24.5.21

Realismo mágico em três versões

 






Com o realismo mágico, García Márquez reportou o mundo a sua volta, em particular o de sua juventude vivida no interior da Colômbia. Sim, era uma espécie de reportagem sobre o extraordinário embutido nas histórias narradas por seus avós e de modo algum criado por ele. Na minha infância, eram comuns os casos situados na fronteira entre o real e o imaginário, entre o visível e o invisível. Eu também — e muita gente de sessenta anos ou mais — poderia ter inventado, se me fosse dado talento, o realismo mágico, bastava registrar, ao lado de mulas sem cabeça e sacis, as peripécias de meus antepassados. O avô materno de minha mãe colocava maçãs na cabeça de suas filhas e, de uma certa distância, atirava na fruta. Verdade? É o que sei. Nas mãos de Gabo, suspeito, as maçãs seriam para lá de rubras e as meninas, apesar de pálidas, esperariam os tiros de olhos abertos.

O escritor colombiano não só registrou as histórias de seus ancestrais, falsas ou verdadeiras, o que ele não poderia atestar, como também espalhou, a seu gosto, ervas e pimenta sobre elas. Não fosse assim, não seria um escritor, mas um contador de causos. Nem contador de causos, já que esses, ao relatar o que viram ou ouviram, dão um jeito no inverossímil da realidade. Não sendo escritor nem contador de causo, García Márquez talvez pudesse ter sido um contabilista com talento para esconder do fisco parte da renda de seus clientes. Sempre projeto sobre o Nobel de 1982 a pecha de mentiroso. Creio que lhe cai bem.

O boom da literatura fantástica ficou para trás. Entretanto esses dias tão cheios de assombros parecem propícios à exploração do mágico. Sendo assim, sugiro três argumentos, que podem ser explorados em diferentes nichos de mercado, àqueles que nalgum canto do universo escrevem sob a bênção do velho Gabo. Corram à cozinha, separem os temperos mais picantes e mãos à obra.

Distopia:  no lugar dos coronéis déspotas, velhos e sozinhos, o personagem é o homem orgulhoso da própria ignorância e fiel à violência. Ele tem o olhar vidrado, não como o de um louco, mas como o de uma besta. Recusa o passado, encantado ou não, por ser um tempo morto. Seu foco são o presente, para desfrutar as benesses da fortuna, e o futuro, para garantir a boa vida dos descendentes e perpetuar o próprio nome como um herói da pátria. Ambicioso e gabola, apresenta-se numa versão mais que requentada do velho caudilho. O déspota atualizado percebe a passagem do real para o virtual, no qual age. As fake news, sua mão sobre o novo mundo, trocam o acaso e a riqueza do contraditório por algoritmos que escravizam, inicialmente, aqueles que o escolheram como libertador e, em seguida, os demais.


Humor: o olhar vidrado do poderoso expressa o assombro de quem não entende uma vírgula do que está se passando. Ele é o menino do “A vida é bela” que, ao crescer, continuou a enxergar o real como um jogo. Em vez de viver, joga, e tudo para ele — inclusive ou principalmente o horror — é encantamento e beleza. Envolvido em sucessivas situações vexatórias, como a de negar a ciência, bradar contra a democracia e babar de medo, vê-se transformado num palhaço sem graça e sem circo. Quando chega ao limite da tolerância, ao apontar o dedo contra seus detratores e ameaçá-los de morte, causa mais riso que medo. Não fosse, apesar de patético, perigoso, seu desatino seria comovente.


Terror: o novo Messias teria voltado à terra para acabar com a corrupção original, o passo em falso de Adão e Eva, e com a alimentada pela cobiça. Seu discurso enaltece um passado em nada similar ao fantasmagórico e recorrente de García Márquez, mas um que nunca existiu, aquele no qual, sob ditadura, homens e mulheres foram felizes. Encontra seguidores fanáticos, no entanto, quando o discurso messiânico se transforma em idiotice política, surgem os desiludidos, que, em número crescente, fogem para lugares distantes, se ajeitam em pequenos sítios e abandonam o mundo virtual, praça de guerra do líder. O até então ídolo se vê incapaz de manejar a tecnologia a seu favor, perdendo assim o poder de influir com suas mentiras na vida de todos, seus partidários ou não. Abandonado, meio milhão de almas penadas o visitam e o aniquilam. Enquanto isso, os fugitivos se agarram à única ideia do falso Messias com a qual ainda concordam, a de o passado ter sido o melhor momento não exatamente de suas vidas, mas da existência humana. Empenham-se, então, em reerguer montanhas, replantar florestas, desinventar a agricultura, sobreviver da caça, enfim, dedicam-se a arrastar suas vidas cada vez mais para trás. Até que chega a hora de enfrentar os dinossauros.

