17.2.20

O assobio

para Viveca e Boinha

Aos 18 anos, eu, amigo da noite e de seus maus conselhos, voltava para casa quando os miseravelmente responsáveis (mal sabia que seria um deles em futuro próximo), já acordados, preparavam-se para o trabalho. Foi nessa época que, tendo ficado viúva, tia Yole me escolheu para acompanhá-la nas visitas que fazia à fazenda deixada pelo tio Elin.

Eu me recolhia às três ou quatro da manhã, às seis era despertado, às seis e pouco minha tia e eu entrávamos no carro e fazíamos uma pequena viagem de uns cinquenta quilômetros, de Passos a Cássia. Chegávamos ao Morro Alto, que tinha apenas um curral, nada mais, descíamos e literalmente olhávamos para o pasto e seus boizinhos. Era tudo. “Está tudo bem, não está, querido?” “Sim, tia, está tudo ótimo.” Minha resposta tinha mais a ver com o meu estado deplorável. Apesar de o bate-estaca da boate ainda ecoar pela cabeça e de os infortúnios da ressaca já se prepararem para tomar conta da área, tudo estava bem; ótimo era exagero.

Uma vez, fomos acompanhados por um primo meu (sem parentesco com a tia), veterinário. Ele examinaria o Astuto, touro reprodutor — de má fama, por ter um apetite sexual típico dos pandas — com o qual o tio Elin planejara desenvolver o maior e mais bonito plantel do Sudoeste de Minas, mas que, nas mãos de quem não tinha intimidade com a pecuária, acabou se transformando num estorvo.

Durante a consulta, aproveitando um descuido da tia, meu primo cochichou comigo que não voltaria com ela na direção (ele, de fato, foi o motorista da volta). Puro machismo, claro, tia Yole dirigia bem, aliás dirigiu até às vésperas de morrer, o que foi acontecer quando tinha quase noventa anos (que ela não me ouça falar de sua idade, que, aliás, ganharia mais um ano no próximo 20 de fevereiro), mais de trinta depois da história que conto. O que talvez tenha assustado meu primo é que, alérgica ao sol, ela se protegia segurando uma revista; quer dizer: dirigia com uma só das mãos.

Passada essa época, evoluímos de sobrinho e tia para cúmplices: eu acobertei algumas de suas traquinagens, ela, muitas das minhas. Para reforçar nossos vínculos, houve a escrita. Tia Yole escrevia com sensibilidade, lindamente. Lembro-me da carta que me mandou quando a Helena nasceu. E é inesquecível a crônica que dedicou a meu padrinho, um solteirão, um joão-ninguém, um homem doce, qualidades que “Yoyó, a viúva louca”, como eu carinhosamente a chamava, soube destacar.

Não vou dizer da beleza de minha tia. Não vou dizer de como eram engraçadas suas histórias com o marido, cujo humor era a sua forma de estar na droga deste mundo. Não vou dizer como ela era sofisticada. Vou deixar apenas esse caso miúdo que vivemos juntos. Ah, e acrescentar que tia Yole assobiava. Quem assobia, não sei se vocês sabem, perpetua sua passagem pelo mundo.

3.2.20

Paulinho não só da Viola

Nem sei bem como conheci e quando passei a ouvir Paulinho da Viola. Deve ter sido por meio do rádio, no pré-carnaval, única época em que o samba dava a cara pelas bandas de Minas, isso há mais de cinquenta anos, hoje não sei como é. Samba era só no carnaval e, mesmo assim, perdia em popularidade para as marchinhas de salão. Eu devo ter ouvido nessas circunstâncias, distraída e meninamente, Foi um rio que passou em minha vida, talvez o maior sucesso do compositor.

Depois de eu me curvar à música popular brasileira graças ao antológico “Milagre dos Peixes ao vivo”, de Milton Nascimento, Paulinho entrou no radar da minha curiosidade musical. Não esperava a rádio ou a TV me darem notícias dele, eu procurava por elas. É verdade que não fui, logo no início, um fã ardoroso; Milton, Chico, Caetano e Gil ocupavam esse espaço.

