30.12.09

Versos Íntimos - Augusto dos Anjos


Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

12.12.09

Um Natal

Na minha infância, houve uma Geroma (ou seria Geromba?). Houve também Ana Germana e Sá Inês. Sá Chica; Dita. Houve um seu Frota. E meu tio e padrinho Lozo.
Houve um tombo da carroça. Manta numa troca de uma patativa por uma bicicleta. Carreira que levamos, eu e meus amigos da rua, do Dê da Dona Maria. O velório da mãe da Dona Antonina, fessora do terceiro ano. A magia da casa de minha avó Tomásia, cega que se mantinha longe da escuridão.
Aquele passe de Pelé. O gol. A Copa de 70. Houve a gaiola silenciosa na mão do tio Lupércio. Reunião de homens na varanda falando de negócios. O cavalo Bainho, o Segredo e a Lontrina. Também o Guarani. Dez pães de queijo comidos antes do almoço — o que deixou estarrecido meu tio Lozo, logo ele, que matava frango à distância, com tiro de cartucheira. E ainda a bica fria do Gordurinha, onde éramos obrigados a fazer as necessidades no fundo do pomar.
Houve um romance de mentira com a vizinha. Numa tarde, a brincadeira de carregar às costas por toda a casa uma de minhas irmãs: eu de Cristo e ela de cruz a ser levada ao calvário que nunca chegava, e nunca chegou. Tudo indica que não sou Cristo que se preze. E minha irmã nem de brincadeirinha convencia, ou convence agora, como cruz.
As balas da Kopenhagen levadas do Rio de Janeiro por minha avó materna pros netinhos caipiras do interior de Minas. O mar nas férias. A ilusão de que, tendo o mar por perto, tudo o mais seriam balas de frutas e Nhá Benta. Já então a solidão beliscava a gente, e a gente, inocente demais pra entender dessas coisas.
A conversa mole de meu pai tentando encorajar alguém a comprar ou a vender. O momento encantado de vê-lo apartar os bois. E a suspeita de que ele carregava, no corpo franzino, sabedoria e ansiedade. Houve meu pai.
Houve minha mãe. Os trovões que a deixavam paralisada. Os raios que a deixavam como que inválida. De outro modo, o sorriso que iluminava seu rosto de menina peralta, que algum dia, na infância, quebrara vidraças de vizinhos.
Sopa de macarrão temperada pela Célia. A Célia e seu carinho desinteressado. Houve uma pedrada, aliás, duas, em minha cabeça e consequentemente muito sangue. Na véspera do casamento da Rita, um choque elétrico, cuja marca trago até hoje.
Houve, entre tantas lembranças, um Natal em que corremos à varanda da casa da tia Yole atendendo ao grito de alguém avisando que Papai Noel cruzava o céu com suas renas. Não era blefe. Porém, mesmo vendo-o ali em seu trenó riscando a escuridão, não me convenci dele. Ao contrário: passei a ter certeza de sua inexistência. 



2.12.09

Novo Blog Amigo

Acabo de incluir um novo blog entre os amigos do No Osso. É o da Cristiana Guerra, uma moça de BH que não conheço, mas que mantém esse quase diário belíssimo. De sua dor, e até de seu abandono, ela fez um caminho que leva adiante, que deverá levar adiante principalmente o seu pequeno Francisco.
Vale a visita.

10.11.09

Notícias

Duas notas rápidas.

Primeira: vocês podem conferir uma entrevista minha para a Ana Cristina Melo, aqui. Ana Cristina tem cuidado bem dos novos escritores brasileiros, e ela é também um desses.

Segunda: dia 11, em BH, a partir das 18 horas, na Livraria do Pátio Savassi (Av. do Contorno, 6.061, lj 235, São Pedro), lançamento de "O Espelho de Volódja", de Eduardo Filizzola. Vale a pena conferir.


3.11.09

À espera de um carnaval temporão

Imagine que, sem mais nem menos, os tambores resolvam inaugurar do seu jeito o tempo da destemperança, inventando com histeria de taróis um carnaval temporão, novembrino.


Com algum esforço, dará para improvisar uma fantasia mexendo e remexendo no armário, incluindo o do pai, o da mãe, o do marido, quem sabe até o do filho, mas neste caso não procure o que ali não se pode ou não se quer achar. Filhos têm fantasias do arco da velha, algumas os pais se esquecem de tê-las tido também.


Irá cair-lhe bem a roupa da Borralheira adaptada aos trópicos. Não lhe faltarão sapatinhos carregados por príncipes nórdicos, nerds, selênicos ou céticos. Nem digo a de um pirata de meia tigela: a venda num olho, mas o gancho no pé direito. O pileque tornará possível que se fique fantasiado, sem ficar fantasioso, cada um dos que se lançarem à rua no exato momento em que rufar o primeiro baticum.


Não faz mal que não estejam disponíveis os banheiros químicos, nem na festa oficial estão.


Não faz mal que a cidade esteja correndo de cá pra lá e de lá pra cá na sua hiperatividade habitual e sem norte. Deixe o trânsito congestionado digerir a fumaça, que é sua digital e nossa morte. Deixe as crianças na saída da escola espantarem-se com homens de saia e mulheres tortas de dar pena. Sopre-lhes ao pé do ouvido que isso é apenas uma das faces da alegria.


O contágio desse carnaval será homeopático. Um folião descerá de seu décimo primeiro andar trajando chapéu coco e bengala, crioulando lindamente a figura de Chaplin. Os vizinhos olharão praquilo com comichão de denunciar o meliante ou internar o trânsfuga. Porém surgirá, bem embaixo do nariz desses incautos desconcertados, uma lourinha que, traindo a lua, dar-se-á ao sol em trajes de odalisca com um nada de pudor. Sem contar um padre de araque que rezará três vezes antes de verter a primeira talagada e abraçar os pecados que só mesmo a carne sabe e ousa cometer. Quedarão conformados os caretas.


