19.12.21

Cinco noites, cinco dias




Chuva. Sol. Noites de frio moderado e dias de calor igualmente moderado. Galinhas; pavões; um faisão; os cães Dado e Amy; passarinhos por todo lado; lagartos; aranha. Num ambiente assim, cinco noites e cinco dias bastariam para compensar a distância imposta a dois amigos pela pandemia?

Não.

Sim.

Conversar sem compromisso; trocar impressões sobre o mundo. Membros da igreja dos pessimistas não muito fiéis, num instante descremos para em seguida voltarmos a crer, afinal, há uma garotada, em particular negra, sedenta por mudanças. Passear por nossas histórias marotas e, de repente, chegar às perdas e ao que ficou dessas perdas. Isso seria suficiente para compensar a distância imposta pela pandemia?

Sim.

Não.

Regar a prosa, num dia, com licor de jabuticaba feito por um vizinho e, no outro, com uma taça de vinho (bebemos pouco, eis a verdade). Ver um filme novo (“Ataque de cães”, “The power of the dog”, de Jane Campion), um velho (“A época da inocência”, “The age of innocence”, de Martin Scorsese) e o documentário sobre Fela, importante músico nigeriano que pagou caro por ser ativista e questionar valores sociais (“Meu amigo Fela”, de Joel Zito Araújo). Trocar dicas musicais e literárias, alimentar os cães, rir de bobeira, encantar-se com a montanha bem diante dos olhos e com o coro afinado das cigarras. Na terça à noite, não conseguir se lembrar do nome “daquele sanfoneiro amigo da Bebel, aquele que toca com o Gil”. Trabalhar cada um no seu canto; ele, instalado no novo escritório, fazendo reuniões intermináveis; eu, no jardim, gravando um vídeo (editado por ele) a ser publicado em um canal do Youtube. Assim se esqueceriam dos dois anos de distância imposta pela pandemia?

Nãossim.

Proteger um filhote de anu. Lamentar o passarinho morto na piscina. Estar preocupados com os filhos. Estar orgulhosos dos filhos. Olhar a vida dos filhos na perspectiva das nossas, concluir que o tempo é outro; melhor observar, aprender, respeitar. Perguntar sobre o que foi feito de um velho amigo. Contar de um amigo que o outro não conhece. Planejar saber da saúde da companheira de um terceiro amigo. Lembrar-se daquela fita cassete com a entrevista feita na casa de Bento Ribeiro. A fita, ele mostra, está ali e precisa de emenda e de um toca-fitas. Colocar a fragilidade para quarar na grama. Lavar os temores na chuva serrana. No meio de uma conversa qualquer, já na quinta-feira, soltar do nada: “Mestrinho, o nome do sanfoneiro é Mestrinho”. Dar opinião sobre a obra da cozinha. Anunciar que vai ao banheiro. A distância imposta pelo confinamento foi embora?

Sinão.

Especular como tem sido o tempo da pandemia na vida das crianças; na vida dos muito pobres; na dos velhos mais velhos que nós. Citar alguns — próximos ou que nos chegavam por arte ou pensamento — dos derrotados pelo vírus e a incompetência política. Certificar-nos de que sobrevivemos. “Estou aqui? Sim, Xandón.” “E eu? Claro, Atira Sun.” Tomar o café juntos. Fazer planos para o resto da vida e mais dois anos.

Cinco noites e cinco dias não deram para nada. 

Mas não deixaram de dar para quase tudo.

4.12.21

O amor nos tempos virtuais

O amor, o amor... Ah, o amor! Dele já se falou, se fala e muito se falará. Primeiro amamos a mãe, depois abrimos a guarda ao pai (ou a outra mulher que faça as vezes de uma babá, sejamos sinceros) e, daí então, ao resto do mundo. Mais adiante, surpreendidos por hormônios impiedosos, tentamos unir desejo e amor, o que nem sempre dá certo. Aliás, o amor nem sempre dá certo, é fonte de desatinos e, amiúde, se transforma em seu oposto, e então odiamos tanto, às vezes até a própria mãe.

Impulsionados pela ansiedade e pela carência, pagamos qualquer preço para desfrutar do amor e, dispostos a amar, somos capturados por uma de suas múltiplas armadilhas: alçapões que nos prendem a relações de sujeição, minas que escondem bombas capazes de explodir nossa saúde mental. Sempre foi assim e é, nesses tempos de conectividade, mais ainda. Soube-se há pouco do caso do atleta italiano que, durante 15 anos, teve-se como namorado de uma modelo brasileira, sem que nunca houvessem se encontrado. Qual o espanto? Eu mesmo julguei que namorava aquela amiga alta, bem fornida. Não, não era namoro, apenas nos beijamos num domingo à noite na Praça da Matriz. O atleta italiano, veja bem, se relacionava por internet — na realidade, nem isso. Trocava juras e planejava o futuro com quem, na outra ponta da fibra ótica, não era a modelo brasileira e sim um(a) estelionatário(a). Ao final das contas, o moço — a julgar pelo italiano típico, ele deve ser bonito —, acumulou uma dívida de 60 mil euros fazendo transferências a seu amor.

O Direito, ao constatar a multiplicação de casos parecidos, deu-lhe um nome: catfishing, que é melhor deixar em inglês para evitar impingir uma cacofonia no que já é triste. Em O Globo, encontro outro exemplo: uma advogada acreditou ser namorada de um dos filhos da princesa Diana. Por isso, entrou na justiça para cobrar as promessas feitas por ele (mas não era ele) ao longo dos encontros sem encontro. Pelo menos eu beijei aquela menina, e, mesmo assim, ao me dar conta de que não estávamos em um “relacionamento sério”, me doeu tanto que, um pouco depois, risquei, à la Ary Barroso, aquele nome do meu caderno (pois já não aguentava o inferno de nosso amor fracassado) e até hoje, passados 45 anos, prefiro não saber de sua vida. O amor, ao ser estancado, vira isso, uma frustração, uma vontade de nem sei, como diria Zeca Baleiro.

Já que cheguei à música, recupero uma de Sueli Costa e Abel Silva, “A alegria e a dor”. A letra diz: “São duas vizinhas de quarto / a alegria e a dor / e moram tão juntas que, entre elas, / não há corredor”. Vizinhas que vão além da gentileza cotidiana, a alegria (estado de quem ama) e a dor (no corpo e na alma de quem não ama) penduram suas roupas íntimas no mesmo varal. Elis, em seu último disco lançado em vida, cantou de Sérgio Natureza e Tunai: “As aparências enganam / aos que odeiam e aos que amam / porque o amor e o ódio / se irmanam na fogueira das paixões”.

Com poesia ou sem, o amor nos fragiliza. Quer dizer, a expectativa do amor — querer demais amar —, já que ele mesmo nos potencializa. Éramos enganados antes da internet; por meio de novas artimanhas, somos mais uma vez ludibriados, agora nesse mundo nebuloso. O amor nos torna bobos — o ódio também.

21.11.21

E agora?

 

Na semana passada, enfrentei uma situação inédita: eu — que não existira por bilhões de anos e, depois disso, fizera um aninho (com corpo de dois, pois nasci com quase seis quilos), em 1962; 18, em 1979; 45, 59, já no século XXI — completei 60 anos. A burocracia acha por bem me considerar idoso a partir de agora, mas a gratuidade no uso do transporte urbano só virá daqui a cinco anos; o fim da obrigatoriedade de votar, daqui a dez. Enquanto não usufruo das benesses nem chego àquele momento em que se escancara a pouca importância dada pela comunidade ao que pensam septuagenários, octogenários, nonagenários e centenários, começo a ouvir, como marteladas na cabeça: velho, você é velho; velho és, velho serás. Assim seja, não me envergonho.

A proximidade do aniversário me coloca a cavucar a memória. Faço balanços — sonhos realizados e frustrados, amores feitos e desfeitos, mortos e vivos — e agarro-me, estimulado por algumas palavras, a nostalgias. Rolimã, carrinho de sebo, enxurrada, corgo, mamona.