Penso que a aproximação definitiva veio depois de ouvir, numa roda de comes e bebes na casa de meu irmão, um dos convidados falar que o samba havia acabado, nada prestava, e outro fazer um aparte: mas e o Paulinho da Viola? A exceção, concluíram. Eu, que já conhecia um pouco a música do sambista de Botafogo, fiquei intrigado com o diálogo e, aí sim, com afinco fui ouvir seus discos — e na época era isso mesmo: ouvir os discos de vinil ou as fitas cassetes.

Em sua deliciosa Eu canto samba, Paulinho deu o recado: “Há muito tempo eu escuto esse papo furado / dizendo que o samba acabou / só se foi quando o dia clareou”. A audição de sua obra só me fez entender que sobre as costas do samba pesam séculos de ancestralidade e, por isso, ele não acaba. A tal morte não passa de despeito branco. Papo de branco.

Um dos maiores sambistas do país — anda ali com Cartola, com Nelson Cavaquinho, com qualquer gigante —, mas não se pode prendê-lo ao samba, Paulinho é, sim, um dos mais requintados compositores da música popular. Sinal fechado, por exemplo, não é exatamente um samba ou é um samba ao avesso. O fiel compositor de sambas é também um traidor. Sorte do samba. Sorte nossa.

No último 25 de janeiro, fui ao Circo Voador ver o esteta do samba. A qualidade do som não estava muito boa, mas nem isso o tirou do sério. Nesses shows, a ideia é, sem grandes surpresas, tocar os sucessos e promover uma comunhão entre o público e o artista que é porta-voz do afeto desse público. Paulinho soube fazer isso.

Desenho de Elifas Andreato, retirado daqui.


Registrei a história de como nasceu uma de suas composições mais lindas, Para um amor no Recife. Ele teve problema com a hospedagem na cidade, então uma senhora — professora e intelectual que fazia a cabeça do pessoal de Pernambuco — ofereceu-lhe pouso para um ou dois dias, que, por fim, se transformaram em mais de trinta. A música é para ela. O teor desse amor pouco me importa, mas, ao recordar o caso, acho uma oportunidade para falar sobre a qualidade do poeta. 

O filho do violonista Cesar Faria e de dona Paulina Batista não faz feio para ninguém. Pego duas das músicas de que mais gosto. A primeira é justamente a homenagem à pernambucana e fala: “Quero estancar o sangue / e sepultar bem longe / o que restou da camisa / colorida que cobria / minha dor”. A outra é Para ver as meninas: “Quem sabe de tudo não fale / quem não sabe nada se cale / se for preciso eu repito / porque hoje eu vou fazer / ao meu jeito eu vou fazer / um samba sobre o infinito”. Ambas devem ter sido escritas por um menino, um rapazote com seus vinte anos. Não é coisa de monstro? Um monstro delicado, deus preto de calça curta e pés descalços. Em um samba gravado em 1971, ele disse que ninguém explica a vida num samba curto, eu, quase cinquenta anos depois, digo que ninguém explica um Paulinho da Viola em crônica curta ou longa.

Quando eu e a família visitávamos meus pais em Minas, havia uma seleção musical para nos distrair das nove, dez horas de estrada. Rolava de tudo, de Mamonas Assassinas e Rita Lee a João Bosco, passando por Paulinho da Viola, especialmente por seu Bebadosamba. Quando tocava uma de suas parcerias com Hermínio Bello de Carvalho, Timoneiro — “Não sou eu quem me navega / quem me navega é o mar” —, aquele carro tonto das curvas da Mantiqueira a cantava em coro. A música fez parte do show, o que me levou a fazer uma coisa abominável: saquei o celular, gravei um trechinho e enviei para os filhos. Espero que o tenham visto e se dado conta de que Paulinho faz parte de nossa alegria.