Surpresos, os porteiros tenderão a ficar, como os soldados, em posição de sentido, porém não tardará muito para inventarem danças com a vassoura, os mais sortudos, com a dama roliça do 307 e os enrustidos, com o rapagão de rua que está sempre por ali, às vezes dando conta de si mesmo embaixo do cobertor escondido durante o dia sabe-se lá onde e em cima dos jornais que não se cansam de noticiar as repetidas falcatruas, os desastres esportivos e as aberrações sociais.


Até mesmo os que, na festa de momo, preferem a serra, as águas de Minas ou o frio europeu sambarão espremendo-se nas cercanias de um trio elétrico improvisado numa ambulância cujo doente estará fantasiado (é melhor acreditar nisso) de morto.


Haverá beijos dos mais íntimos. Haverá abraços dos mais honestos. Haverá brigas; como de praxe. Haverá descobertas que, à primeira vista, assustam: um desvio de sexualidade, uma tendência ao álcool, uma queda pra vagabundagem.


Quando amanhecer, a cidade estará suja, não em demasia, e o Sorriso dará conta dela em dois tempos, inumeráveis vassouradas e não sei quantos passos no ritmo de um samba que inventa e assobia pra dentro.






(Ilustração sobre foto de Daniela Clark - G1)


Por outro lado, a mesma cidade de todo o dia estará feliz por ter-se rendido ao imprevisto e desejará outros momentos como aquele em que a alegria mandou o baixo astral pro céu do inferno, longe dali.

8.10.09

Hoje, o que sei da poesia



Não me tomem por pecador, se falo fala fina e tímida, com jeito de iconoclastia. Tem dias que não estou pra Drummond, não estou pra Adélia, não estou pra Pessoa alguma. Noutros, sou eles e esqueço de mim, ou, por outra, sou o que só pra mim, de mim, dizem: podre se podre, pétreo se pétreo; líquido.
Não é sempre que me alcançam os outonais haicais, por breves. Não chego inteiro, sequer aos pedaços, pois estes esfarelam-se pelo caminho, aos épicos de cauda longa. Seduzido sou pelo ritmo, pela pegada, pelo pancadão. Olhe, por exemplo, o bumbo nocauteador do poeta Barreto (O sono provisório, pág. 11, 1978, Editora Francisco Alves):


Vivo sobrevivente de um desastre aéreo e
ferroviário
que acontece todos os dias na cozinha
onde escaldo calendários e fervo a família
jornais e margarinas
Tempero com cola substantivos abstratos
como quem tenta se vingar da própria língua

Mesmo contrita no adro da casa santa, a poesia está sempre fornicando. Às vezes, com anjos; noutras, com sono. Seu gozo não é sopa de letrinhas, não são os postergados pelas prostitutas; seu gozo é silêncio e bambeza de pernas, tracejado por um cartunista que se deixa levar pelas pontas rombudas de seus lápis.
Entendo a poesia que descomprime o tórax, permitindo assim a passagem da respiração, que fluia tranqüila e, por assustar-se, cai momentaneamente no sono. Odeio o entendimento loquaz da poesia, garganteado pelos bêbados da razão. Amo a poesia dos calafrios.
A poesia não ri de mim, não ri pra mim. Não chora de mim nem chora pra mim. A poesia caçoa do sol, conquanto o descreva em versos amarelos. A poesia nunca viu a lua, pois à noite cheira dos tatus as tocas e assiste a coito de formigas que, sob o mantô de terra, fazem o feito, o desfeito e não murmuram. As formigas não murmuram; a poesia, sim. Nisso, parece-se com as vacas e com os vasos sanguíneos do velocista que busca quebrar o recorde olímpico.
A poesia, amante, se é, não espera. Quando quer, cheira e fuma as delícias de seu vício para entrar no sonho alheio e tirar do foco as imagens que, por si só, são incompreensíveis. Desse modo faz partir pra longe a última chama memorial que o adormecido cultivava como lágrima contida. Pela manhã, ao sentar-se na cama, botar os pés no chão e começar a fazer força para erguer o corpo, o poetinha distraído e sonhador ganha no bucho de sua consciência uma gota de verso como esta:

Pago todas as contas
Mas comigo não conte
Para afundar navios
E fundear vazios
Distintos dos meus.

A poesia é a voz que se escuta quando não há voz alguma, e os poetas são os doidos da vez — de todas as vezes.

11.9.09

Brasil – il – il – il

                                        
                                 (bigode retirado de: http://justwrappedupinbooks.wordpress.com/2009/08/02/sob-o-dominio-do-bigode/)

             

 Se algum dia fizerem antologia do cronista sem assunto, verão que todas as crônicas escritas nesse dia são iguais. Falamos coisa do tipo: hoje não haverá crônica, ou: a de hoje, só amanhã.


Neste exato momento, não consigo dar um exemplo concreto, mas arrisco a dizer que, do cronista maior ao cronistinha de uma figa, todos, quando tropeçamos, tropeçamos da mesma forma.


Isso não quer dizer que o talento se iguale nesse instante de fracasso. Um tombo de um Drummond tem o estilo do poeta; o meu, por sua vez, é só a queda desse corpanzil que cresceu, apareceu e ficou feiinho, feiinho.


Porém, neste país, assunto é o que não falta. Podem jogar os parágrafos anteriores fora, não servem pra nada.


Giro minha câmera pro Senado. Não, aí é covardia, e tenho poucas linhas, espaço insuficiente pra dizer tudo que está borbulhando por lá. De todo jeito, só de relance, vi aquilo que meus olhos preferiam não ver.