É possível que meus netos nunca experimentem a sensação de liberdade e perigo que é descer em disparada uma ladeira de Minas sentado num carrinho de sebo ou rolimã — nem meus filhos o fizeram. Como anda o clima, as enxurradas não serão mais comportadas e limpas como as que corriam no Beco dos Aflitos e me chamavam: desce, Xandão, vem molhar os pés, lavar a alma. Elas se assemelharão a tsunamis e serão formadas pela chuva acumulada em muitos verões e primaveras de intensa estiagem. O corgo da minha aldeia, antes esgoto a céu aberto — para dar continuidade à guerra de mamona lá na outra banda, um empecilho a ser transposto em salto com vara de bambu —, agora está sob uma avenida, tampado com concreto. Recusam-lhe o sol e a margem de terra, e o corgo se vinga inundando a cidade vez ou outra. As coisas em estado de esquecimento reagem à passagem do tempo, bem sei, assim como sei que essas recém-lembradas, e as palavras que lhes dão vida, são mais velhas que eu ou, ao contrário, ficaram pelo meio do caminho ainda jovens, condenadas a um mundo sem futuro.

O Brasil a seu modo também reage ao tempo. Meus pais, nascidos na passagem da segunda para a terceira década do século XX, viveram transformações enormes ao longo de suas vidas: foram da popularização da luz elétrica e do telefone à internet incipiente; cresceram em um país com taxas enormes de mortes de recém-nascidos e morreram quando havia acontecido uma boa melhora da expectativa de vida. Meu tempo tem sido igualmente marcado por mudanças tecnológicas. A inteligência artificial está aí e promete facilitar o nosso dia a dia, mas poderá, ao reinventar o mundo do trabalho estimulando a virtualidade, desarticular os elos que conquistamos como trabalhadores. Em consequência, corremos o risco de amargar uma solidão sem tamanho. Apesar de avanços aqui e ali, meus pais não assistiram à diminuição da desigualdade social; o mesmo ocorrerá comigo. O Brasil é fiel a suas atrocidades.

Mal pisei nos 60, ouvi, à exaustão, que agora sou sexy. Já me contaram inúmeras vezes aquela velha piada — velho sou eu, ela é anciã — de que a vida sexual do sexagenário ocupa um livro de cinco mil páginas (falam em números diferentes: maiores, os pessimistas; menores, os otimistas), todas em branco. Ainda que a medicina nos dê esperança de um futuro confortável, no qual caberá alguma estripulia, inclusive sexual, não é possível concordar que os 60 sejam os novos 30, outro lugar comum. As varizes, a dificuldade de compreender certos assuntos levados à mesa pelos filhos, saudades absurdas, medos indefinidos, a audição traiçoeira, as dores, o sono miúdo e entrecortado, a má vontade com músicas novas, enfim, um conjunto de somenos faz com que os 60 continuem os 60 de sempre, num mundo modificado, é verdade. Calças curtas, chinelos de dedo, menos formalidade, mais transparência, eis o velho de hoje. Há um par de dias, sou um deles, e, a partir de agora, é o que serei até o fim. 

Nostálgico, crítico, irônico, assim, não muito diferente de sempre, dou os primeiros passos nos 60. Para não ceder ao pessimismo, cultivo planos. Um deles é o de continuar a escrever, tarefa que desdenha da velhice e que desempenho, estando com os graus dos óculos bem ajustados, com toda a minha potência.





6.11.21

Pedaço de Minas

Chove, e Nelson Freire está morto. Ouço, neste instante, Encores, disco lançado em 2019 para comemorar seus 75 anos. A morte e a chuva não me entristecem, mas me roubam a alegria. Recorro à música como forma de compensar a perda. A chuva, neste ano seco e maltratado, cai como festa.

Em um texto que estou começando a escrever, um dos personagens é preso em Formiga, cidade de Marco Túlio Costa, que, sem saber de minhas maquinações recentes (praticamente ninguém sabe delas), repassou a um pequeno grupo (nós dois mais Alexandre Marino e Antonio Barreto) uma matéria sobre Lamartine Babo, autor de “Serra da Boa Esperança”, música feita quando o compositor esteve na cidade de Boa Esperança — não muito distante de Formiga e de Passos, minha cidade natal — para conhecer uma pessoa com quem correspondia, Nair, codinome de Carlos Netto, um dentista que, passando-se por mulher, conseguia fotos autografadas de artistas do rádio. (Não conto essa história aqui, seus detalhes pitorescos são encontrados na internet.) Nascido em Boa Esperança, Nelson Freire deixou a cidade a conselho de sua professora de piano, que se viu incapaz, ao fim de poucas aulas, de ensinar muito mais ao molecote de quatro anos. Conselho acatado, a família se mudou para o Rio, e Nelson se tornou um dos maiores pianistas do mundo.

De Boa Esperança, onde esteve uma única vez, Lamartine Babo foi a Formiga, cidade à qual voltaria com alguma frequência. Numa delas, impressionado com uma cantora, Babita, mãe do músico Zebeto Corrêa, pediu-lhe que cantasse uma composição recém-feita, “Eu sonhei que tu estavas tão linda”. A música foi um sucesso à época — décadas de 1930, 1940 — e, tempos depois, marcaria minha juventude, pois, como acontecia Brasil afora, inclusive em Passos, Francisco Petrônio, em seu famoso “Baile da saudade”, a cantava no ponto alto do show. Meu texto em processo começa num baile daqueles, quando dois jovens deslocados em sua pequena cidade dançam a música que lhes parece o passado do passado, mas, guiados por ela, acabam tornando-se namorados.












Chegaram ao mesmo tempo a notícia da morte de Nelson Freire e as histórias de Lamartine Babo. O pesar da primeira e a graça da segunda, bem como sua ligação com o meu texto embrionário, me levaram a pensar sobre esse pedaço de Minas, a passagem do sul para o oeste, onde estão fincadas minhas raízes. Lá, o presidente atual e seu projeto obtuso, extremista e incivilizado foram eleitos com mais de 60% dos votos, um motivo e tanto para me fazer triste.

Triste, formulei, sem pretensão de abrangência, deixando a memória e o esquecimento se entenderem como bem quisessem, uma lista de artistas daquelas bandas — Milton Nascimento, Ezequias Marques, os irmãos Grilo, Alexandre Marino, Stella Maris Rezende, Gustavo Lemos, Gilda Parenti, Antonio Barreto, Reinaldo Barbosa, Marise Pacheco, Selton e Danton Mello, Edel Holz, Elpídio Lemos de Vasconcelos (avô de Maria Valéria Rezende), Marco Túlio Costa, Hilda Mendonça, Silviano Santiago, Bárbara Mançanares, Marco Ajeje, Wagner de Castro, Lilo Clareto, Arlete Porto Soares, João e Gilberto Abreu, Zininha Negrão, Gabriel Villela, Tibless Machado, Gilvan de Oliveira, Maurílio Romão, Consuelo de Paula, Váscoli, Irmãos Jerônimo, Celso Faria, Kaju Ribeiro, Ramon Pitter, Sebastião Borges, José Reis Santos, Jerônimo Neto, Ana Lis Soares, Wagner Tiso, Zé Vicente —, uns vivos, outros mortos, uns de renome nacional, mundial, muitos em busca de seu espaço, vários da cena local. À medida que pensava neles, eu os chamava, e ainda outros, para, juntos, enfrentarmos a perda de Nelson Freire e, ao mesmo tempo, encararmos o desafio de devolver nosso país ao campo da disputa democrática e republicana.

23.10.21

O velhinho

Enquanto a pandemia desnudava a incompetência bolsonariana, Paula Lavigne fazia vídeos caseiros de Caetano Veloso. Ele aparecia de pijama, sapato com sola de corda, retratado, aos meus olhos, como um velhinho. Em um dos vídeos o artista discorda de Celso Cunha, de quem lê um livro da década de 1980, que vaticinava o fim do sotaque caipira. Caetano argumenta que o tal “R retroflexo” está aí, firme e forte, como demostram falantes do Centro-Oeste, do Paraná (Moro, o “ex-tudo”), Tabata Amaral, Mano Brown e cantores sertanejos. Tendo encontrado o mesmo “R” no espanhol falado no Paraguai, Caetano o liga à influência do Tupi-Guarani. Pijamas, pantufas, resistência ao exercício físico, gula de paçoca, alguma rabugice, às vezes dificuldade de entender determinada coisa: um velho, mas um velho que, curioso e atento, estuda. Naqueles vídeos, havia um atrito (velado) entre o marido e a mulher, além da pressão para que ele fizesse uma live (ele e os filhos fariam uma linda).


