AÍ ONDE NÃO CABE” (Patuá, 2024), duas novelas de Alexandre
Brandão
A prosa de Alexandre Brandão é tão instigante quanto sua
poesia. Os poemas de “O sol pelo basculante” (2022) davam conta, com alguma
ironia e muita melancolia, do período medonho da pandemia. O luto estava
explícito ali, em versos doloridos, assim como a memória da infância e da
juventude num tempo em que a vida era muito mais suportável e fácil de ser
vivida.
“Aí onde não cabe” traz um elemento novo — o estranhamento,
esse poderosíssimo recurso narrativo que atiça a curiosidade do leitor —, a
começar pelo título geral do volume (onde é “aí”? o que não cabe aí?) e pelos
títulos individuais das novelas (são duas): “Zerinho ou um” e “O anjo ouve os
noturnos”. Os dois textos estão impressos nos lados opostos do livro, isto é,
termina-se a leitura de um e vira-se o livro de ponta-cabeça para começar a
leitura do outro. O leitor acha estranho, mas gosta. Muito.
Em “Zerinho ou um”, Dico e Blasco protagonizam um estranho
“se eu fosse você por um dia”, como se um espelho mágico devolvesse a cada um a
imagem que o outro queria ter. Dico está acossado pela inadequação na vida e
almeja radicalizar o seu “estar no mundo”, em que a liberdade é inegociável;
Blasco, em infinita solidão e abandono, tira, por acaso e sem esperar, uma
sorte grande. Num determinado momento os dois se encontram, e é quando o
espelho faz sua arte: reflete o duplo, ou melhor, o avesso, ou melhor ainda, o
complemento. Um encontro estranho, diga-se, que trará desdobramentos
inesperados para os dois personagens. Nesta novela, o autor deita e rola no
nonsense e brinda o leitor com uma história deliciosamente estranha, cheia de
ironia e humor.
Em “O anjo ouve os noturnos”, Clara, após a morte do pai,
cuida de limpar as gavetas do escritório em que ele trabalhava. Encontra um
envelope lacrado e, ao abri-lo, sua vida vira do avesso. Tem início uma trama
policial insólita e estranhíssima, cheia de personagens dissimulados e, como
nos filmes noir, nunca são o que aparentam ser e sempre escondem algum segredo.
Uma trama que dificilmente terá fim, cabendo ao leitor determinar onde está o
ponto final numa história que, se tem um clichê como pontapé inicial (um
envelope misterioso entre os pertences de um morto), vai se desenrolar de modo
absolutamente original. O estranhamento seguirá com o leitor muito tempo depois
de finalizada a leitura.
As ilustrações de Ricardo Tamm, em determinados pontos das
duas novelas, acentuam o estranhamento. Assemelhadas a rabiscos, são imagens
que ora antecipam algumas ações, ora funcionam como conclusões no sentido de
perguntarem ao leitor: “Eu não disse?” O leitor acha estranho, mas gosta.
Muito.
Mário Baggio
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