Vamos pra outro lado. O pessoal da cultura tem trabalhado com nota fria? Oh, meu Deus, que novidade! Só na cultura, é? Será que somos chegados a um desvio ou o sistema é que joga todo mundo no limbo? Deixa isso pra lá, mal saiu a notícia no jornal, no outro dia já se dizia que as empresas tomaram juízo, está tudo resolvido, uma beleza. Sou a velhinha de Taubaté que, depois de ver tantas sarneiras, ficou cega — de nascença.


Meninas passam pra cá, passam pra lá. Passam pra lá, passam pra cá. São pêndulos de relógios? Marcam que espécie de tempo? Essa crônica bem poderia chafurdar no lirismo, ficar na cola da beleza, ou falar do Nadinho da Ilha, que morreu dia desses, mas... 


A gripe suína está tirando todo mundo do sério. A gente anda com tanto medo, que esconde espirro, quando não prende. Tente espirrar em público. Todos os rostos se voltam contra você. Aliás, meu conselho é que, ameaçou espirrar, ligue para esse 0800 do Estado e, primeiro, peça desculpe e, depois, aproveite para perguntar se o seu atchim está condenado.


Seria bom viver num país em que faltasse assunto pra crônica! Eu poderia fixar-me no pêndulo desenhado pela beleza das meninas, homenagear o Nadinho, com quem dividi alguma mesa de bar e de quem vi o talento em ação, ou falar da Serra da Canastra (veja a foto). Lá, o São Francisco nasce chiquito, chiquito. Ao contrário dos problemas do Brasil, que nascem grandes e ficam enormes.


Não tenho medo de cara feia, mas acho que o Pedro Simon fez bem em ter.






                                        (Foto de Alexandre Brandão)

29.8.09

A câmera e a pena está por aí

Amigos, o livrinho agora está à venda, pela internet, na Livraria Cultura, bem aqui.


No Rio, pode ser encontrado na Livraria Travessa, numa de suas lojas.


Aproveito para sugerir um site bacaninha, e não só porque já falou do meu livro, mas é legal mesmo, feito por uma moça antenada com a nova literatura. Clique aqui e chegue lá.


Lá no final do blog, tem uma ferramenta nova: um siga-me. Quem quiser botar a cara e dizer que acompanha as osseosidades aqui fique à vontade. Meu amigo, Udo, de Alemanha, vejam só, já está.


Por fim, agora resolvi botar umas frases no twitter. Roubo algumas de feras, invento algumas. Não são diálogos, falo sozinho. As frases transbordam pra cá, bem no canto superior esquerdo do blog.




Abraços,

11.8.09

Na Trave


Bem sei, leitor, você bate os olhos neste mensário, em particular nesta coluna mal vertebrada de nome “No Osso”, à procura de distração. Acho até que está preparado para encarar uma temática, digamos assim, menos solar, afinal de contas estamos no Brasil e refletimos sobre ele, sobre suas mazelas. Porém não sei se suportará minha conversinha mole de hoje.

Na realidade, escrevo para diminuir minha carência, para desabafar. Não tendo terapeuta, uso e abuso de sua boa vontade. Não me abandone, por favor. Não agora. Pode ser que daqui a pouco minha dor se mostre apenas uma indisposição, algo passageiro. Se for, pronto, oras, você terá me ouvido, e tudo terá passado. Uma boa ação sua. De meu lado, ao falar, vou me curando, é assim que funciona a coisa desde sempre, como bem sacou o velho e bom Freud.

Estou meio sem jeito. Para falar a verdade, sou caladão; não falo, tartamudeio. Já que você foi alçado ao posto de terapeuta ou confessor, uma de suas obrigações é ser paciente, embora seja eu o paciente. Esta frase, mesmo não sendo boa, me remete a Campos de Carvalho. Posso fazer uma digressão?

Sujeitinho competente o Campos de Carvalho. Quem o conhece não se surpreende com a afirmação. Quem não, não perca tempo com cronistas menores, vá a uma livraria (há tantas e boas na cidade) e adquira o livro com todos os seus romances que saiu pela José Olympio, ou compre-os um a um, pois a mesma editora os está lançando separadamente agora. Voltando à digressão, esse autor mistura de tal jeito os estados de loucura e de lucidez — qual a diferença entre um e outro mesmo? —, criando personagens que transitam entre esses mundos paralelos, que eu diria, sem medo nenhum: Campos de Carvalho descobriu não a origem da vida, mas, sim, o sentido dela. E a julgar por ele, a vida é realmente sem sentido nenhum, o que, aliás, aumenta nosso compromisso com ela, fazendo-nos aceitar seus caprichos.

Digressão? Estou fugindo. Vamos ao ponto. Leitor, o fato é que nunca fui bom de bola. Já me ocorreu de, num teste no infantil do Esportivo, jogando de ponta direita, driblar o lateral, entrar na diagonal, driblar o beque e, cara a cara com o goleiro, chutar para fora. Uma decepção. Para a torcida e para mim. Quando nos decepcionamos conosco mesmo o nome é frustração.

Segue daí... O quê? Como assim, acabou?

Tempo lógico? Era o que faltava. Você não é o Lacan, nem meu analista você é, oras!

Pena, logo agora que encontrei o elo perdido de tantas dores.

8.8.09

Resenha de "A câmera e a pena" no JB

Hoje no Jornal do Brasil, Duílio Gomes, escritor e jornalista mineiro, faz uma resenha de meu novo livro. Quem quiser conferir, clique aqui.

Se eu fosse carola. Ou seu fosse chegado em misticismo de qualquer tonalidade, eu diria que tem coisa aí. Sabe por quê?