Imagens extraídas do Instagram de Caetano Veloso



A mesma exposição da velhice encontrei em pequenos vídeos que Augusto Nascimento, filho de Milton, fez do pai. Ora, os autores de “Paula e Bebeto” são velhos e, no frio, têm, como Milton faz, de se agasalhar com exagero e, em casa, devem abusar do pijama. De todo modo, por ter crescido encantado com a potência desses caras — e de Chico, Gil e Paulinho da Viola, a plêiade de nossos gênios musicais —, é difícil lidar com seu declínio.

A pandemia fez um ano, fez um ano e meio e caminha para o segundo. Somamos 600 mil mortos e uma leva de outros desastres. Mas eis que, livre do pijama e da câmera invasiva de Paula, Caetano lançou uma nova música, a primeira de um álbum (“Meu coco”) que viria a público um pouco depois. Não é uma música qualquer, é uma baita música. “Anjos tronchos” (Drummond espia e ouve) dialoga com o que é o grande bem e o grande mal do nosso tempo, a internet, isso que nos aproximaria e miseravelmente tem nos distanciado, que foi criado para nos libertar e tem nos aprisionado, que foi concebido como plural, descentralizado, e tem se aglutinado em monopólios; isso que se tem reduzido a um grande mercado. Caetano compõe com faro e fúria de jovem. Não por acaso, ele, que na música diz: “Agora a minha história é um denso algoritmo / Que vende venda a vendedores reais”, afirma em entrevista: “Meu desejo é confundir os algoritmos”. Ah, moleque! A velhice em Caetano é um detalhe besta, talvez lhe pese, pois a velhice pesa, mas não lhe subtrai a fome de compreender e embelezar o mundo e a capacidade de nos surpreender.

7.10.21

Cheio de vontade

 Vontade de gritar da janela: “Corre, Maria, seu amor está logo ali na esquina.” Vontade de andar na rua rindo da rinha de calos nos pés daquela gente metida em sapatos feios, desconfortáveis e caros. Vontade de dançar com a Zilma. Vontade de mandar meus boletos a quem continua aplaudindo o dito-cujo. Vontade de extrair a raiz oval do infinito. Vontade de comer o sanduíche do Bolinha. Vontade de cantar durante o curto silêncio do tagarela. Vontade de virar do avesso o vinil do Vinícius. Vontade de ir a Marte procurar o Furioso, meu cavalinho do Forte Apache. Vontade de apagar a luz da escuridão. Vontade de abraçar a Sá Inês. Vontade de contar até três, começando de um milhão. Vontade de encontrar meu pai resmungando daquele seu jeito irônico, mas não tanto: “Ah, gente, deixa um pouquinho de mim pra mim”. Vontade de devolver a patativa engaiolada ao ovo. Vontade de dizer à Capetinha que, sim, ela pode ficar com a camiseta que ficou com ela. Vontade de tomar um chope com Deus. Vontade de papar, na biloca, as biloscas de meus patos. Vontade de acordar no meio da noite com minha avó dizendo que tudo isso, ó, não é nada. Vontade de ver os olhinhos da Viveca sumirem quando ela ri da vida. Vontade de voltar a ser um leão manco; manso, não. Vontade de cobrar o Romeu e Julieta que a Mônica não pagou. Vontade de ensinar ao menininho bonito do Afeganistão a tocar cuíca. Vontade de confessar ao Reinaldo, meu professor de Educação Artística e de Inglês, que ele foi importante pacas. Vontade de roubar ambrosia da despensa de Zeus. Vontade de ter esperança. Vontade de despertar no Brasil, almoçar em Moçambique e dormir de conchinha com a Nastassja Kinski lá na Cochinchina. Vontade de sugerir à Célia refogar o mexidinho com cebola, eu agora gosto. Vontade de montar o cavalo que Calígula nomeou cônsul da Bitínia. Vontade de declarar meu amor a quem está passando bem agora na rua detrás da rodoviária de Caiapônia. Vontade de levar a estátua do Drummond para tricotar com a da Clarice. Vontade de pedir à dona Neisa permissão para ir à instalação sanitária. Vontade de ser um personagem de Dostoiévski, mesmo que tenha de matar uma velhinha ou disputar a amante com o pai. Vontade de falar ao coração para não se assustar, bater tranquilo, é só a Elaine que desce o Beco dos Aflitos. Vontade de chutar a lua lá onde dorme a coruja na galáxia de Andrômeda. Vontade de ouvir o pito do Zé Porteiro. Vontade de, em vez de subir, descer pela mangueira até o ponto em que sua raiz banqueteia no inferno. Vontade de não perdoar. Vontade de proteger a Maria Tomate. Vontade de, esquecendo as outras vontades, ganhar um sorriso de meus filhos quando eram bebês.





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(1) Para os que receberam meu e-mail com o link da crônica, peço vênias pelo erro de português que seguiu na mensagem. Quando o percebi, tratei de corrigi-lo, logo alguns já receberam a nota sem o escorregão. 




27.9.21

Saindo do armário

Estava teclando — já não se tecla mais — com o amigo e escritor Fernando Andrade, e ele me disse que quer comprar o CD da Mônica Salmaso com músicas do Guinga, seu vizinho de rua. Lembrei-me então de, no início dos anos de 1990, ter feito contato com o ainda dentista, mas já parceiro de Aldir Blanc. Não sei como foi nem por que foi, o fato é que liguei para o seu consultório e conversamos um pouco. Ele, simpático à beça, me ofereceu convite para o show que faria no Jazzmania, casa famosa no Arpoador e hoje fechada. Depois do espetáculo, dei-lhe um exemplar de “A palavra em construção”, primeiro livro do Estilingues.

Como uma memória puxa outra, me vi em outro show do Guinga, dessa vez com Hermeto Pascoal. Imagine o que pode ter sido isso, pois então, foi assim e mais. Novamente, fui conversar com o músico que, se não estou enganado, havia invertido as coisas e passara a dentista nas horas vagas. Ele me perguntou se eu percebera o Hermeto tentando “derrubá-lo” a todo instante. Não gozo de tamanha sensibilidade musical. De todo jeito, o violonista não reclamava, ao contrário, queria mostrar como estava estimulado pelo “duelo”. Para a glória de quem os assistia, os dois “bruxos” se divertiam.

O palco daquela vez era o do Instituto dos Arquitetos do Brasil do Rio de Janeiro (IAB-RJ), uma construção antiga e linda perto do Largo do Machado. Ao pensar no IAB, recordo de um aniversário da Soninha (20 de setembro) comemorado ali quando uma de suas amigas cuidava do restaurante e sou visitado por um colega da primeira oficina literária que frequentei, a Afrânio Coutinho. André Solti era ou fora presidente do IAB-RJ, não sei bem. O que sei é que num conto dele tive contato com a palavra “tremelicar” — as peças de salame tremelicavam num armazém gaúcho, coisa assim. Ou seja, fui apresentado à palavra já em estado poético. Arquiteto reconhecido e escritor promissor, André deixou a vida ainda mais novo que a Soninha.

Espremo o sumo dessas memórias e concluo que, sim, o país já deu sinais de que trilharia caminhos distintos dos atuais. Mas não devemos ficar cabisbaixos, Guinga ainda está aí, e Salmaso lança um disco com suas músicas. Bem faz o Fernando em estar ansioso por comprá-lo, pois, com certeza, nas composições de Guinga, na voz de Mônica, o Brasil luminoso bota os pés fora do armário.

13.9.21

A semana passada

 Os dias depois daquilo foram longos. Como se as horas se esquecessem de passar (Wish you were here, Sônia Peçanha).


