14.5.24

Resenha de Aí onde não cabe (Editora Patuá) - Ione Mattos

 OPINIONE

29_02_2024

 

“aí onde não cabe”, uma bem armada confluência entre duas novelas de Alexandre Brandão e ilustrações de Ricardo Tamm, mexeu comigo. O conjunto, em um único volume de dupla face, me propôs, ou eu mesma me propus, não sei precisar, uma experiência entre personagens comuns e cotidianas, vivenciando desconfortos em que “o absurdo perde a modéstia”, como já o disse Nelson Rodrigues.

No design do livro, as novelas “zerinho ou um” e “o anjo ouve os noturnos” estão de ponta-cabeça uma em relação à outra. Marcando fronteiras e organizando meu olhar, a capa de “zerinho ou um” abre para “o anjo ouve os noturnos”, e vice-versa. Hum... ─ cismei eu, não são dois em um. São um em dois.

Começou por aí, pela materialidade do livro em minhas mãos, a minha aproximação com os textos e as pistas da ilustração: setas apontando circularidades, interseções, convergências, só tomando forma concreta onde a lâmina corta (de ambos os lados, dividida), obrigando-me, para seguir, a revirar o volume e correr páginas onde as linhas desenhadas sugerem mãos trêmulas que se sobrepõem, mas jamais se entrelaçam.

Sim, as novelas não se tocam: não é o mesmo enredo, não se repetem as personagens, tampouco os tópicos são similares. Mas as ilustrações, garatujas intencionais, unem-se à narrativa para sugerir-nos a interseção em uma dimensão mais ampla, tal como costuma acontecer conosco e nossas histórias pessoais: individuais na medida limitada de nossa posição nos acontecimentos, coletivas no ambiente que as contextualiza e determina. Afinal, todo acontecimento esconde modos de vida e os modos de vida nunca são individuais, e sim sociais, relacionais.   

Dico e Blasco, as personagens de “zerinho e um”, ocupam um lugar específico na estrutura que os situa, espaço que não é o de Clara e demais personagens de “o anjo ouve os noturnos”, daí a diversidade dos enredos. O que essa diversidade desvenda, no entanto, são os condicionantes comuns, que tornam inconsequentes as buscas por uma saída. Estão todos (ou estamos todos?) presos nessa trama coletiva, os esforços e as vias por uma saída pessoal tornando-se respostas que nada podem diante do todo.

Leituras instigantes, as novelas somam, em doses variadas, as facetas que há tempos admiro nos textos de Alexandre ─ o ficcionista, o poeta, o cronista, faces de perspectivas de humor sutis e inusitadas.

Ali estão as construções poéticas: “o silêncio, esse específico, tornava-se uma necessidade premente”; “sorrir subestimava a sua alegria”; “inocente chão de estrelas e luas”; “casa sem rosto”; “o cansaço não lhe fazia sala”...

As observações singulares: “tropeçava no pé dos próprios problemas”; “livrara-se da fome sem fim dos boletos”; “não comungava mais de nenhum pingo de ontens: era o homem do ali em diante”; “não se pode pedir lucidez a um homem distraído”; “o coração de quem perdeu os olhos está mais protegido que o de quem não vê”.

A ironia do humor: “─ O que sou por fora, sou por dentro. ─ Existe gente assim? ─ Devo ser um teste de Deus.”; “─ Pago o olho da cara por ele. ─ Os dois?”; “não era um pássaro, muito menos um galo, quem cantou ali foi sua culpa”; “a felicidade, tudo indicava, custava o preço de uma faxina”; “todo pensamento de cão, ou de cães famintos, não passava de um pedaço de osso”; “o esperado diapasão masculino, ora falando de mulheres, ora de futebol”...

Contudo, desta vez, os textos estão construídos também sobre estranhamentos, dos quais destaco a atmosfera como elemento de cena nos noturnos de múltiplos sentidos. Não somente externos e sonoros, como os de Chopin e da noite, mas internos e viscerais, como os que vivem nas pessoas, tantas vezes indecifráveis como as sombras e a escuridão. Para quem Clara, a narradora, afinal se dirige: “Que os Noturnos me consolassem. Ou me tornassem bárbara”. Fascinantes e selvagens noturnos. 

Ambas as novelas, nas vozes dos narradores, são não apenas provocativas das nossas curiosidades e emoções, mas igualmente subversivas em relação aos nossos padrões de realidade, convites abertos ao imaginário: a interpretação fantasiosa dos fatos, as indagações sem resposta, os comportamentos nonsense e as percepções sem sentido. Uma boa mexida na cabeça e nas emoções do leitor.

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