No caderno Idéias e Livros do JB, onde está a matéria, estão também: Bernardo Ajzenberg, Ieda Magri, Didi e Armando Freitas Filho. E daí? Vamos por parte:

1) Sou botafoguense, Didi, nosso ídolo;

2) Duílio Gomes e Bernardo Ajzenberg foram as primeiras pessoas que fizeram resenhas de livros meus, no caso de Contos de homem, lançado em 1995. O Duílio no Estado de Minas, o Bernardo, na Folha de São Paulo. No JB de hoje, Duílio fala de mim, Bernardo dá entrevista sobre seu novo livro, Olhos Secos (Rocco);

3) Ieda Magri foi minha colega no jornal de bairro do Rio de Janeiro (Folha Carioca). Lá, antes de compromissos do doutorado inviabilizarem sua permanência, ela fazia resenhas de livros. Ela, numa só matéria, falou de meus dois primeiros livros, Contos de homem e Estão todos aqui; e, por fim,

4) Eu sempre gostei da poesia do Armando. No Conto de homem tem um texto que é dedicado a ele e ao Tom Jobim. O João Gilberto Noll, que escreveu o prefácio do meu livro, disse que o Armando iria gostar de ver o conto. Mandei o livro pra ele. O destino (ou Deus, ou Jesus que é o senhor, ou Buda, ou a sorte) fez com que minha filha fosse colega de sala de Carlos, filho do Armando. Passamos a nos relacionar, não com intimidade, mas com alguns bons encontros.

Para terminar... vocês acham que foi a mão de Deus?

14.7.09

Tudo num dia


Faltei à ginástica — o cansaço, amigo, o cansaço. Mas a vida é assim: aqui se perde, logo ali se ganha. Cheguei ao trabalho, por conta dessa preguiça matutina, numa hora diferente da habitual.

A última rua que teria de atravessar antes de acomodar-me à cadeira e pelejar com (ou contra) papéis, reuniões e gente — gente, sim — é dessas grandotas, com uma ilha entre as duas calçadas.

Eu estava num dos lados da rua. No outro, havia um casal cuja mulher levava um bebê deitado nos braços. Na ilha, um senhor. O sinal de trânsito, de três tempos, abriu de tal modo que o casal pôde ir para a ilha. O senhor, que poderia ter seguido para o outro lado, manteve-se onde estava. Especulo que esperasse a aproximação do casal, pois foi só ficarem mais próximos para o senhor depositar sobre a criança o olhar mais suave e sublime de que me recordo de ter visto nos últimos tempos. Enquanto admirarmos com encantamento a vida que é apenas potencial haverá esperança de dias melhores.

Veio a hora do almoço, e não vi nada de extraordinário. Isso, cá entre nós, é o comum da vida. Esbarramos com pessoas correndo de um lado pro outro, algumas defendendo seus trocados, outras atrasadas para um encontro amoroso, umas tantas tristonhas por alguma das muitas razões existentes para entristecer a gente, e não há nada nelas de especial, pois não dão na pinta o que faz mover seus passinhos da hora.

Em Copacabana, já à noite, precisava fazer hora antes de encontrar minha família num restaurante em que comemoraríamos o aniversário da Bia. Desci na Barata Ribeiro e, distraído, entrei na Figueiredo Magalhães. Não era o que planejara, queria mesmo ir à Modern Sound, aquele pedaço de mau caminho onde minhas finanças costumam sofrer abalos comparáveis a esse que anda rondando a GM, com uma pequena diferença: não tem Gordon, nem Lula, muito menos Obama que se proponham a me salvar. Bem, entrei na Figueiredo e ia matando o tempo com passadas de gente cansada quando minha audição alcançou o choro de uma mulher. Chorava e dizia, em alto e bom tom, alguma coisa como “aquele maldito, safado de uma figa”. Uma mulher que ama demais? Uma mulher desrespeitada? Doidinha? Não sei, não sou de palpites. O mundo ainda faz as pessoas sofrerem de amor, é tudo que posso dizer, e a partir dessa constatação afirmo: se os sofrimentos humanos fossem apenas amorosos, o mundo, esse bicho, seria tão melhor do que é. O mundo seria manso.

Encontramos a Polonesa ocupada por um grupo pra lá de ruidoso, que se esparramava por todo o ambiente. Bia quis ir embora. Mas apostamos em não desistir, a turma não demorou muito a cair fora, e ficamos com o restaurante todinho nosso. Comemos nababescamente, coroando a noite com aquele viciante suflê de chocolate.

E o Flamengo, tadinho, se desclassificou na Copa do Brasil.

O Fluminense também.

Caí na cama, capotei no sono, mas esse dia não saiu de mim. Nem sairá.


21.6.09

Não se deve dar as costas aos poetas


Escrevi a última crônica (No Jardim Botânico). Saiu na revista Folha Carioca, depois veio para a internet (neste blog e também no Opinativas). Recebi elogios, inclusive de dois poetas. Um lá do Pará, meu amigo Edson, sujeito que está prometendo aterrissar aqui no Rio em fevereiro — demora, mas é menos do que nunca, ou mesmo de um não sei quando. Outro foi o homem que orelhou meu último livro, o danado do Barreto (que tem tantos nomes quanto prêmios literários – ora é Barretúmero, ora é Barretim, ora Seu Barreto, ora Barrevento, ora, bem, leitor, já deu pra entender a idéia, não? Invente o nome que quiser para o grande poeta que ele é. Para quem não sabe, ele está ali na foto comigo).

A coisa com o Barreto foi diferente e é o motivo de eu voltar à crônica aqui “No Osso”. Foi assim: o poeta me escreveu logo pela manhã. Disse assim: “Xandão, li sua crônica e achei uma delícia!
Me senti lá dentro do Jardim Botânico! Como você consegue isso?” A partir disso, como o biscoito em Proust, a crônica parece que transportou meu amigo lá pras profundezas de suas recordações e o fez lembrar dele mesmo passeando com a filha (que já é médica) num parque de BH. Ótimo, fiquei envaidecido.

