram, então, duas mulheres vestidas para festas juninas – uma de vestidinho de chita florido, a outra de chapéu de palha, cavanhaque e bigode pintados a lápis e, como se dizia na minha infância, calça rancheira. O motorista as recebeu com entusiasmo. Num instante os três cantavam músicas de São João, Santo Antônio e São Pedro e, no instante seguinte, éramos informados de que Nilson – acho que era esse seu nome – fazia anos. O ônibus inteiro entoou o Parabéns. No ponto seguinte, o motô – como são carinhosamente chamados pelos cariocas – se levantou, chamou a mulher mais tagarela, a vestida de homem, abriu os braços para ela, que não furtou de se aninhar no abraço, e disse que nunca havia dirigido num dia tão bom, que a vida era mesmo bela. Ela, por sua vez, confessou que seria difícil abandonar aquele mundo e externou seu desejo de continuar com ele naquela viagem e nas próximas. Antes de voltar à direção, ele fez uma imitação de Silvio Santos e nos autorizou a chamá-lo pelo nome do apresentador, uma vez que os amigos assim o faziam. As mulheres desceram no próximo ponto, mas antes deram o endereço de suas casas, novamente em voz alta e sem a menor preocupação. Uma vive no Tabajaras, a outra na Figueiredo Magalhães. Essa coisa do endereço foi importante porque uma delas esqueceu uma marmita, e Silvio Santos – em versão melhorada, negra, gorda e risonha – se prontificou a deixá-la na portaria da casa da passageira quando repassasse por lá.

Naquele dia, eu carregava uma tristeza profunda, que cresceria ainda mais na manhã seguinte: a dona do abraço mais expressivo do mundo desceria dessa espécie de transporte que apanhamos por acaso, não sabemos para onde nos levará e do qual, de supetão, somos atirados fora: a vida. Aquele alvoroço radiante da pequena viagem serviu de contraponto a meu pesar. Ainda no ônibus, revi a visita ao hospital no dia anterior. Minha amiga me deu um abraço quando cheguei, outro quando fui embora. Como sempre fazia, como nunca mais fará. Dessa vez, além do costumeiro acolhimento, repousou sobre meu corpo um conselho: que eu perseverasse na alegria, no molde do motorista do 435, das festeiras de Copacabana, dessas pessoas de quem minha amiga não teve tempo de ouvir falar.

28.6.24

A Ribeirinha (*)


(Antonio Barreto)


No mundo, disso não há semelhança:

enquanto vou vivendo de esperança,

por ela vou morrendo – e... ai!

 

Minha senhora clara e rosada,

como queria descrevê-la, e tanto

só eu sei quando a vi sem manto!

 

Infeliz do dia em que me levantei

e a vi assim tão bela, tão corada!

 

Minha senhora, desde aquele dia, ai,

me senti bem mal, comigo ausente.

 

Ela, filha de Dom Paio

Moniz, bem parecida

por seus modos, de luxo assim vestida.

 

E eu, minha senhora, um presente

de si nunca poderei ter, nem dar:

a não ser alguma coisa reles,

sem valor, insignificante!

Ay!


(*) BARRETO, Antônio. A ribeirinha. [Adaptado da obra do poema de] TAVEIRÓS, Paio Soares de.

15.6.24

Perdidos em tempos eletrônicos

Espero no ponto o 409 ou o 410. Se há alguém que me acompanhe e que, me acompanhando, retenha algum detalhe de minhas crônicas, ele ou ela talvez saibam que estas são as linhas de ônibus que uso em meu trajeto casa-trabalho-casa.

Depois de me acomodar numa ou noutra condução, saco um livro da mochila ou chafurdo no celular ou simplesmente aprecio a paisagem e, não demora muito, desço na primeira parada da Lapa, ando uns 500 metros e chego ao trabalho. Costumava alterar o jeito de voltar para casa, em vez de ônibus, tomar o metrô, mas a tarifa deste está pela hora trágica da morte sofrida e súbita, três reais mais cara que a do ônibus. Pasmem, o metrô – de extensão tímida numa cidade com tantos problemas de transporte público – tem o mesmo preço do trem que circula entre a Central e o subúrbio, ou seja, a turma que mora longe, que ganha menos, se virando em trabalho pouco qualificado, gasta o mesmo que os mais afortunados. Somos uma nação cruel. Seja como for, tenho voltado de ônibus para casa, opção, aliás, muito boa, pois dele se pode ver gente, assim como no metrô, mas principalmente pode-se apreciar a paisagem, um privilégio de quem vive nessa cidade que, de tão bela, faz cair o queixo até de um Noel Rosa e arranca lágrima dos menos emotivos.