Eu sei que o Brasil está de cabeça para baixo. A última semana foi terrível, ou mais terrível que as anteriores, que já haviam sido terríveis. Somar terribilidade a terribilidade faz parte de uma matemática menos acessível, aquela na qual a concretude da aritmética básica é trocada pela abstração. Faço essa comparação e me arrependo. A matemática é linda, quase sagrada, mesmo que não a entendamos em toda a sua complexidade. Acho que foi Galileu quem definiu a matemática como o alfabeto usado por Deus para escrever o Universo.

Seja como for, hoje deixo de lado o Brasil de cabeça para baixo, dou de ombro para o desastre coletivo e falo de uma perda particular, a da Sônia Peçanha. Na semana terrivelmente terrível do Brasil, fez um ano da morte da escritora, da amiga. No último dia 8, acordei e havia no zap uma mensagem da Marilena Moraes, outra escritora do nosso grupo — o Estilingues —, com um link para a música do Pink Floyd, Wish you were here, numa gravação de Dime Nineteen. Com esse título, Soninha escreveu um conto — está em seu último livro, “Relógio d’água” (Editora Patuá) — que é prova irrefutável de seu talento. Não fosse a literatura tão maltratada no Brasil, e viesse à luz não só o que as grandes editoras alardeiam, ela seria lida por muita gente, estudada de norte a sul; enfim, reconhecida. Mas não é assim. Azar de quem não a lê, sorte a minha de ter acompanhado sua trajetória desde o início, de ter lido seus textos ainda em estado embrionário. Azar o meu de ter perdido uma amiga desse porte, grande artista, grande ser humano.

Sim, Soninha era uma mulher gigante. Nunca, em mais de trinta anos de amizade, a presenciei em atitude vaidosa, arrogante ou coisa que o valha. Ao contrário, a vi alinhada a lutas por justiça social e se desdobrando para ajudar crianças pobres. Vi ainda, inúmeras vezes, aquela mulher calada abrir a boca para uma pequena ironia, para dividir seu sorriso com os mais chegados, também para falar com toda a segurança e paixão sobre literatura.

Semana passada, o Brasil ficou muito pior do que estava, mas nem todos sabem que a falta da Soninha o piora ainda mais.

Para terminar, deixo um poema dedicado a ela.

Sônia

Espichar pela ponta da tristeza

espichar até que, solto,

o fio permita confeccionar

o agasalho com que me protegerei

de tua ausência - de tua presença

em outra dimensão,

como é o teu modo de entender o fim.

 

Tricotar esse fio e, aos poucos,

ver a lã de cor aguda

mesclar-se à plácida

como duas vozes

em canto

em oração

em luta

como a tua voz

leve e presente

irônica e assertiva

sábia e humilde.

 

Tricotar os fios de tua cabeleira

num colete de gola em V de vigor

numa saia justa de poesia

numa lembrança de teu

sorriso, de teu olhar pronto

a reinventar o mundo, para o qual reservas

água, ar, intensidade

azeite, pão e o gesto

solidário carregado pelas mãos

: as tuas.

 

Tricotar o frio no fio

a presença na ausência

a alegria na tristeza

a saudade na comunhão

a espera na fúria

tricotar, com cuidado,

teu estilo no meu

teu brilho no da Cristina

teu segredo no da Marilena

teu amor no da Miriam

teu silêncio no da Nilma

teu aprendizado no da Vânia.

 

Ver a luz

— atirada do Estilingues

(tua e nossa palavra de vida) —

acertar o pássaro amoroso

que, em pios de conforto, assume

a tarefa de cuidar de ti

 

: aceitar teu voo. 

28.8.21

7 de setembro de 2021

Esta é a última crônica que escrevo antes do 7 de setembro, data da independência do país, mas que pode, neste nefasto 2021, se transformar no dia do golpe ou no dia do “diga ao povo que, quando for para ir, eu não vou”. Parece e é uma comédia, mas o preço do riso tem sido elevado. Salta aos olhos o fato de a atual gerência (chamo-a assim porque governo não é) ter levado o país da pobreza à miséria, um feito que exige um planejamento arrojado, um senhor desplanejamento.

Golpe é um prato de preparo lento, como a maniçoba, feita da folha da mandioca, a maniva, e que requer sete dias de cozimento para eliminar o veneno, nada mais, nada menos que o cianeto. No caso de um golpe, a demora serve para salpicar e apurar o veneno, e, no de agora, ele tem sido tão lento que o veneno fede à distância e leva ao delírio os inimigos da democracia.

No golpe sanguinário de 1964, parte da sociedade civil o apoiou. É a mesma gente que vê com bons olhos o discurso atual, moralista, religioso e ufanista, ou seja, é a turma que não aprende e, numa primeira dificuldade da democracia, chuta para o lado a liberdade e clama pela ditadura. Em 2021, apesar de um movimento aqui ou ali, os incentivadores da escuridão continuam se valendo do ambiente virtual e da mentira como tática. Bem, também cometem arroubos mais sérios, o que, pelo menos neste agosto, tem sido contestado pela justiça. Um dos mais comentados foi a busca nas propriedades do cantor sertanejo que andou ameaçando invadir o STF. Enfim, o país dividido entre a civilidade e a não civilidade está no ringue. Num ringue, aliás, no qual todos devemos entrar, pois não é uma luta a ser assistida. Somos pugilistas.

Não é preciso dizer que estou do lado da democracia, da liberdade (nada a ver com o cada-um-faz-o-que-quer) e do debate em um ambiente de diversidade política. Do lado em que combato, é habitual o conflito, que nada mais é do que o meio mais rico de as ideias encontrarem soluções para os problemas, o que não quer dizer que não haja erros. Há aos montes, e deles surgem novos conflitos e, no fim, novas soluções. Não é, portanto, um paraíso, pois viver é bruto, sem que tenha de ser violento. O lado da civilidade luta contra a violência, condena-a no Afeganistão, no Haiti, nos Estados Unidos, na Venezuela, na China e aqui, debaixo de nosso nariz.

Para o 7 de setembro plúmbeo que se aproxima, homens lustram seus coturnos, mulheres enaltecem os algozes, jovens se deixam enganar por aqueles que desejam sequestrar a democracia para lucrar. No fundo, o moralismo, a religiosidade e o ufanismo não passam de conversa para os bois dormirem.




14.8.21

Sanduíches, sandices e afeto

Quando eu era bem jovem, me lembro de ter ficado admirado com o que contou um amigo recém-chegado de São Paulo: no cardápio de uma lanchonete não constava uma variedade de sanduíches, mas apenas três: carne; queijo e carne; e queijo, carne e ovo. A carne era de um tipo só, hambúrguer bovino. Meu espanto tinha a ver com o fato de que, na minha cidade interiorana, os sanduíches ficavam cada mais cheios de opção: cebola, alho, bacon, salada, molhos diferentes, linguiça e outras invenções. Diante do que me parecia um retrocesso da lanchonete paulistana, quis saber como o justificavam. Simples, esclareceu o amigo, o dono percebeu que, com tantas alternativas, a escolha se tornava difícil, optar por uma era abrir mão das outras. Frente a um verdadeiro dilema, muitos clientes desistiam de comer, portanto não gastavam seu precioso dinheiro na lanchonete. Moral da história: o excesso nos confunde.





Se a gente esquece o sanduíche e pensa — escolho a próxima palavra também pela rima — nas sandices do captain, their captain, talvez encontre um paralelo entre as duas coisas. Os golpes absurdos, numerosos e disparados simultaneamente por aquele senhor e seu séquito buscam apenas nos confundir. É melhor então sermos objetivos e não cairmos na tentação de enfiar muitos recheios no sandubão; enfim, optar por um clássico. Traduzindo: se taparmos os ouvidos para a verborragia, os xingamentos e as ameaças, o que resta é a incompetência. Na verdade, não existe sanduíche se não se acrescenta queijo ao bife, portanto à incompetência devem-se juntar pitadas de banditismo. Eis então a síntese de quem nos governa.