Passou o tempo, recebo novo e-mail do poeta. Agora dizia: “Xandão, relendo sua bela crônica, me ficou um pequeno ruído... algo que ficou me atazanando e aí fui tomar banho e fiquei pensando em te sugerir o seguinte: tirar essa parte ....”. (Daqui a pouco, leitor, você descobre o que foi cortado.)

Meu primeiro impulso foi o seguinte: por que será que os poetas tomam banho? A poesia já não os limpa suficientemente? Havia uma suspeita (despeitosa) de que, ao banhar-se, o poeta cuidava de coisas distintas de sua poesia e, entre uma passada de bucha e outra, tirava o cisco do texto alheio.

Quase caí num orgulhoso perigoso, mas de pronto me recuperei. Ora, ora, poeta calejado quando dá de dar pitaco na palavra alheia só pode ser porque gostou do que leu. Sendo assim, republico a crônica com o corte sugerido pelo poeta. Aproveito para aceitar sugestões de minha irmã atenta, Teresa Cristina.

O fato de ter escrito este post tem a pretensão de mostrar duas coisas. Uma: minha caminhada no Jardim Botânico fez bonito. Outra: escrever é reescrever, e feliz daquele que tem leitores sensíveis e atentos. Ando tendo.


No Jardim Botânico – versão corrigida

Uma caminhada no Jardim Botânico equivale a uma sessão de yôga, ou de yoga como se dizia no tempo em que eu não sabia exatamente que sexo poderia gerar filhos — sabia, mas não acreditava.

Uma caminhada no Jardim Botânico num dia não muito ensolarado, tampouco fechado, pode deixar na gente — na memória que teremos no futuro, quando nossos filhos forem eles mesmos senhores e senhoras com vidas próprias e, se Deus quiser, independentes e bem encaminhados — algum gostinho de felicidade tão carregado, que poderemos mesmo imaginar que fomos, dentro e fora do Jardim Botânico, felizes, completamente felizes.

Pisar descalço o chão do Jardim Botânico, como vi um jovem fazendo no último domingo em que estive por lá, deve ser o grito mais veemente que conseguimos dar contra a tendência do mundo em nos distanciar da terra, do fogo, da água e do ar. Aquele rapaz, garanto sem conhecê-lo, sabe ser feliz quando quer: basta tirar os sapatos e pisar a terra úmida do parque.

Sentar num banco do Jardim Botânico numa manhã de maio, em pleno domingo das mães, ao lado da irmã, pode apaziguar as dores que sozinhos, o irmão e a irmã, não suportariam mais ter. As árvores dali, estrangeiras e nacionais, entendem dessa coisa de despoluir até o espírito mais sombrio.

Depois de uma caminhada que levou o desempregado à estufa das plantas carnívoras e a debutante, um pouco cansada, à beira do lago das vitórias-régias, a bica, pequena e elegante peça de metal bem aducido e corretamente coado, dará água fresca a quem já tem, a sua volta, toda espécie de sombra. Não vai nesse gesto do bebedouro nenhuma intenção de iludir o desempregado ou a jovem pensando-se vítima do maior cansaço do mundo, mas, fresca e fluida, a água ensinará sem querer que a generosidade mata a sede quando não escorre pelas mãos.

Pais e filhos, concebidos ambos na brasa do desejo ou na assepsia dos laboratórios, jogam folhinhas no riacho e vão correndo ao lado acompanhando aquela corrida de Fórmula 1 vagarosa e vegetal. Há uma bateria, depois uma segunda, e haverá outras até que a criança saia dali campeã. No Jardim Botânico, a simplicidade é sempre verde e imatura.

Vez ou outra o chão ficará enlameado. Vez ou outra alguma árvore o vento derrubará. Vez ou outra os esquilos cairão viciados em pipocas. Vez ou outra um estudante de artes plásticas errará a mão e não tracejará nada que se assemelhe ao que está por todo o lado. Por fim, poucas fotografias tiradas ali, aos milhares ou milhões, em alguma contagem do tempo não muito dilatada, terão a qualidade que o parque merece.

Vez ou outra um cronista menor compreenderá o mundo dinâmico que, entre ramagens, águas, pessoas e aves, o silêncio do parque guarda.


18.6.09

No Jardim Botânico

Uma caminhada no Jardim Botânico equivale a uma sessão de yôga, ou de yoga como se dizia no tempo em que eu não sabia exatamente que sexo poderia gerar filhos — sabia, mas não acreditava.

Uma caminhada no Jardim Botânico num dia não muito ensolarado, tampouco fechado, pode deixar — na memória que teremos no futuro, quando nossos filhos, filhos de nossas relações sexuais ou não (pois hoje já não se faz filho apenas com relações sexuais), forem eles mesmos senhores e senhoras com vidas próprias e, se Deus quiser, independentes e bem encaminhados — algum gostinho de felicidade na gente tão carregado, que poderemos mesmo imaginar que fomos, dentro e fora do Jardim Botânico, felizes, completamente felizes.

Pisar descalço o chão do Jardim Botânico, como vi um jovem fazendo no último domingo em que estive por lá, deve ser o grito mais veemente que conseguimos dar contra a tendência do mundo em nos distanciar da terra, do fogo, da água e do ar. Aquele rapaz, garanto sem conhecê-lo, sabe ser feliz quando quer: basta tirar os sapatos e pisar a terra úmida do parque.

Sentar num banco do Jardim Botânico numa manhã de maio, em pleno domingo das mães, ao lado da irmã pode apaziguar as dores que sozinhos, o irmão e a irmã, não suportariam mais ter. As árvores dali, estrangeiras e nacionais, entendem dessa coisa de despoluir até o espírito mais sombrio.

