6.11.21

Pedaço de Minas

Chove, e Nelson Freire está morto. Ouço, neste instante, Encores, disco lançado em 2019 para comemorar seus 75 anos. A morte e a chuva não me entristecem, mas me roubam a alegria. Recorro à música como forma de compensar a perda. A chuva, neste ano seco e maltratado, cai como festa.

Em um texto que estou começando a escrever, um dos personagens é preso em Formiga, cidade de Marco Túlio Costa, que, sem saber de minhas maquinações recentes (praticamente ninguém sabe delas), repassou a um pequeno grupo (nós dois mais Alexandre Marino e Antonio Barreto) uma matéria sobre Lamartine Babo, autor de “Serra da Boa Esperança”, música feita quando o compositor esteve na cidade de Boa Esperança — não muito distante de Formiga e de Passos, minha cidade natal — para conhecer uma pessoa com quem correspondia, Nair, codinome de Carlos Netto, um dentista que, passando-se por mulher, conseguia fotos autografadas de artistas do rádio. (Não conto essa história aqui, seus detalhes pitorescos são encontrados na internet.) Nascido em Boa Esperança, Nelson Freire deixou a cidade a conselho de sua professora de piano, que se viu incapaz, ao fim de poucas aulas, de ensinar muito mais ao molecote de quatro anos. Conselho acatado, a família se mudou para o Rio, e Nelson se tornou um dos maiores pianistas do mundo.

De Boa Esperança, onde esteve uma única vez, Lamartine Babo foi a Formiga, cidade à qual voltaria com alguma frequência. Numa delas, impressionado com uma cantora, Babita, mãe do músico Zebeto Corrêa, pediu-lhe que cantasse uma composição recém-feita, “Eu sonhei que tu estavas tão linda”. A música foi um sucesso à época — décadas de 1930, 1940 — e, tempos depois, marcaria minha juventude, pois, como acontecia Brasil afora, inclusive em Passos, Francisco Petrônio, em seu famoso “Baile da saudade”, a cantava no ponto alto do show. Meu texto em processo começa num baile daqueles, quando dois jovens deslocados em sua pequena cidade dançam a música que lhes parece o passado do passado, mas, guiados por ela, acabam tornando-se namorados.












Chegaram ao mesmo tempo a notícia da morte de Nelson Freire e as histórias de Lamartine Babo. O pesar da primeira e a graça da segunda, bem como sua ligação com o meu texto embrionário, me levaram a pensar sobre esse pedaço de Minas, a passagem do sul para o oeste, onde estão fincadas minhas raízes. Lá, o presidente atual e seu projeto obtuso, extremista e incivilizado foram eleitos com mais de 60% dos votos, um motivo e tanto para me fazer triste.

Triste, formulei, sem pretensão de abrangência, deixando a memória e o esquecimento se entenderem como bem quisessem, uma lista de artistas daquelas bandas — Milton Nascimento, Ezequias Marques, os irmãos Grilo, Alexandre Marino, Stella Maris Rezende, Gustavo Lemos, Gilda Parenti, Antonio Barreto, Reinaldo Barbosa, Marise Pacheco, Selton e Danton Mello, Edel Holz, Elpídio Lemos de Vasconcelos (avô de Maria Valéria Rezende), Marco Túlio Costa, Hilda Mendonça, Silviano Santiago, Bárbara Mançanares, Marco Ajeje, Wagner de Castro, Lilo Clareto, Arlete Porto Soares, João e Gilberto Abreu, Zininha Negrão, Gabriel Villela, Tibless Machado, Gilvan de Oliveira, Maurílio Romão, Consuelo de Paula, Váscoli, Irmãos Jerônimo, Celso Faria, Kaju Ribeiro, Ramon Pitter, Sebastião Borges, José Reis Santos, Jerônimo Neto, Ana Lis Soares, Wagner Tiso, Zé Vicente —, uns vivos, outros mortos, uns de renome nacional, mundial, muitos em busca de seu espaço, vários da cena local. À medida que pensava neles, eu os chamava, e ainda outros, para, juntos, enfrentarmos a perda de Nelson Freire e, ao mesmo tempo, encararmos o desafio de devolver nosso país ao campo da disputa democrática e republicana.

3 comentários:

Ligia de Medeiros disse...

Tantas coisas para dividir com o seu texto...
O espanto pela morte de Marília Mendonça ter tido muuuuito mais repercussão do que a do fenomenal Nelson Freire. Nelson mereceu uma notinha na primeira página e um comentário sem muita emoção na TV. É o retrato da cultura brasileira...
Ontem mesmo escutei a Serra da Boa Esperança e, zapeando na internet sobre a música do Lamartine, me deparei com essa história deliciosa do dentista que se fazia passar por mulher para conseguir seus retratos autografados.
E, com relação ao descalabro do que acontece no nosso país, alguém falou que é tão mais fácil desmontar do que construir, e que nós vamos levar décadas para reverter esse desmonte que está acontecendo no Brasil.Tristeza. Ligia

Dagmar Braga disse...

Obrigada pela sensibilidade e beleza. Um abraço. Dagmar

Ádlei Duarte de Carvalho disse...

Texto lindo! Me emocionei!