4.5.24

Encontro #2

Sou a praça do encontro no qual um fato do final da década de 1980 faz piquenique com outro, de mais ou menos trinta anos antes.

1987, 1988. Frequento a Oficina Literária Afrânio Coutinho (OLAC), uma das pioneiras no Rio de Janeiro. Lá conheço minhas amigas do futuro Estilingues, grupo que começa como uma oficina literária permanente, com reuniões às quartas-feiras na casa da Marilena Moraes, as Quartalenas, adaptação do Sabadoyle. De tempos em tempos, convidamos alguém para nos acompanhar. Nilma Lacerda é a última, e ela não demora a saltar o balcão e se juntar a nós, abandonando o papel de orientadora. Somos então sete; hoje, o que nos dói demais, seis. Trinta e sete anos depois, os encontros são esporádicos, mais para compartilhar a mesa de vinho e queijo e darmos notícias de uns aos outros. Todos continuamos no mundo da literatura ou da fotografia e das artes plásticas.

Antes do Estilingues, ainda na OLAC, nossa orientadora é Maria Amélia Mello, autora de “Às oito” (Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras), um pequeno livro de contos, e, já então, uma editora importante. Além de definir os temas dos contos a serem desenvolvidos e comentar os escritos, nos orienta com leituras e, aqui e ali, leva alguém para conversar conosco. Victor Giudice é um deles. Bom de prosa e de rica experiência, nos deixa excitados com a ideia de pertencer ao mundo da literatura. Como as duas horas do encontro são insuficientes para satisfazer a nossa curiosidade, em vez da esticada no boteco de sempre, vamos a minha casa.

Sem a existência dessas entregas cômodas aos ébrios de ocasião, corremos ao bar da frente e, pedindo uns cascos emprestados, compramos a meia, a dúzia, a dúzia e meia de cervejas. Para receber troco em dinheiro, pagamos com cheque de valor superior ao da compra. Resolvida a logística alcoólica e do tira-gosto, nos espalhamos pela pequena sala, uns no sofá, alguém na cadeira de balanço, outros nas cadeiras da mesa de jantar e os destemidos largados no chão. Victor continua o centro das atenções.

No Banco do Brasil, trabalhou no setor de compensação. Assim, se já não estivesse aposentado, em breve os cheques usados na compra da cerveja pousariam em sua mesa para conferência do saldo. Estando tudo bem, transferiria o valor para a conta do botequim. Caso contrário, o cheque reapareceria no bar, e o dono que lutasse. Era um trabalho braçal, automático, enfadonho. Eis então que o banco cria o CCBB, local ideal para uma pessoa como ele, uma chance rara de trocar o trabalho manual pelo intelectual. O paraíso, na visão dele e dos amigos. Abraçou a oportunidade e se meteu na área de pesquisa, desfrutando das melhores condições possíveis. Só que... Depois do trabalho, onde encontrar forças para lidar com a sua literatura, seu real interesse, fonte de lucidez e fé na vida? Não, arrancarem isso dele, não. Victor deu um cavalo de pau e recuperou a função de carimbador de cheque.

2024. Leio Ágota Kristóf – não confundi-la com Agatha Christie, a inglesa das histórias de crime e suspense –, húngara que volta ao mercado editorial brasileiro pela editora Nós depois de muito tempo fora de catálogo. Em “A analfabeta” (tradução de Prisca Agustoni), livro de cinquenta e duas páginas, pequeno e intenso, ela dá um testemunho de como se tornou escritora. Tudo começa quando, aos quatro anos, se vê tomada pela doença da leitura.

Nasceu em uma família pobre, num país pobre, um pouco antes da Segunda Guerra, ao fim da qual viu a Hungria tornar-se um apêndice da União Soviética. Essa mudança dá início ao processo de analfabetização da menina prodígio. De uma hora para outra, os professores húngaros tiveram de aprender russo para ensinar a nova língua a seus compatriotas. Ágota, com vinte e um anos, o marido e a primeira filha do casal, um bebê, fugiram. Como parte de um fluxo migratório da Europa Oriental para a Ocidental e com a ajuda de um coiote, transpuseram a fronteira da Áustria. Ao contrário das experiências recentes, com africanos ou latino-americanos, os europeus do leste eram bem recebidos, afinal abandonavam o comunismo. A escritora sofreu muito, mas não lhe viraram as costas. Depois de finalmente se instalar na Suíça, Ágota enfrentou a condição de analfabeta plena. Não falava nem lia francês. Como faria sem a leitura, logo ela? Levaria um tempo até se virar na nova língua inimiga – como chama a todas não maternas –, que afinal dominaria bem, escrevendo nela, inclusive.

Durante a sua terceira alfabetização, Ágota empregou-se numa fábrica em que trabalhavam muitos imigrantes (não é de hoje, não é de hoje). O trabalho, enfadonho, não lhe roubava o cérebro e lhe dava tempo de escrever, em húngaro, poemas que enviava a um jornal de seu país ao qual tinha acesso esporádico. Ela diz: “Para escrever poesia, a fábrica é ótima. O trabalho é monótono, é possível pensar em outra coisa, e as máquinas têm um ritmo regular que cadencia os versos.”

Giudice e Kristóf, sentados num banquinho mixuruca, nessa praça de alma mole em que me vi transformado, concluem: ser bom escritor requer uma certa vagabundagem. Riem, e eu ligo a fonte de minhas águas roxas, rindo também.

2 comentários:

Unknown disse...

Despedida (ou início de férias) de alto nível!!!

No Osso disse...

Não é despedida, nem início de férias. É só o fim da série #encontro (houve o 1 e o 2). Semana que vem, volto como de hábito.