Depois de uma caminhada que levou o desempregado à estufa das plantas carnívoras e a debutante, um pouco cansada, à beira do lago das vitórias-régias, pequena e elegante peça de metal bem aducido e corretamente coado, a bica dará água fresca a quem já tem, a sua volta, toda espécie de sombra. Não vai nesse gesto do bebedouro nenhuma intenção de iludir o desempregado ou a jovem pensando-se vítima do maior cansaço do mundo, mas, fresca e fluida, a água ensinará sem querer que a generosidade mata a sede quando não escorre pelas mãos.

Pais e filhos, concebidos ambos na brasa do desejo ou na assepsia dos laboratórios, jogam folhinhas no riacho e vão correndo ao lado acompanhando aquela corrida de Fórmula 1 vagarosa e vegetal. Há uma bateria, depois uma segunda, e haverá outras até que a criança saia dali campeã. No Jardim Botânico, a simplicidade é sempre verde e imatura.

Vez ou outra o chão ficará enlameado. Vez ou outra alguma árvore o vento derrubará. Vez ou outra os esquilos cairão viciados em pipocas. Vez ou outra um estudante de artes plásticas errará a mão e não tracejará nada que se assemelhe ao que está por todo o lado. Por fim, poucas fotografias tiradas ali, aos milhares ou milhões, em alguma contagem do tempo não muito dilatada, terão a qualidade que o parque merece.

Vez ou outra um cronista menor compreenderá o mundo dinâmico que, entre ramagens, águas, pessoas e aves, o silêncio do parque guarda.

12.6.09

"A câmera e a pena" em novas livrarias

Em Belo Horizonte, "A câmera e a pena" pode ser encontrado nas seguintes livrarias:

Quixote Livraria e Café


Rua Fernandes Tourinho, 274 - Savassi
Telefone: (31) 3264-2858

Café da Travessa

Rua Pernambuco, 1286 - Savassi
Telefone: (31) 3223-8092

Status Café Cultura e Arte

Rua Pernambuco, 1150 - Savassi
Telefone: (31) 3261-6045

No Rio de Janeiro, "A câmera e a pena" pode ser agora também encontrado na:

Literárea


Rua Marquês de Abrantes, 177 - Loja 107 - Flamengo
Telefone: (21) 3237-3947

19.5.09

Mais uma livraria no Rio de Janeiro tem "A câmera e a pena".


É a Arlequim (especialista em CD e DVD, mas agora investindo também em livros).

De segunda à sexta-feira das 9:00h às 20:00h, e aos sábados de 11:00 às 17:00 h.
Telefaxes: (21) 2220-8471 ou 2524-7242.
E-mail: musica@arlequim.com.br

Endereço:
Praça XV de novembro 48 Loja 1
Centro Rio de Janeiro RJ
22010-010 Brasil

15.5.09

Livrarias que já têm "A câmera e a pena" (Ed. Cais Pharoux)

Empório das Letras 

Rua do Catete, 311/sobreloja 
Galeria do Cinema São Luiz 
Lg. do Machado - Rio de Janeiro – RJ 
Tel./Fax: (21) 2205-5330 

Leonardo Da Vinci Livraria

Av. Rio Branco, 185 – Ed. Marquês do Herval - Subsolo - Lojas 2, 3, 4 e 9
20045-900 Centro Rio de Janeiro RJ
Tel.: (21) 2533-2237 - Fax: (21) 2533-1277

Livraria do Museu da República 

Rua do Catete, 153 – Museu da República 
22220-000 Catete Rio de Janeiro RJ 
Tel.: (21) 2556-5828 
Fax.: (21) 2233-6845 e Cel.: (21) 9379-0255 – Glaucio 
http://www.livrariamuseudarepublica.com.br/ 

Em breve o livro estará em outras livrarias, inclusive fora do Rio de Janeiro.

9.5.09

Onde Encontrar "A câmera e a pena"?

 "A câmera e a pena" pode ser encontrado no site da Cais Pharoux ou no site da Martins Fontes.

No Rio, por enquanto, está disponível na Blooks Livraria, Praia de Botafogo, 316 - no Unibanco Arteplex.

Enterrei uma crônica


(Crédito: EP - O Globo. TZ - divulgação de "Fabricando Tom Zé".)

, e o leitor lucrou com isso. Não era boa, ou melhor, poderia até ter sido, o assunto leve e carioca ajudava, mas o resultado foi pífio.

Ela sairia na Folha Carioca à época da última eleição municipal, entretanto meu senso crítico, quase nunca apurado, interrompeu o processo no momento exato em que a mão apertaria a tecla enter lançando como um foguete a crônica bem no colo do editor.

Na falecida, eu lançava uma candidatura alternativa. Uma chapa com a nata da música popular brasileira, tendo à frente Paulinho da Viola como candidato a prefeito e Chico Buarque na qualidade de postulante ao cargo de “secretário municipal do Vai dar Merda”. Além deles, estavam lá: Clementina de Jesus, Tom e Vinícius, Elis Regina, Lenine, Guinga, Gismonti, Cartola, Nelson Sargento, Joyce, Dorival Caymmi, Pixinguinha, Zélia Duncan etc. Enfim, velha e jovem guardas, mortos e vivos ocupando os postos monopolizados por políticos e por amigos de políticos.

Veio a eleição, “Dudu da Ordem” virou prefeito, esqueci a crônica, e o tempo não parou. Fui assistir a “Palavra (en)cantada”, filme de Heloisa Solberg, e sofri um abalo: em minha crônica enterrada, não havia reservado nenhum cantinho para o Tom Zé. Alguns dirão: ele não mora no Rio. Eu mesmo poderia tentar me salvar dizendo que Tom Zé é tão grande que prefeitura é pouco pro bico dele.

E de fato é. Tom Zé deveria ser presidente do Brasil; imperador até. Precisamos de um maluco lúcido do naipe dele. Além do mais, o tropicalista já está com bastante idade, o que, no meu ponto de vista, é condição sine qua non para a habilitação ao cargo maior da república ou da monarquia.