Peço a compreensão de quem passou pelas linhas inúteis anteriores e uma segunda chance, não era nada disso que gostaria de dizer, me perdi mal comecei a crônica, mas, uma vez dito, dito está. Continuem comigo, por favor.

Espero no ponto o 409 ou o 410. Antes de um deles chegar – será o 410 – encosta o 309. A viagem nesta linha leva, do início ao fim, mais ou menos 1h30m – num percurso, entre o terminal Alvorada, na Barra, e a Central do Brasil, com mais de 70 paradas – e nela vão verdadeiros estrangeiros. Digo isso porque a pessoa que toma o coletivo na Barra – às vezes vindo do Recreio, de Curicica, de Santa Cruz, sabe-se lá de onde –, não conhece muito bem São Conrado, Gávea, Jardim Botânico, Humaitá, Botafogo, Flamengo, Glória e o Centro, os bairros pelos quais o ônibus passa. Essa parece ser a situação do casal que, ao saltar, se vê largado na rua e não na calçada. A senhora logo sobe para o espaço dos pedestres, o senhor fica no dos veículos, coladinho ao passeio. Ele olha abismado para um lado e outro. Vê um supermercado ali, um banco aqui. Uma perfumaria à esquerda, uma lanchonete à direita. Experimenta o mundo como se acabasse de chegar a ele. Já a senhora excede em objetividade. Olha para cima, olha para baixo e pronto: aponta o sentido da praia, para onde começa a caminhar. O senhor dá umas cabeçadas antes de segui-la.

Fico espantado por não terem tirado um celular do bolso e consultado o mapa. Ou mesmo já descerem com a lição tomada, numa consulta prévia feita no percurso que, da Barra a Botafogo, deve ter consumido mais da metade do tempo total da viagem ponta a ponta. Pode ser que não tenham intimidade com o aparelhinho que controla a nossa vida. Duvido. A julgar pelo jeito aéreo do senhor, imagino que, se tivesse um, mesmo folheado a ouro, o teria sacado e, na rua, não na calçada, começaria a consulta. Um homem daquele, que faz pouco caso de um atropelamento, não há de temer trombadinha, nem os de terra estrangeira. Ou teme tanto que deixou o celular em casa. Fica o mistério: por que não fizeram uma consulta rápida e eficiente, antes ou naquele momento?

Vão pelo faro da mulher, é o que sei dizer. Meu 410 chega, entro, pago, consigo me sentar, sacar o livro do Leonardo Almeida Filho, Berro (Editora Patuá), e começar a lê-lo. Em um segundo, a leitura me deixa encantado com a engenharia amorosa usada por meu amigo na construção de seus contos – já lhe deram um prêmio? Pois deem. Preso ao texto, nem namoro o Aterro, ou seja, abstenho-me da paisagem. Se não desfruto da beleza, poderia ter optado pela rapidez do metrô, embora, claro, de ônibus economize três pratas, o que, na atual circunstância, faz diferença.

Depois de saltar da condução e antes de me ajeitar na mesa do trabalho, volto a pensar no casal e, a partir dele, nas formas que inventamos para nos localizarmos em território desconhecido. Antes da facilidade do mapa eletrônico, havia o mapa em papel – tenho dificuldades em consultá-lo – a bússola – essa, que a meu juízo continua a falar mandarim, não deve levar ninguém da Torre Eiffel ao Museu Rodin ou do Recreio a uma rua de Botafogo – e, antes deles, as estrelas. A história humana talvez possa ser contada a partir da evolução das ferramentas de localização. No meu caso, no tempo anterior à traquitana eletrônica, sempre apostei na intuição, igual ao casal. Orgulhoso, nem perguntar a um estranho perguntava, o que já gerou conflito aos que, com espírito científico, caminhavam comigo. Nunca deixei de chegar ao destino, não sei se pelo melhor caminho, mas isso não importa.




3.6.24

Paul Auster e eu

No dia 30 de abril, aos setenta e sete anos, Paul Auster morreu em Nova York. Diante da notícia, me dei conta de que havia lido apenas um de seus livros, talvez o mais incensado, “Trilogia de Nova York”. Não bastasse a lacuna, nada me lembro daquela leitura, que deve ter ocorrido no final dos anos 1980 ou no máximo no início da década seguinte.

Na bagunça das minhas estantes, busquei seus livros e, para minha surpresa, não só tenho alguns, como estão na parte organizada da biblioteca. Peguei “Invenção da solidão” (Companhia das Letras, com tradução de Rubens Figueiredo) e li de uma sentada.

