26.9.20

Vênus

 Enquanto a tragicomédia de erros, crueldades e mentiras se repete diariamente a partir de um Brasil que dá de ombros para as mortes pela Covid e para o misto de crime e desastre ambiental que abate com força a Amazônia e o Pantanal, cientistas descobriram a existência de gás fosfina em Vênus. Formado pela combinação de fósforo com três átomos de hidrogênio, esse gás, dizem — não conheço, nunca cheirei, só ouço falar —, é fedorento e sobrevive onde há pouco oxigênio, o que é o caso da atmosfera do planeta cujo nome é o mesmo da deusa do amor e lhe foi atribuído por ser, depois da lua, o objeto celeste mais brilhante. Estudos minuciosos analisarão a chance de haver alguma espécie de vida no planeta. Na época em que eu fazia o ensino fundamental e o médio, Vênus era tido como o nosso mais próximo vizinho, mas, de lá para cá, descobriu-se que essa distância depende do ritmo com que os planetas cumprem sua jornada em torno do Sol, ou seja, ora é ele que está coladinho na Terra, ora é Mercúrio. Não importa essa filigrana, o importante é, como eu sempre soube e está por ser confirmado, não somos as únicas vidas na imensidão.




Para mim, apenas um cronista sem dinheiro no banco, mas com um parente importante, já morto, nenhum efeito prático terá a existência de outras vidas em nossa galáxia. Gostaria de acreditar que a humanidade, diante da descoberta, compreendesse a nossa pequeneza e deixasse de lado, da noite para o dia, o egoísmo, a maldade e a ganância, dando adeus à mentira e a todas as formas de obter o poder para fins exclusivamente opressores. Mas não acredito. Não só sou um macaco evoluído (evoluído?) como também sou um macaco velho evoluído. Os homens, derrotem vírus, controlem o aquecimento global, encontrem vidas extraterrestres, não mudarão. Somos o erro dos deuses, o que é uma pena, pois, na minha ignorância, imagino estar ocorrendo em Vênus o que ocorreu na Terra no início de tudo. Deve ser uma “cena” exuberante e intensa, fertilidade em estado bruto.

Debruçados na janela do universo, cientistas acompanharão a evolução desde o zero. Eu, com um pouco de inveja, sugiro a eles e a elas, inclusive a Clara Sousa-Silva, a portuguesa que faz parte da equipa (como dizem os de Portugal), que, nas horas tensas, deem um jeito de avisar aos venusianos para não se meterem por determinados caminhos. Nós os conhecemos muito bem, é uma fria. 

12.9.20

Seis meses

 

Tempo é templo (Sônia Peçanha)


São 19h54m, e um vizinho grita Vasco. No fone de ouvido, Antologia do Violão, de Paulinho Nogueira, um dos primeiros discos instrumentais que curti na vida e que encontrei bem agora numa plataforma de música. Acabei de ver dois filmes em sequência: “A sociedade literária e a torta de casca de batata” (de Mary Ann Shaffer) e “Intriga de estado” (de Kevin Macdonald). O primeiro tem boas sacadas de roteiro — que, contudo, descamba para uma história de amor com final clichê — e uma péssima atriz no papel principal. O segundo, um thriller envolvendo matéria investigativa de um jornal, políticos americanos e interesses privados sobre funções típicas de estado, no caso a segurança, é bem dirigido e bem interpretado, bom divertimento.


Não vejo as séries de que tanto se fala por aí, sou impaciente para acompanhar histórias a serem lançadas em gotas, episódio a episódio, temporada a temporada. (Como eu faria na época em que Dom Quixote ia a público desse modo, folhetim a folhetim?) Ficar na mão de produtores e seus interesses é demais para o caipirinha aqui. Prefiro os livros, os filmes, as músicas e as finais do basquete, que, muito por conta do engajamento dos atletas em relação aos conflitos raciais nos Estados Unidos, assisto com meu caçula.


A vida nesses quase seis meses de confinamento poderia estar restrita a isso ou também a isso, já que não podem ser esquecidas a faxina, a organização das refeições, a disciplina nos pagamentos dos boletos, as conversas do Whatsapp. Não se consegue perder de vista a pandemia e suas vítimas e as vítimas de sempre, haja ou não pandemia, os negros, as mulheres, os pobres. Enfim, os desgovernos (federal, estadual e municipal) nos beliscam segundo a segundo, impedindo qualquer escapismo de nossa parte.


Acontece que o infortúnio é um cão insaciável, pronto a morder as pessoas que amamos. Mesmo consolado pelo violão de Paulinho Nogueira ou maravilhado pelas enterradas de LeBron James, não abandonamos a preocupação com os filhos e os amigos. E não é para menos.


Esse equilíbrio do confinamento, entretanto, foi ferido pela notícia vinda de uma amiga: Sônia Peçanha, dona de uma escrita refinada e contundente, mulher cujo sorriso e cujas poucas palavras dão fôlego para uma vida, não está mais aqui. Em trinta e três anos de convívio em torno de nosso Estilingues, aprendi com Sônia sobre a delicadeza, acompanhei a evolução de seu talento — o texto preciso e poético — e compreendi, a partir dela, o que é uma postura ética frente à criação.


Soninha não foi vítima da Covid-19. Não posso dizer que tenha sido vencida pela estupidez reinante no país, apesar de conhecer seu posicionamento crítico, indignado. De todo jeito, ela se vai quando atravessamos um dos piores seis meses de nossa vida coletiva, seis meses intermináveis, durante os quais envelhecemos duas, três, quatro, ene vezes além do tempo cronometrado.