Passados mais de cem dias da vitória de “Dudu da Ordem”, temos visto o novo prefeito mandando ver ou, por outra, mandando para ser visto. Conhecido meu conta de uma amiga dele que vendia roupas ali no Catete havia bem uns vinte anos. A senhorinha de seus sessenta, setenta anos se viu, da noite para o dia, transformada em perigosa fora da lei. Antes, ela se pensava informal, soube que era bandida. Fecharam sua tenda.

Li que, na Gávea, um morador foi agredido pela Polícia Municipal, que “zelava” pela derrubada de um imóvel irregular e sentiu-se ameaçada por um homem caminhando com seu cachorro.

Estão propondo a construção de muros nos limites das favelas. (Discussão interessante a esse respeito Sérgio Besserman propõe em seu blog no Globo on line.) Fala-se em conter a expansão com o objetivo de não danificar o meio ambiente. Chama o urubu de meu louro, chama!

Poderia listar mais um monte de ações cujo objetivo é atacar a consequência sem melindrar a causa. Eu me pergunto: “Dudu da Ordem” está à ordem de quem?

Resta-me, nessa altura do campeonato, rezar para que o prefeito eleito erre, mas não peque. E enquanto vai flanando nos ares do poder, Tom Zé bem que poderia cantar pra ele assim:

“Dorme, dorme

Meu pecado

Minha culpa

Minha salvação.” (Mãe, Tom Zé e Elton Medeiros)

 

Ou então:

 

“Menina, amanhã de manhã

quando a gente acordar

quero te dizer que a felicidade vai

desabar sobre os homens, vai

desabar sobre os homens, vai

desabar sobre os homens.” (Vai, dos mesmos Tom e Elton)

26.4.09

Em torno de uma xícara de café

Bem, dando continuidade àquele papo todo em relação ao lançamento de "A câmera e a pena", hoje coloco disponível aqui em "No Osso" um trecho da segunda novela.
Digo antes: a primeira novela girava em torno do cinema, a segunda, da literatura. Acompanho cinco escritores em formação. Portanto, além de tudo que acontece a partir da reunião que fazem para discutir os textos, os escritores, lógico, escrevem. Sendo assim, o texto abaixo é de um desses escritores, o Teco Sanbra, e está dedicado a Clara Limpes, outro membro desse grupo.

Deixo com vocês. E relembro: o lançamento será no dia 7 de maio, às 19 horas, na livraria Blooks, que fica no mesmo endereço do Cine Arteplex (Praia de Botafogo, 316. Telefone: 2559-8776).

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Leocádia e o Amor                                         

a Clara Limpes

    Jabô, o noivo de Leocádia, levou um tiro. Como avisá-la, moça de vida tristonha, que só agora se abriu a alguma ilusão? Preferiram, antes de tudo, saber do estado de saúde do operário. Na conversa à beira do ferido, na iminência da chegada do socorro, decidiram que Xaveco e Brito, este primo da vítima, seguiriam para o hospital. Com as novidades, alguém iria lá na casa de Leocádia dar o recado. Mas quem? Os olhos se voltaram todos para Reizinho, não por alguma qualidade especial, mas era amigo do irmão da moça, e sua chegada à casa dela não despertaria maiores suspeitas.

    Entretanto Padreco, o mulato parrudo da boca de fumo, vira com os próprios olhos o tal Reizinho disparar a arma contra Jabô e, malandramente, se meter na multidão para ninguém suspeitar dele. E Padreco não gostava do sujeito. Situação mais apropriada para a esperteza morder a isca da oportunidade. Padreco entrou na conversa e achou por bem acompanhá-lo quando fosse o momento, até porque quem pregou aquele fogo gratuito deveria estar solto por aí, e Reizinho era homem de paz, talvez carecesse de ajuda para uma eventualidade. Sensata a intervenção de Padreco, concluíram todos, inclusive Reizinho.

A notícia do hospital era das piores. Na realidade, a pior: Jabô, ó... Reizinho deu pra trás: isso não contava para a Leocádia de maneira alguma. Padreco pressentia outro esquema na declinada do astuto: defunto em morro é obra de assassino; logo, logo, a lei apareceria na cola do malfeitor. Reizinho armava um “vou ao vento”. Nova intervenção do Padreco na assembléia interminável: dava ele a notícia, mas Reizinho ia de fiel, de guia, para ensinar onde morava a noiva viúva. O sensato em pessoa, esse mulato do bagulho. Não houve jeito, Reizinho foi no correio do anúncio fúnebre.

Quanto mais se afastavam da assembléia, mais ficava a certeza de que os dois homens não cumpririam o prometido. Padreco esperava chegar a um canto vazio para despachar a alma do outro para o fim do mundo. Reizinho, que nunca foi bobo, mas fingia-se de, tinha consciência plena de que o tal Padreco vira tudo, portanto bastava uma brecha para cair no pé.

Porém os becos, apinhados de gente, não ofereceram chance nem para outro crime nem para uma arriscada fuga. E, assim, assim, os homens chegaram à casa de Leocádia transferindo, lá dentro deles, todos os planos para a volta. Reizinho bateu à porta. Não se ouviu um “vai entrando, moço” nem um “quem é”. Veio em resposta, isso sim, uma seqüência de tiros sem pejo. A polícia matava dois coelhos com uma única disparada de balas, coisa cara para os cofres públicos.

Nesse dia, Jabô não amou Leocádia. Reizinho, livrando-se do noivo, não se apossou da viúva. Padreco não fez justiça com as próprias mãos. E Leocádia ficou a ver navios. A ver navios, não, porque dali do morro não se via o mar.

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18.4.09

Por que gosto de melodias simples?

Porque Deus não existe.

Porque sou limitado.