 

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Para Neném, Carlinhos, Edinho (in memoriam) e o amor de minha vida, Nilzinha

Pena que eu vá misturar essa podridão pela qual temos passado com o nome que direi agora: Dita.

A Dita, negra forte (como são tantas ou todas), viúva ainda jovem e com quatro filhos, foi trabalhar na casa de meus pais e, apesar de ter conseguido, uns anos depois, um emprego muito melhor na Santa Casa, com a segurança da carteira assinada e da previdência paga, nunca nos abandonou. Nunca. Quando meus pais ficaram mais velhos, e o enfisema de meu pai se agravou, ela passou a dormir na casa dos velhos. Sim, ela deixava a família, àquela altura de filhos adultos e netos, para fazer companhia aos seus antigos patrões. Na última internação de meu pai, ao sair de casa, ele sussurrou alguma coisa na direção de minha mãe, e ela não compreendeu, mas a Dita sim. Joaquim declarava seu amor à Haydée. Não fosse a escuta atenta daquela acompanhante tão especial, saberíamos do amor de meus velhos, pois era evidente, mas não saberíamos do último gesto daquele amor.

Agora foi a vez da dona Benedita nos deixar. Eu só posso lhe agradecer — e não só pelo caso recém-contado, uma lembrança que diz muito para mim e não alcança nem de longe tudo que ela foi. Sua grandeza estava na inteligência, no caráter, na força com que lutava e em como sabia ser irônica na medida certa. Conhecer uma mulher assim é um privilégio, e, por ter tido essa sorte, sim, agradeço mil vezes. E agradeço mais uma vez por ela ter me dado a oportunidade de conviver com seus filhos (minha infância não existe sem eles) e netos. Voltando um pouco ao campo da política, devo também desculpas à Dita, pois até o momento não conseguimos, em nosso país, apagar as marcas de um passado escravocrata e erradicar o racismo estrutural. Contribuo para esse fracasso.

31.7.21

O dicionarista de ocasião

O nome na tela do celular já adianta o início do diálogo:

— Sargento?

— Não.

— Márquez?

— Tampouco.

Garcia, amigo de infância, sempre foi atrapalhado (feito o sargento que persegue o Zorro) e fabulista (à moda do escritor colombiano). Por isso, o estribilho sempre que vejo seu nome na tela. A bem da verdade, quando meu nome é anunciado no celular dele, vem a contrapartida.

— Pires?

— Nem canto.

— Magno?

— Quem dera!

Nossas provocações recíprocas são, claro, temperadas de afeto e respeito. Ele não é só atrapalhado e fabulista, tem um rol de qualidades invejáveis, entre elas, a paciência. Quanto a mim, espero não ser apenas um romântico metido a grande, mas é melhor perguntar a ele.

Desta vez, Garcia liga preocupado com o Brasil. Com a política. Ele não milita na esquerda nem na direita, é um conciliador, um sujeito de centro. E o problema dele está aí.

— Esse Centrão não me representa.

— Como assim? Vocês não estão todos em cima do mesmo muro, só esperando a hora de dar o bote num lado ou no outro?

— Em política, você é um beócio. Isso que você diz faz parte do compêndio desses aí. Sou do centro dos Neves.

— Do neto?

— Não me venha com blasfêmia. Aquele de centro não tem nada; de Centrão, tudo. Não honra o avô.

— Então conclua.

— Daí que é preciso sequestrar o apodo de Centrão desses... desses... desses facínoras.

— Apodo, é? Hoje você está caprichando, é compêndio cá, beócio lá, facínora aqui.

— As frases são minhas, falo do jeito que quiser.

— Perdão, prometo ser daqui pra frente um respeitoso ouvinte.

— Centro, nas raias da política, é uma coisa importante. Quem ocupa esse espaço de consenso não vai pra lá nem pra cá, ao contrário, puxa as pontas pro meio.

— Hum, sei. Nas raias...

— Sim, nas raias. Ignorarei seus apartes pífios de agora em diante. Cumpra sua promessa e ouça. O tal Centrão nem busca o entendimento nem amortece as colisões de ideias. Estão ora no centro, ora à esquerda, ora à direita sem coerência ou vergonha. Esse Nogueira, por exemplo, já disse que o Lula foi o melhor presidente do Brasil e chamou o atual presindecente, a quem vai servir como ministro, de fascista. Haja maleabilidade.

— Maleabilidade...

— O que há, hein? Resolveu me tomar pra Cristo?

— Não, de jeito algum. Vamos lá, você quer mudar o... qual é a palavra mesmo?

— Apodo, iletrado, apodo. Pra mim, em vez de Centrão, a súcia deveria ser chamada de Sabujão.

— Você comeu o dicionário?

— Nestes tempos incivis, é a única leitura que não mexe com meus nervos.

Desconfio de que Garcia ligou apenas para fazer uma piada e exibir sua erudição passageira. Gaiatices do velho amigo. É hora de dizer, a nosso modo, adeus.

— Sargento?

— Não.

— Márquez?

— Tampouco.

— Outra hora nos falamos, douto amigo.

— Que assim seja, pagodeiro de butique e pequeno apedeuta político.

16.7.21

Estratégias de guerra



Cofiar o escuro da lua.

Umedecer o sol.

Escanhoar o frio.

Aconselhar-se com as estrelas.

Reger o coaxar da saparia.


Esquecer no vermelho de um tiê-sangue o espanto.

Medir a sombra das horas.

Cansar-se pelo mar.

Aprender a acrobacia da poeira.

Colorir o silêncio das flores.

Perguntar à infância que fim levaram as taboas.

Mascar o vento.

Intervir nos mapas.

Desistir do passo anterior.

Acender-se e apagar-se na presença de vaga-lumes.

Rir da retidão dos caminhos.

Dar de beber à água.

Mentir aos pés.

Burlar a aurora.

Engolir o horizonte.

Acender o cigarro num vulcão.

Contar estórias à noite.

Esconder-se do amanhã.

Ouvir a intimidade da chuva.

Assistir ao coito das pedras

Cultivar tudo que a estupidez dos poderosos não alcança.

3.7.21

Os escolhidos

 Antes da pandemia, flanando por Botafogo, encontrava assobiadores pelas ruas. Eu pensava: assobia de tristeza — o amor o deixou no dia anterior, às 17h35m —, ou, quem sabe, de alegria — ganhou na Raspadinha cinco contos, o valor de um café. De repente, não é nem uma coisa nem outra, é um assobio distraído, um dessilêncio contra o barulho da rua. Desconfio que seja por um motivo especial, maior.





Agora há, ou deveria haver, a imposição da máscara, e assobiar não é mais tão simples, nem mesmo falar de máscara é tão simples. O som, quando sai, sai abafado. Imagino então que os assobiadores tenham sumido. Mas, se eles não apenas gorjeiam suas alegrias ou tristezas, se não apenas devolvem barulho ao barulho, mas também vão além, como estão fazendo?

Numa das minhas poucas saídas neste quase um ano e meio de reclusão, passeando com minha filha e seus filhos, um casal de cachorros, reparei que as pessoas, diante de rostos somente em parte descobertos, passaram a olhar sem cerimônia o corpo umas das outras. Olhar no olho é íntimo, ninguém o faz com desconhecidos. (Quer dizer, existe o flerte. A bem da verdade, existiu, hoje não mais se encara a paquera com malícia e súplica, dá-se match no Tinder, e, se o outro não é cringe, pa-pum, “vem cá, meu crush.) Mas o corpo, vestido com roupa que o desenha ou disfarça, por estar arriado ou teso, bronzeado ou pálido, enfim, por ser presente, transparente e óbvio, não se compara a um assobio, que é só possibilidade, pura insinuação.

Sendo assim, quando voltar às ruas, se ainda estivermos sob o império da máscara, fitarei os olhos de quem der pista de carregar em silêncio seus assobios, pois não posso perdê-los de vista. Sabe por quê?

Indiferentes ao tumulto, aqueles assobios, como já disse, não são um transbordamento de alegria ou tristeza, nem uma guerra particular contra o ruído do trânsito e o alarido do comércio. Os assobiadores de rua são depositários, desde o instante em que perdemos a capacidade de dialogar com os animais, do que se tornou o maior segredo da existência. Por terem capacidade de conversar com os passarinhos urbanos, eles relembram o segredo, não o deixam cair no esquecimento, ainda que no esquecimento somente deles, os escolhidos.

