14.5.24

Resenha Aí onde não cabe (Editora Patuá) - Mário Baggio

 

AÍ ONDE NÃO CABE” (Patuá, 2024), duas novelas de Alexandre Brandão

 

A prosa de Alexandre Brandão é tão instigante quanto sua poesia. Os poemas de “O sol pelo basculante” (2022) davam conta, com alguma ironia e muita melancolia, do período medonho da pandemia. O luto estava explícito ali, em versos doloridos, assim como a memória da infância e da juventude num tempo em que a vida era muito mais suportável e fácil de ser vivida.

“Aí onde não cabe” traz um elemento novo — o estranhamento, esse poderosíssimo recurso narrativo que atiça a curiosidade do leitor —, a começar pelo título geral do volume (onde é “aí”? o que não cabe aí?) e pelos títulos individuais das novelas (são duas): “Zerinho ou um” e “O anjo ouve os noturnos”. Os dois textos estão impressos nos lados opostos do livro, isto é, termina-se a leitura de um e vira-se o livro de ponta-cabeça para começar a leitura do outro. O leitor acha estranho, mas gosta. Muito.

Em “Zerinho ou um”, Dico e Blasco protagonizam um estranho “se eu fosse você por um dia”, como se um espelho mágico devolvesse a cada um a imagem que o outro queria ter. Dico está acossado pela inadequação na vida e almeja radicalizar o seu “estar no mundo”, em que a liberdade é inegociável; Blasco, em infinita solidão e abandono, tira, por acaso e sem esperar, uma sorte grande. Num determinado momento os dois se encontram, e é quando o espelho faz sua arte: reflete o duplo, ou melhor, o avesso, ou melhor ainda, o complemento. Um encontro estranho, diga-se, que trará desdobramentos inesperados para os dois personagens. Nesta novela, o autor deita e rola no nonsense e brinda o leitor com uma história deliciosamente estranha, cheia de ironia e humor.

Em “O anjo ouve os noturnos”, Clara, após a morte do pai, cuida de limpar as gavetas do escritório em que ele trabalhava. Encontra um envelope lacrado e, ao abri-lo, sua vida vira do avesso. Tem início uma trama policial insólita e estranhíssima, cheia de personagens dissimulados e, como nos filmes noir, nunca são o que aparentam ser e sempre escondem algum segredo. Uma trama que dificilmente terá fim, cabendo ao leitor determinar onde está o ponto final numa história que, se tem um clichê como pontapé inicial (um envelope misterioso entre os pertences de um morto), vai se desenrolar de modo absolutamente original. O estranhamento seguirá com o leitor muito tempo depois de finalizada a leitura.

As ilustrações de Ricardo Tamm, em determinados pontos das duas novelas, acentuam o estranhamento. Assemelhadas a rabiscos, são imagens que ora antecipam algumas ações, ora funcionam como conclusões no sentido de perguntarem ao leitor: “Eu não disse?” O leitor acha estranho, mas gosta. Muito.

 

Mário Baggio

Resenha de Aí onde não cabe (Editora Patuá) - Ione Mattos

 OPINIONE

29_02_2024

 

“aí onde não cabe”, uma bem armada confluência entre duas novelas de Alexandre Brandão e ilustrações de Ricardo Tamm, mexeu comigo. O conjunto, em um único volume de dupla face, me propôs, ou eu mesma me propus, não sei precisar, uma experiência entre personagens comuns e cotidianas, vivenciando desconfortos em que “o absurdo perde a modéstia”, como já o disse Nelson Rodrigues.

No design do livro, as novelas “zerinho ou um” e “o anjo ouve os noturnos” estão de ponta-cabeça uma em relação à outra. Marcando fronteiras e organizando meu olhar, a capa de “zerinho ou um” abre para “o anjo ouve os noturnos”, e vice-versa. Hum... ─ cismei eu, não são dois em um. São um em dois.

Começou por aí, pela materialidade do livro em minhas mãos, a minha aproximação com os textos e as pistas da ilustração: setas apontando circularidades, interseções, convergências, só tomando forma concreta onde a lâmina corta (de ambos os lados, dividida), obrigando-me, para seguir, a revirar o volume e correr páginas onde as linhas desenhadas sugerem mãos trêmulas que se sobrepõem, mas jamais se entrelaçam.