Na primeira parte, Auster conta como viveu o momento da morte do pai, relembrando a figura um tanto quanto ausente ao longo de sua vida. Em contraposição, mergulha na sua relação com o filho, buscando saber se cometia os mesmos erros do pai. Terminada essa narrativa reflexiva, passa a escrever um misto de romance e ensaio. Sua escrita então – distribuída em treze partes a que chama de livros da memória –, valendo-se de outros escritores, de obras como a Bíblia e Pinóquio, de suas memórias e a de seus familiares, lida com a questão da coincidência, que de forma muito própria reforça e é reforçada pela solidão.

A coincidência é o fio que une as peças soltas da memória, o que o leva a dizer: “Memória: o espaço em que uma coisa acontece pela segunda vez.” Aproveitando a deixa, abandono o caminho de uma resenha ou coisa que o valha para contar   uma coincidência entre uma parte do romance de Auster e um conto meu. Ele escreve:

 

Não se tratava exatamente de estar morto, mas sim de que ele ia morrer. Isto era certo, um fato imanente e absoluto. Estava deitado em um leito de hospital, acometido por uma doença fatal. Seu cabelo tinha caído em certas partes do crânio e sua cabeça estava meio careca. Duas enfermeiras vestidas de branco entraram no quarto e lhe disseram: "Hoje você vai morrer. É tarde demais para ajudá-lo". Eram quase mecânicas em sua indiferença em relação a ele. A. chorou e implorou às enfermeiras: "Sou jovem demais para morrer, não quero morrer agora". "É tarde demais”, responderam as enfermeiras. “Agora temos de raspar sua cabeça." Com lágrimas escorrendo dos olhos, ele as deixou raspar sua cabeça. Depois elas disseram: "O caixão está logo ali. Vá até lá e deite-se dentro dele, feche os olhos e logo você vai estar morto". A. queria fugir. Mas sabia que não era permitido desobedecer às ordens delas. Foi até o caixão e entrou. Fecharam a tampa sobre ele mas, uma vez lá dentro, ficou de olhos abertos.

Então acordou pela primeira vez.

 

Em março de 2024, quase dois meses antes da morte de Auster, escrevi o pequeno conto a seguir.

 

Olha, a enfermeira falou. Aflitos, meus olhos começaram a procurar alguma novidade naquele espaço tão exíguo. Ela fez um sinal para que me acalmasse e a escutasse. Olha, na realidade, era ouça. Respirei fundo tentando deter a excitação momentânea e rara. Mirei os olhos da enfermeira e de lá entrei em seu interior. Seu fígado não tinha marcas de excessos, bactérias ruidosas percorriam o longo caminho do intestino e o coração era uma criança cujos braços estavam estendidos pedindo o colo da mãe. Com sua voz suave, mas impositiva, ela me devolveu ao exterior. Olha, repetiu, você vai morrer hoje à tarde. Morrer hoje à tarde, morrer hoje à tarde, ecoou nos meus abismos. Morrer hoje à tarde. Tomei uma de suas mãos. Ela sobrepôs a sua outra sobre a minha, e eu levei a minha ainda solta para junto das demais. Poderíamos começar uma brincadeira dessas que se fazem com as mãos, mas não, não brincamos. Reunidas, nossas mãos formaram um pequeno totem sem adoradores. Uma lágrima brotou no cantinho de um dos meus olhos e, sem que nada a detivesse, foi serpenteando minha face, escorreu pelo pescoço e, fina, nem gelada nem quente, não demorou a sumir. A enfermeira pegou uma toalha de rosto, enxugou um pouco minha testa e as pontas do cabelo que se espalhavam sobre ela. Meus cabelos, eu via pela manhã, quando pedia um espelho para me ajeitar um pouco, estavam pastosos, evidenciando a sua permanente quase sujeira. A enfermeira por fim repousou os lábios em minha testa e a beijou com ternura. Meu longo suspiro talvez tenha rompido os limites do cômodo e chegado a um pássaro, a alguém no corredor, ou simplesmente se perdido no ar como todo som. Não posso morrer na quinta? Ela pareceu se assustar, mas logo seu semblante distendeu e anunciou um sorriso que não veio. E o que você fará com essas quarenta e oito horas? Ou melhor, trinta e seis, você ainda tem as doze de hoje. Fechei os olhos, como se assim me liberasse de respondê-la e ela entendesse aquilo como um último pedido. Eu a ouvi afastar-se da cama, mexer no sofá, recolher coisas, abrir e, em seguida, fechar a porta quase sem fazer barulho.

 

Auster não defende tese alguma, mas se encanta com a realidade e se espanta com o convulso mundo da escrita. Compartilho da mesma sensação e sigo. Este texto é seu, Mr. Paul.