19.6.21

Abobrinhas

Um amigo e eu falávamos do apetite sexual da juventude. Na mocidade dele e depois na minha, os homens eram predadores sexuais. Quer dizer, nem sempre eram, mas, por imposição cultural, deveriam ser. Deveríamos ser. Deitar-se com todas as mulheres do mundo era o esperado. Quando não satisfeito, ou seja, sempre ou quase sempre — haja vista que o desejo é insaciável,  — essa ânsia acabava gerando tristeza, frustração e um gasto excessivo com revistas masculinas. Lá pelas tantas, meu amigo comparou aquelas batalhas aos desafios de Américo Vespúcio, um dos grandes navegadores da passagem dos séculos XV para o XVI. Preferimos então rebatizá-lo de Américo Prepúcio. 

Alguns de meus amigos que foram maconheiros aos dezoito e ainda o são aos sessenta balançam bandeira pelo atual governo. Reflito cá com meus botões atualmente caretas e não consigo entender esse alinhamento. O que andam misturando na erva?

Aos quatorze anos, tornei-me crítico da televisão, uma máquina alienante, concluí. As novelas eram um pastiche, suas histórias, em títulos diferentes, se repetiam todas as noites, ontem, hoje e amanhã. Os telejornais mais confundiam que informavam. Os programas de auditório exploravam desafinados, humildes e toda sorte de desassistidos. Aos vinte e poucos, me dei conta de que não era bem assim, exagero meu, mas o estrago já estava feito, logo, a partir de então, vejo pouca televisão, inclusive a fechada e paga. Próximo dos sessenta, trancado em casa há mais de ano por conta da pandemia, acabo assistindo a alguma coisa e choro ouvindo crianças calouras num programa com grife americana.

Viemos ao mundo para fazer listas. Corolário imediato: viemos ao mundo para criar polêmicas com nossas listas. O Ruffato, por exemplo, elaborou recentemente uma lista dos melhores romances escritos no Brasil até a década de 1990 e recebeu aplausos e apupos. Aplausos tímidos, apupos ruidosos. Eu não faço listas, mas, se as fizesse, essa seria a primeira entre as coisas descartáveis deste mundo. Ora, mas se a razão de viver está em fazer listas, logo... Bem, logo a vida não tem sentido, o que é a pura verdade.

Não estamos entre a cruz e a espada, mas entre a graça e a desgraça. E toda graça que a gente acha, no fundo, alimenta a desgraça que nos achaca. Tudo assim em rimas espúrias, como espúrios têm sido nossos dias.

A dentista anunciou minha entrada na terceira dentição, quer dizer, daquele momento em diante, trocaria os dentes definitivos (uma ova) pelos postiços. A situação exige resignação e dinheiro. Este, mesmo não tendo, a gente arranja, já aquela não há banco que a empreste, mesmo a juros extorsivos.

Eu, meu pai e alguns de seus amigos estávamos sentados à sombra da “árvore dos enforcados” — sob a qual se reuniam ou se reúnem os negociantes lá de Passos, muitos deles na pendura, pedindo dinheiro a todo mundo —, quando o Canário soltou assim do nada que a exposição excessiva do corpo feminino acabaria com a libido masculina. Ele fazia loas ao tempo no qual visualizar um pedaço de uma canela, ali entre a barra da saia comprida e a renda que enfeitava o punho da meiinha curta, era um acontecimento e tanto. Se ele estivesse certo, agora que a máscara passou a ser, entre os sensatos, parte fundamental da indumentária, nossa vida sexual deveria estar a mil. No entanto muitos municípios têm apresentado estatísticas de um número maior de mortes do que de nascimentos. A máscara não estimula a sensualidade e a fertilidade, mas a recusa de seu uso assanha a morte.

Às vezes, como brinca o narrador de futebol Milton Leite, eu se acho, mas, fora esses lampejos de vaidade, eu me escondo e não sei onde me esqueci. Ah, sim, foi num país do futuro. Não aquele edulcorado pela ditadura, mas o real, duro e no qual a gente colheria ao menos uma flor de um dos muitos canteiros que plantamos e que o vento não se cansa de derrubar.

Entramos na vida como verdadeiros parvos e saímos dela não de todo instruídos, portanto a ignorância é, de fato, uma de nossas mais arraigadas características. O desconhecimento conquistado, se é certo dizer assim, pode ser por falta de curiosidade, de oportunidade ou até por não haver necessidade de saber certas coisas. Logo, há grandes, médias e pequenas ignorâncias. Eu, por exemplo, alimento uma que, na hierarquia, deve ser ínfima, mas assim mesmo me traz algum sofrimento. Por que entre tantas frutas, legumes, tubérculos, justo à abobrinha coube o significado de conversa informal, tola, recheada de bobeiras? Por que, meu Deus? Por quê? 




6.6.21

Vinte e uma dicas para deter o fim do mundo

 Na última segunda-feira, comecei o dia espalhando, em rede social, dicas para a semana que se iniciava. Repito-as aqui sem saber se são valiosas, ainda que, imodestamente, creia que, mil vezes repetidas, elas nos auxiliariam a deter este momento assemelhado ao fim do mundo, senão o próprio.

 

Divida as tarefas domésticas / Manifeste-se contra o governo / Beba, se for o caso, mas não deixe de orar / Ore, se for o caso, mas não deixe de beber / Troque uma ideia com amigos / Ouça música. Leia. Cante. Dance / Manifeste-se mais uma vez contra o governo / Tenha saudades / Procure se informar. Desconfie de tudo / Agradeça a vacina tomada / Se prepare para tomar a vacina / Não se conforme com tantas mortes / Olhe para o Jacarezinho. Cobre justiça / Olhe para as aldeias indígenas. Cobre justiça / Manifeste-se mais uma vez contra o governo / Mande uma gracinha pelo ZAP / Confronte fake news / Faça planos / Chore / Ria / Olhe bem para os lados, não esteja sozinho.

 

À beira da autoajuda, as dicas beliscam temas que me mobilizam e misturam aquelas claramente políticas com as apenas afetuosas. Sabendo-se que o afeto, e isso está tão claro hoje, é mais político que muito grito de guerra, minhas dicas — com destaque para “divida as tarefas domésticas” — são absolutamente políticas e absolutamente afetuosas.

Escrevi as vinte e uma ações instigado, de um lado, pelas derrotas quase diárias, representadas pelas chacinas do Jacarezinho e de muitas aldeias indígenas: dois exemplos tirados de uma lista que, no dia 29 de maio, quando os descontentes com o governo tomamos a rua (não fui, mas, como acumulo crédito em protestos e passeatas, é como tivesse ido), foi acrescida por um ataque covarde da polícia pernambucana contra a população. Daniel Campelo da Silva e Jonas Correia de França, que nem estavam no protesto, perderam parte da visão depois de levarem tiros de bala de borracha. De outro lado, o impulso veio do brilho saído das ruas cheias e inconformadas. Escrevi, portanto, a partir de um lamento e de uma esperança. Olhemos para os lados e não estejamos sozinhos — não estamos!

A extrema direita, essa cobra por muito tempo escondida e alimentada pela própria fome, voltou ao poder com o intuito único e claro de desinventar o Brasil, o Brasil cordial. Digo cordial não no sentido de ser habitado exclusiva ou majoritariamente por pessoas afáveis e sinceras, mas sim por abrigar o povo que inventou o drible e que, se não o inventou, aperfeiçoou a gambiarra. Povo que, do trauma da escravidão e agarrado à ancestralidade africana, fez surgir o samba, nossa trilha da alegria, da congratulação, “o pai do prazer” e “o filho da dor”, nas palavras de Gil e Caetano. Cordial porque age de coração.