Sim, as novelas não se tocam: não é o mesmo enredo, não se repetem as personagens, tampouco os tópicos são similares. Mas as ilustrações, garatujas intencionais, unem-se à narrativa para sugerir-nos a interseção em uma dimensão mais ampla, tal como costuma acontecer conosco e nossas histórias pessoais: individuais na medida limitada de nossa posição nos acontecimentos, coletivas no ambiente que as contextualiza e determina. Afinal, todo acontecimento esconde modos de vida e os modos de vida nunca são individuais, e sim sociais, relacionais.   

Dico e Blasco, as personagens de “zerinho e um”, ocupam um lugar específico na estrutura que os situa, espaço que não é o de Clara e demais personagens de “o anjo ouve os noturnos”, daí a diversidade dos enredos. O que essa diversidade desvenda, no entanto, são os condicionantes comuns, que tornam inconsequentes as buscas por uma saída. Estão todos (ou estamos todos?) presos nessa trama coletiva, os esforços e as vias por uma saída pessoal tornando-se respostas que nada podem diante do todo.

Leituras instigantes, as novelas somam, em doses variadas, as facetas que há tempos admiro nos textos de Alexandre ─ o ficcionista, o poeta, o cronista, faces de perspectivas de humor sutis e inusitadas.

Ali estão as construções poéticas: “o silêncio, esse específico, tornava-se uma necessidade premente”; “sorrir subestimava a sua alegria”; “inocente chão de estrelas e luas”; “casa sem rosto”; “o cansaço não lhe fazia sala”...

As observações singulares: “tropeçava no pé dos próprios problemas”; “livrara-se da fome sem fim dos boletos”; “não comungava mais de nenhum pingo de ontens: era o homem do ali em diante”; “não se pode pedir lucidez a um homem distraído”; “o coração de quem perdeu os olhos está mais protegido que o de quem não vê”.

A ironia do humor: “─ O que sou por fora, sou por dentro. ─ Existe gente assim? ─ Devo ser um teste de Deus.”; “─ Pago o olho da cara por ele. ─ Os dois?”; “não era um pássaro, muito menos um galo, quem cantou ali foi sua culpa”; “a felicidade, tudo indicava, custava o preço de uma faxina”; “todo pensamento de cão, ou de cães famintos, não passava de um pedaço de osso”; “o esperado diapasão masculino, ora falando de mulheres, ora de futebol”...

Contudo, desta vez, os textos estão construídos também sobre estranhamentos, dos quais destaco a atmosfera como elemento de cena nos noturnos de múltiplos sentidos. Não somente externos e sonoros, como os de Chopin e da noite, mas internos e viscerais, como os que vivem nas pessoas, tantas vezes indecifráveis como as sombras e a escuridão. Para quem Clara, a narradora, afinal se dirige: “Que os Noturnos me consolassem. Ou me tornassem bárbara”. Fascinantes e selvagens noturnos. 

Ambas as novelas, nas vozes dos narradores, são não apenas provocativas das nossas curiosidades e emoções, mas igualmente subversivas em relação aos nossos padrões de realidade, convites abertos ao imaginário: a interpretação fantasiosa dos fatos, as indagações sem resposta, os comportamentos nonsense e as percepções sem sentido. Uma boa mexida na cabeça e nas emoções do leitor.

4.5.24

Encontro #2

Sou a praça do encontro no qual um fato do final da década de 1980 faz piquenique com outro, de mais ou menos trinta anos antes.

1987, 1988. Frequento a Oficina Literária Afrânio Coutinho (OLAC), uma das pioneiras no Rio de Janeiro. Lá conheço minhas amigas do futuro Estilingues, grupo que começa como uma oficina literária permanente, com reuniões às quartas-feiras na casa da Marilena Moraes, as Quartalenas, adaptação do Sabadoyle. De tempos em tempos, convidamos alguém para nos acompanhar. Nilma Lacerda é a última, e ela não demora a saltar o balcão e se juntar a nós, abandonando o papel de orientadora. Somos então sete; hoje, o que nos dói demais, seis. Trinta e sete anos depois, os encontros são esporádicos, mais para compartilhar a mesa de vinho e queijo e darmos notícias de uns aos outros. Todos continuamos no mundo da literatura ou da fotografia e das artes plásticas.