 

8.5.21

As palavras mortas

 

Para André Ricardo Aguiar


Palavras mortas, algumas indignadas, outras conformadas, não raro se reencarnam na crônica, escrita de reconhecido poder mediúnico, mas não por isso. O romance, o conto e a poesia são, menos por vontade própria e mais por cobrança estética, infensos a defuntos dessa natureza, cabendo à crônica, portanto, ocupar o espaço. Em um romance moderno não entra a palavra “fuá”. O romancista, dependendo do caso, preferirá os sinônimos intriga (dificilmente mexerico) ou valentão. Mas um cronista defenderá como não sendo puro fuá o que se fala acerca da origem ilícita dos seis milhões usados para comprar aquela façanhosa casa no Distrito Federal. Ou dirá que esses fuás arrotam muito e mordem pouco.

Em uma crônica de agosto de 1968, Carlinhos Oliveira escreveu “em pandarecos”; antes de continuar, cito o texto: “sabendo estar em pandarecos o seu próprio coração, ele acalentava uma única pergunta. / — Quem morrerá por mim?” (Sobre corações, no site Crônica Brasileira). Cinquenta e cinco anos atrás, aquela locução era de uso corriqueiro, mas não causaria estranheza caso não fosse e irrompesse na crônica. De lá para cá, e sabe-se lá por que motivo, pandarecos, catando cavacos, deu com os burros n’água e foi dividir o túmulo com circunfuso, adjetivo que, provavelmente nascido morto, foi exumado com a facilidade com que os numéricos filhos mimados não contarão para cremar a democracia. Deixemos de papo e vamos ao que interessa: quem, hoje em dia, empregaria os pandarecos e circunfusos da vida e da morte? Respondo: outro cronista.

A crônica trava uma luta particular para ressuscitar as palavras fenecidas por conta de um vírus estrangeiro — nunca chinês, é bom que se registre. O download em site made in USA destrói o “baixar”, e ninguém mais baixa coisa alguma de um sítio feito nos Estados Unidos. Por outro lado, continuamos baixando a cabeça para as atrocidades ditas por um brasileiro que estudou em Chicago e, no crepúsculo de seus dias, açoita os camumbembes, com certeza mais pobres do que ele foi, que galgam os primeiros degraus que os separam de um mundo mais justo. Resumindo: entre a recusa cabal e o aceite dócil dos estrangeirismos, a crônica ora é um médium raiz, que distribui pelos quatro cantos a palavra portuguesa já no purgatório e a um passo do céu ou do inferno, ora finge-se de morta e prefere estar in.

No final de semana passado — quando os trabalhadores memoraram seu dia e uma gente estranha gozou da democracia ladrando contra a democracia — entre leituras, faxinas e outros labores, tentei recuperar o nome de um colunista salvo engano d’O Globo. Ele escrevia — mais um salvo engano — no Segundo Caderno, na década de 1980. É possível que escrevesse desde antes, e pode ser que minha reminiscência seja de fato dos anos 1990. De qualquer modo, o traço do tal colunista era o uso intensivo de palavras mortas e inumadas. Fora os artigos e alguns pronomes, muitos mergulhados em ênclises e mesóclises, todo o texto era empachado por palavras que um bebê, vivesse quanto vivesse, jamais falaria, e um revelho, tendo vivido quanto viveu, nunca terá falado. Pelintra, fato, janota e cocote, olvidadas desde os primórdios do século passado, eram defuntos muito frescos, portanto estavam descartadas do repertório do tal colunista.

Talvez fosse um filólogo, um dicionarista, um reles diletante, mas, apesar de consultar jornalistas, no privado e em rede social, não descobri quem era aquele Chico Xavier das palavralmas. Muitos apostaram no Joaquim Ferreira dos Santos, que costuma usar gírias de décadas distantes e, em alguns casos, se expressa com antigualhas dos tempos do onça, mas Joaquim só espicaça uma coisa aqui e outra ali por puro deleite estético, para dar sabor ao texto. O outro, não. Ele montava um bloco hermético, que, para ser decifrado, primeiro exigia a consulta do significado de cada palavra — naquela época, em dicionários pesados e quase sempre velhos —, depois cobrava a compreensão do conjunto, ou seja, da sequência dada às palavras, algumas ornadas de aspas ou escritas em itálico e, quando necessário e até exageradamente, separadas por vírgula, ponto e vírgula, dois-pontos, reticências, travessão, parêntese, exclamações e interrogações. Não era fácil e, confesso, jamais avancei além de umas poucas orações, nunca chegando ao fim do primeiro parágrafo.

Seja como for, e, se não é um dislate o que vou dizer — não sei bem o que eu fazia nos anos de 1980 —, o jornalista cujo nome e existência me escapam é o exemplo fiel do poder mediúnico da crônica, sobre a qual palavras de antanho descem tanto para assombrar gregos e leitores quanto para distrair escritores e troianos. É um luxo essa função açambarcada pelo texto miúdo, criado, segundo Antônio Cândido, para falar da vida ao rés do chão. Como cronista, cioso de meu privilégio e menosprezando os que não gozam da mesma sorte, vasculho romancistas, contistas e poetas e rio dos que não violam, por puro medo, a lápide das palavras mortas, seja num comecinho de noite, seja à meia-noite, quando, mal o sol desponta no horizonte, um jovem de oitenta anos lê, de cabeça para baixo, seu jornal sem letras que diz: “é melhor morrer do que falecer, a terra é uma bola quadrada, que gira parada em torno do nada, sem sair do lugar”.