A direita quer acabar com os atravessamentos entre o antigo (e até o conservador) e o moderno que marcam este país em permanente exercício de autoconhecimento. Vandré e sua Disparada. O Lamento Sertanejo, de Gil e Dominguinhos. Os Mutantes cantando Dois mil e um, de Rita Lee e Tom Zé. Os irmãos Pena Branca e Xavantinho, crias do Brasil Central, rural, boiadeiro, acaipirando Cio da Terra, de Milton e Chico. Bethânia levando Evidências para além do que é. Emicida absorvendo Belchior. Todas essas experiências são o resultado de diálogos entre o centro e a periferia, entre o rural e o urbano, entre o interior e as capitais, entre a costa oceânica e os sertões e as florestas, entre o negro e o branco, entre distintas gerações, portanto diálogos feitos também ou principalmente de embates. O Brasil, bem ou mal, foi se construindo a partir dessas contradições que agora querem dizer que não existem, querem proibi-las de dar norte ao país.

A direita no comando não tem um projeto neoliberal claro, nesse ponto ela enfrenta suas contendas internas, mas, não resta dúvida, tem um projeto coerente de, agarrado às batidas agendas conservadoras, impor um poder que não é civil, também não é militar, é miliciano. As milícias nasceram oferecendo, mediante pagamento e de forma chantagista, “segurança” aos desassistidos (no subúrbio carioca, na Baixada Fluminense). Aonde a lei não chegava, as milícias agiam como se zelassem por ela. Lorota. Na verdade, reescreviam as leis e encarceravam — expandindo os serviços já oferecidos, que passaram a contar com o gatonet, a venda monopólica do gás etc. — primeiro os seus protegidos e, depois, todos os moradores dos territórios sob sua influência.

É nessa esquina que estamos. Se não reagirmos, de 500 mil mortos por Covid-19, saltaremos para um milhão. A esse um milhão, acrescentaremos outro milhão de mortos por perseguição e balas perdidas. E mais não sei quantos milhões vitimados pela fome. É hora de trazer o poder para o campo civilizatório, tomá-lo de volta desse projeto de destruição. Depois, bem, depois a gente retoma as velhas questões. Uma retomada que, embora anteponha projetos distintos, quiçá incompatíveis, garanta a alternância no poder e o estabelecimento de um consenso duradouro, qual seja, o de que situação e oposição agirão sempre respeitando a democracia.

Bebendo sem deixar de orar e orando sem deixar de beber, nos concentremos na luta civilizatória e resgatemos o Brasil da mão dos facínoras. 

24.5.21

Realismo mágico em três versões

 






Com o realismo mágico, García Márquez reportou o mundo a sua volta, em particular o de sua juventude vivida no interior da Colômbia. Sim, era uma espécie de reportagem sobre o extraordinário embutido nas histórias narradas por seus avós e de modo algum criado por ele. Na minha infância, eram comuns os casos situados na fronteira entre o real e o imaginário, entre o visível e o invisível. Eu também — e muita gente de sessenta anos ou mais — poderia ter inventado, se me fosse dado talento, o realismo mágico, bastava registrar, ao lado de mulas sem cabeça e sacis, as peripécias de meus antepassados. O avô materno de minha mãe colocava maçãs na cabeça de suas filhas e, de uma certa distância, atirava na fruta. Verdade? É o que sei. Nas mãos de Gabo, suspeito, as maçãs seriam para lá de rubras e as meninas, apesar de pálidas, esperariam os tiros de olhos abertos.

O escritor colombiano não só registrou as histórias de seus ancestrais, falsas ou verdadeiras, o que ele não poderia atestar, como também espalhou, a seu gosto, ervas e pimenta sobre elas. Não fosse assim, não seria um escritor, mas um contador de causos. Nem contador de causos, já que esses, ao relatar o que viram ou ouviram, dão um jeito no inverossímil da realidade. Não sendo escritor nem contador de causo, García Márquez talvez pudesse ter sido um contabilista com talento para esconder do fisco parte da renda de seus clientes. Sempre projeto sobre o Nobel de 1982 a pecha de mentiroso. Creio que lhe cai bem.

O boom da literatura fantástica ficou para trás. Entretanto esses dias tão cheios de assombros parecem propícios à exploração do mágico. Sendo assim, sugiro três argumentos, que podem ser explorados em diferentes nichos de mercado, àqueles que nalgum canto do universo escrevem sob a bênção do velho Gabo. Corram à cozinha, separem os temperos mais picantes e mãos à obra.

Distopia:  no lugar dos coronéis déspotas, velhos e sozinhos, o personagem é o homem orgulhoso da própria ignorância e fiel à violência. Ele tem o olhar vidrado, não como o de um louco, mas como o de uma besta. Recusa o passado, encantado ou não, por ser um tempo morto. Seu foco são o presente, para desfrutar as benesses da fortuna, e o futuro, para garantir a boa vida dos descendentes e perpetuar o próprio nome como um herói da pátria. Ambicioso e gabola, apresenta-se numa versão mais que requentada do velho caudilho. O déspota atualizado percebe a passagem do real para o virtual, no qual age. As fake news, sua mão sobre o novo mundo, trocam o acaso e a riqueza do contraditório por algoritmos que escravizam, inicialmente, aqueles que o escolheram como libertador e, em seguida, os demais.


Humor: o olhar vidrado do poderoso expressa o assombro de quem não entende uma vírgula do que está se passando. Ele é o menino do “A vida é bela” que, ao crescer, continuou a enxergar o real como um jogo. Em vez de viver, joga, e tudo para ele — inclusive ou principalmente o horror — é encantamento e beleza. Envolvido em sucessivas situações vexatórias, como a de negar a ciência, bradar contra a democracia e babar de medo, vê-se transformado num palhaço sem graça e sem circo. Quando chega ao limite da tolerância, ao apontar o dedo contra seus detratores e ameaçá-los de morte, causa mais riso que medo. Não fosse, apesar de patético, perigoso, seu desatino seria comovente.


Terror: o novo Messias teria voltado à terra para acabar com a corrupção original, o passo em falso de Adão e Eva, e com a alimentada pela cobiça. Seu discurso enaltece um passado em nada similar ao fantasmagórico e recorrente de García Márquez, mas um que nunca existiu, aquele no qual, sob ditadura, homens e mulheres foram felizes. Encontra seguidores fanáticos, no entanto, quando o discurso messiânico se transforma em idiotice política, surgem os desiludidos, que, em número crescente, fogem para lugares distantes, se ajeitam em pequenos sítios e abandonam o mundo virtual, praça de guerra do líder. O até então ídolo se vê incapaz de manejar a tecnologia a seu favor, perdendo assim o poder de influir com suas mentiras na vida de todos, seus partidários ou não. Abandonado, meio milhão de almas penadas o visitam e o aniquilam. Enquanto isso, os fugitivos se agarram à única ideia do falso Messias com a qual ainda concordam, a de o passado ter sido o melhor momento não exatamente de suas vidas, mas da existência humana. Empenham-se, então, em reerguer montanhas, replantar florestas, desinventar a agricultura, sobreviver da caça, enfim, dedicam-se a arrastar suas vidas cada vez mais para trás. Até que chega a hora de enfrentar os dinossauros.

 

8.5.21

As palavras mortas

 

Para André Ricardo Aguiar


Palavras mortas, algumas indignadas, outras conformadas, não raro se reencarnam na crônica, escrita de reconhecido poder mediúnico, mas não por isso. O romance, o conto e a poesia são, menos por vontade própria e mais por cobrança estética, infensos a defuntos dessa natureza, cabendo à crônica, portanto, ocupar o espaço. Em um romance moderno não entra a palavra “fuá”. O romancista, dependendo do caso, preferirá os sinônimos intriga (dificilmente mexerico) ou valentão. Mas um cronista defenderá como não sendo puro fuá o que se fala acerca da origem ilícita dos seis milhões usados para comprar aquela façanhosa casa no Distrito Federal. Ou dirá que esses fuás arrotam muito e mordem pouco.

