29.1.22

Na floresta de pedra

Em Itatiaia, na casa de campo de um amigo, gravei um depoimento para o canal “Acontece nos Livros” (do Youtube), de Whisner Fraga. Minha conversinha fiada e a leitura de uns poemas enfrentaram a concorrência de passarinhos e galinhas, em particular do galo e sua barulhenta forma de querer se impor como dono do terreiro. Seja como for, a trilha sonora aviária foi um simpático complemento a meu pequeno testemunho.




Quando o vídeo foi a público, além de estar longe daquele paraíso, eu adiava minha volta à rua, esperando que a mais nova onda da pandemia regredisse. É um sem-fim essa tormenta. Mais eis que um passarinho começou a piar aqui nas redondezas da verdadeira floresta de pedra que é Botafogo. Não é raro que algum cante. Às vezes, no início da manhã, um grupo de maritacas — com destino ao Aterro, onde promove verdadeiros encontros, com debate, degustação de sementes e voos coreográficos — passa apressado e ruidoso diante da janela do meu quarto. Que liberdade gozam os não molestados pelo vírus. É comum ouvir também o trinado de um bem-te-vi. Digo um bem-te-vi, pois, apesar de nunca o ter visto, sua voz não me engana. Bem, se é único, melhor nomeá-lo. Te batizo, em nome de ninguém, deus ou mortal, de Pafúncio. 

A Bia percebeu logo que o tal passarinho não era nem uma das maritacas nem o Pafúncio, e aquele mavioso gorjeio, ininterrupto, não demorou a nos chatear. Esse bichinho não voava, não se juntava aos seus em tertúlias sob árvores? O porteiro esclareceu o mistério: um dos apartamentos havia sido alugado por temporada — pequena, ele garantiu —, e o locatário tinha um trinca-ferro engaiolado. Ó, meu Deus, como é melancólico (e maçante) o pio de pássaros presos. 

Uma escritora andou desabafando no Facebook: está cansada do confinamento. Quem não está? Se cantássemos, agora que estamos encarcerados por um vírus que vivia quieto nas florestas chinesas até o homem ir lá e cutucá-lo, seríamos esse trinca-ferro incansável, triste, tedioso e torturado. Ele canta? Não, lamenta.

Vídeos e entrevistas recentes

No início de janeiro foi divulgada a entrevista que dei ao canal do Youtube, Acontece nos Livros, do escritor Whisner Fraga. Em depoimento de 13 minutos, falei um pouco de minha relação com a poesia e declamei alguns poemas. Meu depoimento pode ser visto aqui. Fica, de todo modo, para que acompanhem o Acontece nos Livros, pois é muito bom. Além do depoimento de outros poetas, Whisner comenta muitos livros, a maioria, senão todos, publicados por editoras pequenas. 


É recente também a entrevista que dei ao blog Diários do Arrabalde, do professor Wilson Luques. Um papo rápido no qual falo de livros e autores que me marcaram e marcam, além de falar de frustrações e alegrias literárias. Para ler, clique aqui.

15.1.22

Um quase Brasil

Em uma foto que viralizou, Tawy Zo’é, um jovem indígena, carrega nas costas Wahu Zo’é, seu pai. O médico Erik Jennings, sob o impacto da imagem, tratou de registrá-la sem saber ainda que o filho carregara o pai durante uma caminhada, floresta adentro, de seis horas. O motivo de tamanho sacrifício? Vacinar o idoso contra a Covid-19. O fato ocorreu no norte do Pará, onde vive a etnia Zo’é, que, segundo o médico, não teve nenhum dos seus infectado pelo vírus.

Em seu livro mais recente, “As doenças do Brasil” (Biblioteca Azul), o português Valter Hugo Mãe narra uma história que se passa em um território indígena à época em que os portugueses começaram a explorar o interior. A grande sacada de Mãe é a de promover a aliança entre um indígena mestiço (mãe indígena estuprada por um branco), de nome Honra, e um negro, o Meio da Noite. Até se chegar ao pacto que levará os dois a lutarem contra os brancos em defesa dos “abaeté”, muitas arestas são aparadas: Honra tem de se sentir indígena, perder a culpa de ser também branco; Meio da Noite, que havia sido capturado e poupado da morte, tem de ser reconhecido como humano pelos indígenas. Além disso, um deve confiar no outro, uma dificuldade quando a língua que serve aos dois não é a de nenhum deles, mas a do homem branco. No romance, a linguagem é radical (me faz pensar em Guimarães Rosa), e serve ao propósito de Mãe escrever a partir dos valores e modos de ver o mundo dos autóctones. Assim, diálogos entre eles e os rios ou os animais é uma coisa dada, natural, não é magia, nada disso. Leio o livro como se ele viesse nos dizer que, se respeitados os habitantes originais ou se as alianças entre indígenas e negros houvessem se transformado em vitórias expressivas, o Brasil seria outro. Talvez o mundo fosse outro.