Antes do Estilingues, ainda na OLAC, nossa orientadora é Maria Amélia Mello, autora de “Às oito” (Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras), um pequeno livro de contos, e, já então, uma editora importante. Além de definir os temas dos contos a serem desenvolvidos e comentar os escritos, nos orienta com leituras e, aqui e ali, leva alguém para conversar conosco. Victor Giudice é um deles. Bom de prosa e de rica experiência, nos deixa excitados com a ideia de pertencer ao mundo da literatura. Como as duas horas do encontro são insuficientes para satisfazer a nossa curiosidade, em vez da esticada no boteco de sempre, vamos a minha casa.

Sem a existência dessas entregas cômodas aos ébrios de ocasião, corremos ao bar da frente e, pedindo uns cascos emprestados, compramos a meia, a dúzia, a dúzia e meia de cervejas. Para receber troco em dinheiro, pagamos com cheque de valor superior ao da compra. Resolvida a logística alcoólica e do tira-gosto, nos espalhamos pela pequena sala, uns no sofá, alguém na cadeira de balanço, outros nas cadeiras da mesa de jantar e os destemidos largados no chão. Victor continua o centro das atenções.

No Banco do Brasil, trabalhou no setor de compensação. Assim, se já não estivesse aposentado, em breve os cheques usados na compra da cerveja pousariam em sua mesa para conferência do saldo. Estando tudo bem, transferiria o valor para a conta do botequim. Caso contrário, o cheque reapareceria no bar, e o dono que lutasse. Era um trabalho braçal, automático, enfadonho. Eis então que o banco cria o CCBB, local ideal para uma pessoa como ele, uma chance rara de trocar o trabalho manual pelo intelectual. O paraíso, na visão dele e dos amigos. Abraçou a oportunidade e se meteu na área de pesquisa, desfrutando das melhores condições possíveis. Só que... Depois do trabalho, onde encontrar forças para lidar com a sua literatura, seu real interesse, fonte de lucidez e fé na vida? Não, arrancarem isso dele, não. Victor deu um cavalo de pau e recuperou a função de carimbador de cheque.

2024. Leio Ágota Kristóf – não confundi-la com Agatha Christie, a inglesa das histórias de crime e suspense –, húngara que volta ao mercado editorial brasileiro pela editora Nós depois de muito tempo fora de catálogo. Em “A analfabeta” (tradução de Prisca Agustoni), livro de cinquenta e duas páginas, pequeno e intenso, ela dá um testemunho de como se tornou escritora. Tudo começa quando, aos quatro anos, se vê tomada pela doença da leitura.

Nasceu em uma família pobre, num país pobre, um pouco antes da Segunda Guerra, ao fim da qual viu a Hungria tornar-se um apêndice da União Soviética. Essa mudança dá início ao processo de analfabetização da menina prodígio. De uma hora para outra, os professores húngaros tiveram de aprender russo para ensinar a nova língua a seus compatriotas. Ágota, com vinte e um anos, o marido e a primeira filha do casal, um bebê, fugiram. Como parte de um fluxo migratório da Europa Oriental para a Ocidental e com a ajuda de um coiote, transpuseram a fronteira da Áustria. Ao contrário das experiências recentes, com africanos ou latino-americanos, os europeus do leste eram bem recebidos, afinal abandonavam o comunismo. A escritora sofreu muito, mas não lhe viraram as costas. Depois de finalmente se instalar na Suíça, Ágota enfrentou a condição de analfabeta plena. Não falava nem lia francês. Como faria sem a leitura, logo ela? Levaria um tempo até se virar na nova língua inimiga – como chama a todas não maternas –, que afinal dominaria bem, escrevendo nela, inclusive.

Durante a sua terceira alfabetização, Ágota empregou-se numa fábrica em que trabalhavam muitos imigrantes (não é de hoje, não é de hoje). O trabalho, enfadonho, não lhe roubava o cérebro e lhe dava tempo de escrever, em húngaro, poemas que enviava a um jornal de seu país ao qual tinha acesso esporádico. Ela diz: “Para escrever poesia, a fábrica é ótima. O trabalho é monótono, é possível pensar em outra coisa, e as máquinas têm um ritmo regular que cadencia os versos.”

Giudice e Kristóf, sentados num banquinho mixuruca, nessa praça de alma mole em que me vi transformado, concluem: ser bom escritor requer uma certa vagabundagem. Riem, e eu ligo a fonte de minhas águas roxas, rindo também.