Em uma crônica de agosto de 1968, Carlinhos Oliveira escreveu “em pandarecos”; antes de continuar, cito o texto: “sabendo estar em pandarecos o seu próprio coração, ele acalentava uma única pergunta. / — Quem morrerá por mim?” (Sobre corações, no site Crônica Brasileira). Cinquenta e cinco anos atrás, aquela locução era de uso corriqueiro, mas não causaria estranheza caso não fosse e irrompesse na crônica. De lá para cá, e sabe-se lá por que motivo, pandarecos, catando cavacos, deu com os burros n’água e foi dividir o túmulo com circunfuso, adjetivo que, provavelmente nascido morto, foi exumado com a facilidade com que os numéricos filhos mimados não contarão para cremar a democracia. Deixemos de papo e vamos ao que interessa: quem, hoje em dia, empregaria os pandarecos e circunfusos da vida e da morte? Respondo: outro cronista.

A crônica trava uma luta particular para ressuscitar as palavras fenecidas por conta de um vírus estrangeiro — nunca chinês, é bom que se registre. O download em site made in USA destrói o “baixar”, e ninguém mais baixa coisa alguma de um sítio feito nos Estados Unidos. Por outro lado, continuamos baixando a cabeça para as atrocidades ditas por um brasileiro que estudou em Chicago e, no crepúsculo de seus dias, açoita os camumbembes, com certeza mais pobres do que ele foi, que galgam os primeiros degraus que os separam de um mundo mais justo. Resumindo: entre a recusa cabal e o aceite dócil dos estrangeirismos, a crônica ora é um médium raiz, que distribui pelos quatro cantos a palavra portuguesa já no purgatório e a um passo do céu ou do inferno, ora finge-se de morta e prefere estar in.

No final de semana passado — quando os trabalhadores memoraram seu dia e uma gente estranha gozou da democracia ladrando contra a democracia — entre leituras, faxinas e outros labores, tentei recuperar o nome de um colunista salvo engano d’O Globo. Ele escrevia — mais um salvo engano — no Segundo Caderno, na década de 1980. É possível que escrevesse desde antes, e pode ser que minha reminiscência seja de fato dos anos 1990. De qualquer modo, o traço do tal colunista era o uso intensivo de palavras mortas e inumadas. Fora os artigos e alguns pronomes, muitos mergulhados em ênclises e mesóclises, todo o texto era empachado por palavras que um bebê, vivesse quanto vivesse, jamais falaria, e um revelho, tendo vivido quanto viveu, nunca terá falado. Pelintra, fato, janota e cocote, olvidadas desde os primórdios do século passado, eram defuntos muito frescos, portanto estavam descartadas do repertório do tal colunista.

Talvez fosse um filólogo, um dicionarista, um reles diletante, mas, apesar de consultar jornalistas, no privado e em rede social, não descobri quem era aquele Chico Xavier das palavralmas. Muitos apostaram no Joaquim Ferreira dos Santos, que costuma usar gírias de décadas distantes e, em alguns casos, se expressa com antigualhas dos tempos do onça, mas Joaquim só espicaça uma coisa aqui e outra ali por puro deleite estético, para dar sabor ao texto. O outro, não. Ele montava um bloco hermético, que, para ser decifrado, primeiro exigia a consulta do significado de cada palavra — naquela época, em dicionários pesados e quase sempre velhos —, depois cobrava a compreensão do conjunto, ou seja, da sequência dada às palavras, algumas ornadas de aspas ou escritas em itálico e, quando necessário e até exageradamente, separadas por vírgula, ponto e vírgula, dois-pontos, reticências, travessão, parêntese, exclamações e interrogações. Não era fácil e, confesso, jamais avancei além de umas poucas orações, nunca chegando ao fim do primeiro parágrafo.

Seja como for, e, se não é um dislate o que vou dizer — não sei bem o que eu fazia nos anos de 1980 —, o jornalista cujo nome e existência me escapam é o exemplo fiel do poder mediúnico da crônica, sobre a qual palavras de antanho descem tanto para assombrar gregos e leitores quanto para distrair escritores e troianos. É um luxo essa função açambarcada pelo texto miúdo, criado, segundo Antônio Cândido, para falar da vida ao rés do chão. Como cronista, cioso de meu privilégio e menosprezando os que não gozam da mesma sorte, vasculho romancistas, contistas e poetas e rio dos que não violam, por puro medo, a lápide das palavras mortas, seja num comecinho de noite, seja à meia-noite, quando, mal o sol desponta no horizonte, um jovem de oitenta anos lê, de cabeça para baixo, seu jornal sem letras que diz: “é melhor morrer do que falecer, a terra é uma bola quadrada, que gira parada em torno do nada, sem sair do lugar”.

24.4.21

Adeus, otimismo

 Nasci otimista, e assim permaneci por muito tempo. Fui o típico garoto leve; leve de espírito, fique bem claro, pois sempre cultivei minhas gordurinhas. Pensando bem, acho que eu era, de fato, bobo, herança de meu pai. O círculo pelo qual o velho Joaquim transitava, e eu o acompanhava muitas vezes, era cheio de bobos, inclusive ele, donde concluo que a máxima feminina — os homens são bobos e infantis — está correta. É o que somos.

Otimista ou bobo, me tornei sociável e cercado de turmas que, dependendo da cidade em que morava, Passos, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, se renovavam. Meu papel em todas era o de fazer o comentário engraçado, rápido, tirando gargalhada dos chegados ao riso e pequeno riso dos sisudos. Esse meu comportamento transbordou até para o ambiente de trabalho. Mais uma vez encontro similaridade com meu pai, só que o ambiente de trabalho dele era a rua, o ponto de encontro dos negociantes, o curral onde estava o gado a ser comprado ou vendido, enquanto o meu, a sala de aula, como aluno ou professor, a repartição pública, algum evento literário.

Como posso dizer otimista ou bobo? Um se confunde com o outro? Não, mas o meu jeito bobo associou-se à certeza de que o futuro seria um tempo no qual todos os problemas estariam resolvidos — novamente tangenciando o velho. Apesar disso, não me tornei cego e conheço o lado obscuro ligado à vida privada — perder amigos, por exemplo — ou a nossa injusta e violenta vida comunitária. No campo do afeto particular, graças ao otimismo, chorei as perdas e segui adiante zelando pela memória dos ausentes. No que diz respeito à convivência em sociedade, acreditei que a política amputaria a injustiça, que, não esqueçamos, é uma característica inaugural de nosso país, estava lá desde a distribuição das sesmarias, cuja sobrevivência, enquanto negócio, como nos ensinou Celso Furtado, só foi possível com a escravidão.




O bobo e otimista — penso, por conta da rima, em “O bêbado e o equilibrista”, o hino do Brasil confiante, oposto ao de agora, feito no fim da ditadura por João Bosco e Aldir Blanc, um cara que não foi meu amigo, mas cuja morte recente me dói como se houvesse sido —, o bobo e otimista, repito, aguentou as perdas e acreditou na política, ainda que, com a experiência, tenha passado a ser mais parcimonioso em acolher um novo amigo e se tornado menos ingênuo e mais racional, menos o que diz isso passa ou chegaremos lá e mais o que acredita na justiça como uma conquista.

Então o Brasil do compromisso inaugural, masculino, violento e excludente, voltou à tona. Ao longo de nossa história, não fomos capazes de enquadrar a escravidão e a ditadura como crime e dívida coletiva a ser quitada pelas gerações futuras. O pagamento exigiria reduzir as regalias da elite e abrir as portas para uma vida digna, com comida à mesa, educação e saúde, no mínimo, aos historicamente marginalizados. O dono de escravos e o ditador, nunca punidos, saíram da toca a partir de 2013, ganharam o poder em 2018 e, desde então, têm ceifado o pouco que se fez para diminuir as brutais diferenças que marcam nossa sociedade.

O Brasil atual — no qual as mortes pela Covid-19 ilustram a incompetência de um governo que empobrece os pobres e promove retrocessos nas políticas ambiental, de segurança, dos direitos individuais etc. —, me transformou no mais pessimista entre os pessimistas, o que não vê saída. Não sou mais uma boa pessoa para, numa troca de ideia com os jovens, inclusive os meus filhos, fazê-los rir, dar-lhes um pouco de leveza, essa que foi tão minha, e, mais importante, de esperança.