28.8.21

7 de setembro de 2021

Esta é a última crônica que escrevo antes do 7 de setembro, data da independência do país, mas que pode, neste nefasto 2021, se transformar no dia do golpe ou no dia do “diga ao povo que, quando for para ir, eu não vou”. Parece e é uma comédia, mas o preço do riso tem sido elevado. Salta aos olhos o fato de a atual gerência (chamo-a assim porque governo não é) ter levado o país da pobreza à miséria, um feito que exige um planejamento arrojado, um senhor desplanejamento.

Golpe é um prato de preparo lento, como a maniçoba, feita da folha da mandioca, a maniva, e que requer sete dias de cozimento para eliminar o veneno, nada mais, nada menos que o cianeto. No caso de um golpe, a demora serve para salpicar e apurar o veneno, e, no de agora, ele tem sido tão lento que o veneno fede à distância e leva ao delírio os inimigos da democracia.

No golpe sanguinário de 1964, parte da sociedade civil o apoiou. É a mesma gente que vê com bons olhos o discurso atual, moralista, religioso e ufanista, ou seja, é a turma que não aprende e, numa primeira dificuldade da democracia, chuta para o lado a liberdade e clama pela ditadura. Em 2021, apesar de um movimento aqui ou ali, os incentivadores da escuridão continuam se valendo do ambiente virtual e da mentira como tática. Bem, também cometem arroubos mais sérios, o que, pelo menos neste agosto, tem sido contestado pela justiça. Um dos mais comentados foi a busca nas propriedades do cantor sertanejo que andou ameaçando invadir o STF. Enfim, o país dividido entre a civilidade e a não civilidade está no ringue. Num ringue, aliás, no qual todos devemos entrar, pois não é uma luta a ser assistida. Somos pugilistas.

Não é preciso dizer que estou do lado da democracia, da liberdade (nada a ver com o cada-um-faz-o-que-quer) e do debate em um ambiente de diversidade política. Do lado em que combato, é habitual o conflito, que nada mais é do que o meio mais rico de as ideias encontrarem soluções para os problemas, o que não quer dizer que não haja erros. Há aos montes, e deles surgem novos conflitos e, no fim, novas soluções. Não é, portanto, um paraíso, pois viver é bruto, sem que tenha de ser violento. O lado da civilidade luta contra a violência, condena-a no Afeganistão, no Haiti, nos Estados Unidos, na Venezuela, na China e aqui, debaixo de nosso nariz.

Para o 7 de setembro plúmbeo que se aproxima, homens lustram seus coturnos, mulheres enaltecem os algozes, jovens se deixam enganar por aqueles que desejam sequestrar a democracia para lucrar. No fundo, o moralismo, a religiosidade e o ufanismo não passam de conversa para os bois dormirem.




14.8.21

Sanduíches, sandices e afeto

Quando eu era bem jovem, me lembro de ter ficado admirado com o que contou um amigo recém-chegado de São Paulo: no cardápio de uma lanchonete não constava uma variedade de sanduíches, mas apenas três: carne; queijo e carne; e queijo, carne e ovo. A carne era de um tipo só, hambúrguer bovino. Meu espanto tinha a ver com o fato de que, na minha cidade interiorana, os sanduíches ficavam cada mais cheios de opção: cebola, alho, bacon, salada, molhos diferentes, linguiça e outras invenções. Diante do que me parecia um retrocesso da lanchonete paulistana, quis saber como o justificavam. Simples, esclareceu o amigo, o dono percebeu que, com tantas alternativas, a escolha se tornava difícil, optar por uma era abrir mão das outras. Frente a um verdadeiro dilema, muitos clientes desistiam de comer, portanto não gastavam seu precioso dinheiro na lanchonete. Moral da história: o excesso nos confunde.





Se a gente esquece o sanduíche e pensa — escolho a próxima palavra também pela rima — nas sandices do captain, their captain, talvez encontre um paralelo entre as duas coisas. Os golpes absurdos, numerosos e disparados simultaneamente por aquele senhor e seu séquito buscam apenas nos confundir. É melhor então sermos objetivos e não cairmos na tentação de enfiar muitos recheios no sandubão; enfim, optar por um clássico. Traduzindo: se taparmos os ouvidos para a verborragia, os xingamentos e as ameaças, o que resta é a incompetência. Na verdade, não existe sanduíche se não se acrescenta queijo ao bife, portanto à incompetência devem-se juntar pitadas de banditismo. Eis então a síntese de quem nos governa.

 

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Para Neném, Carlinhos, Edinho (in memoriam) e o amor de minha vida, Nilzinha

Pena que eu vá misturar essa podridão pela qual temos passado com o nome que direi agora: Dita.

A Dita, negra forte (como são tantas ou todas), viúva ainda jovem e com quatro filhos, foi trabalhar na casa de meus pais e, apesar de ter conseguido, uns anos depois, um emprego muito melhor na Santa Casa, com a segurança da carteira assinada e da previdência paga, nunca nos abandonou. Nunca. Quando meus pais ficaram mais velhos, e o enfisema de meu pai se agravou, ela passou a dormir na casa dos velhos. Sim, ela deixava a família, àquela altura de filhos adultos e netos, para fazer companhia aos seus antigos patrões. Na última internação de meu pai, ao sair de casa, ele sussurrou alguma coisa na direção de minha mãe, e ela não compreendeu, mas a Dita sim. Joaquim declarava seu amor à Haydée. Não fosse a escuta atenta daquela acompanhante tão especial, saberíamos do amor de meus velhos, pois era evidente, mas não saberíamos do último gesto daquele amor.

Agora foi a vez da dona Benedita nos deixar. Eu só posso lhe agradecer — e não só pelo caso recém-contado, uma lembrança que diz muito para mim e não alcança nem de longe tudo que ela foi. Sua grandeza estava na inteligência, no caráter, na força com que lutava e em como sabia ser irônica na medida certa. Conhecer uma mulher assim é um privilégio, e, por ter tido essa sorte, sim, agradeço mil vezes. E agradeço mais uma vez por ela ter me dado a oportunidade de conviver com seus filhos (minha infância não existe sem eles) e netos. Voltando um pouco ao campo da política, devo também desculpas à Dita, pois até o momento não conseguimos, em nosso país, apagar as marcas de um passado escravocrata e erradicar o racismo estrutural. Contribuo para esse fracasso.