Havia lido, antes de Mãe, “Viva o povo brasileiro” (Nova Fronteira), de João Ubaldo Ribeiro. Ora com ironia, ora em delírio, sempre com senso estético apurado, Ribeiro pincela caminhos que poderiam dar em um Brasil diferente do que temos. Pessimista, ele deixa claro que o que vinga em nossa história é um país cujo futuro é o paredão da rua sem saída. O livro foi lançado na década de 1980, ainda na ditadura, momento que justificava o pessimismo. Mas a abertura já acontecia, algum lume de otimismo estava aceso, o que não foi suficiente para o livro ser alegre, apesar de divertido (sabemos rir de nossas mazelas). De todo modo, se, com suas revoltas, os negros houvessem forjado mudanças de fato, se lideranças femininas multiplicassem-se história afora, se tivéssemos respeitado as religiões de matriz africana, se os dissidentes brancos — ou seja, aqueles que entendem que desfrutam de privilégios inimagináveis e estão dispostos a abrir mão deles — fossem em número, o Brasil agônico não teria triunfado.

Assisti aos cinco episódios de “O canto livre de Nara Leão” (Globoplay), de Renato Terra. Com seus 13, 14 anos, Nara se enturmou com uma moçada de Copacabana que tinha talento especial para a música. Ela e aquela turma, na casa da futura cantora, “inventaram” a bossa nova. Quando seu namorado Ronaldo Bôscoli a trocou por Maysa, Nara abandonou a turma e voltou os olhos para o samba. Ela conta então que, aos 15 anos, descobriu que havia favela, pobre e fome no Brasil, começando assim a sua conscientização política. De voz mansa, mas assertiva, Nara não deixou de se posicionar. Quando em entrevista disse que o exército (já no poder) não servia para nada — ela já estava na mira por protagonizar, com Zé Keti e João do Vale, o espetáculo “Opinião” —, passou a ser perseguida. Então casada com Cacá Diegues, mudou-se para a França. Na volta, aproximou-se da turma do Ceará que chegava ao Rio no começo da década de 1970 e, em seu disco “... e que tudo mais vá pro inferno”, gravou Roberto e Erasmo, o que irritou antigos parceiros, como Dori Caymmi e Edu Lobo. A diversidade e a independência a ajudaram a construir uma carreira sólida, de qualidade e curta (Nara morreu aos 47 anos, em 1989). O documentário joga luz num momento terrível, a ditadura, e mostra como sempre houve, da parte dos artistas, resistência. Nara foi uma liderança entre os que resistiram.

O indígena carregando o pai horas a fio para se vacinar é fiapo de um Brasil potente. Os livros de Mãe e Ubaldo, a vida de Nara (e o documentário de Terra) estão cheios de outros fiapos de potência.

Mas o Brasil não existe, o que existe é um quase Brasil.






1.1.22

Diálogos atuais

 I

— Entre.

— A porta está trancada.

— Então não deveria ter saído.

 

II

— Isso, respire fundo. Agora olhe para o horizonte.

— Horizonte?

— Sim.

— Ele não está ali.

— Melhor fechar os olhos.

 

III

— Quanto custa?

— Uma vida.

— Embrulhe para presente.

— Prefere pagar como?

— Com os pulsos.

 

IV

— Reservamos para o senhor a suíte presidencial.

— O que há de especial nela?

— De lá se veem todos os problemas do país.

— É preciso resolvê-los?

— Não.

— Ótimo.

 

V

— Em que ano estamos?

— Acabamos de chegar a 2022.

— Há 2022 anos mandávamos o menino.

— Passou rápido, não foi?

— Demais.

— Quer dar uma olhada em como andam as coisas por lá?

— Eu sei como andam as coisas. Pode apertar o botão vermelho.