           Porque, certa vez, não tinha nem seis anos, disse à Denise que construíra sozinho, tijolo a tijolo, uma casa de vime.

           Porque passei a mão na Jane.

Ou por nada disso.

(Por ignorância, talvez.)

Quem sabe por preferir pão de queijo a ragu.

Por ter beijado de olhos abertos na minha primeira vez.

Por não conhecer nenhum Germinásio.

           Gosto de tudo que é simples, pois a simplicidade nada mais é do que a sabedoria despida de adereços.

Por não ser musical.

Porque posso cantá-las no banheiro.

Ou cantá-las à luz da lua, em serenata.

Pode-se perfeitamente pensar sobre elas em vez de cantá-las.

Para ouvi-las, não se requer muita atenção.

Melodias simples são a prova cabal da existência de Deus.

           Melodias simples não são assobiadas por pássaros.

Porque já tive um troço.

Porque já bebi demais e tive amores lunáticos.

Por meus amigos terem nomes como Sílvio, Marcus José, Pedro, Átila, Paulo, Nelson, Horácio e Jânio. E por outros amigos terem trocado seus nomes por apelidos.

           Se eu vivesse em Ipanema. Ou tivesse nascido em Januária.

Se alguém me esperasse em Oklahoma.

Se fosse outro, aumentariam as minhas chances de ter gosto refinado.

Porque Fernando Sabino humilha.

Porque Manuel Bandeira nem soube de minha existência.

Porque da janela do meu quarto eu via a mãe da Nádia tomar banho.

            O resto de inocência do mundo está guardado numa melodia simples.

            Toda (boa) relação sexual começa com uma carícia, que não passa de uma melodia simples, a mais simples entre as simples.

Porque Deus escreve certo por linhas tortas, mas, quando fala, não fala, canta melodias fáceis.

Por todos esses motivos. Por alguns deles: os que não se contradizem. Apenas pelos verdadeiros. Por nenhum deles.

 

 

Um instante, leitor:


Lanço meu novo livro — “A câmera e a pena”, Editora Cais Pharoux — no próximo dia 7 de maio de 2009, a partir das 19 horas, na Livraria Blooks, que fica junto do cinema Unibanco Arteplex, na Praia de Botafogo, número 316, Rio de Janeiro.

Já pensou se você aparece lá e a gente troca um dedo de prosa? Amarei se isso acontecer. Talvez eu até cante uma melodia simples, pois elas caem tão bem na voz de quem tem muito a agradecer.



5.4.09

A câmera e a pena

Amigos,

Em maio será lançado meu novo livro, A câmera e a pena, Editora Cais Pharoux (http://www.caispharoux.com.br/).

Neste livro usei e abusei daquilo que condenamos nos políticos, ou seja, ele é uma reunião de amigos. Os editores (Horácio e Glória) são meus amigos. O capista (Ricardo Tamm) é meu amigo. As revisoras (Glória e Teresa Cristina) são minhas amigas; Teresa, vejam que abuso, é minha irmã. A arte-finalista (Fernanda Garcia) é prima de minha mulher (Bia Werneck), que, por sua vez, nos ajudou na revisão. Para completar o time, e coroar esse verdadeiro nepotismo a serviço das letras, minha comadre Beth Brandão fez minha foto.

Além disso, planejei um livro com duas novelas (Um pouco mais que um diretor e Em torno de uma xícara de café). Convidei dois amigos escritores (Marco Túlio Costa e Alexandre Marino) para apresentar cada uma delas. Por fim, ainda "convoquei" meu outro amigo, o premiadíssimo Antonio Barreto para escrever a orelha. Aliás, que orelha! Na realidade, acho eu, uma inovação, pois a orelha é um e-mail. Vocês verão (espero que vejam).

Falo um pouco da primeira novela (Um pouco mais que um diretor). Comecei a escrevê-la em 1990 e só fui acabá-la em 2005. Não que tenha levado todo esse tempo na sua escrita, simplesmente havia abandonado-a quando ainda não passava de um conto de um escritor iniciante. Em 2005, quando fui levar meu livro "Estão todos aqui" (Editora Bom-Texto) ao editor, ele estranhou que fosse uma mistura de alguns contos com uma novela. Na dúvida de se aceitaria meu projeto, corri pra casa e pensei em uma novela para fazer par àquela outra. Lembrei do conto, voltei a ele, cheguei à novela. O livro saiu justamente como eu sugerira.

Esta novela se passa durante a filmagem de um primeiro longa metragem de um diretor. Conto os dias de filmagem, dias que operam mudanças em muita gente: nos atores, nos técnicos e, principalmente, no diretor. Ele tem uma espécie de surto. Com isso a filmagem não é concluída e o filme, óbvio, não se materializa.

O que estava pronto e acabado era o argumento do filme. Aliás, um argumento que dá a entender que o filme bem poderia ser uma espécie de Almodóvar, ou, quem sabe, um dramalhão mexicano. O que seria dependia do talento de todos, e ninguém soube e ninguém saberá a serviço do quê estava esse talento.

O argumento aparece na novela, e eu, em primeira mão, apresento-o a vocês, meus leitores. Que aguce a curiosidade de todos. Se tudo der certo, primeiro no Rio de Janeiro, dia 7 de maio, na Livraria Arteplex (que está para mudar de nome), à partir das 19 horas, estarei distribuindo autógrafos aos que aparecerem para tomar um vinho comigo.


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Argumento
                                                                                                  Grande penedo
                                                                                                  Este carrega;
                                                                                                  E apenas chega ao cume,
                                                                                                  O faz rolar.
                                                                                                  A pedra sempre
                                                                                                  Ao vale desce,
                                                                                                  Sem que ele cesse
                                                                                                  De a ir buscar.
                                                                                                 (Lira XIII, Marília de Dirceu,Tomás Antônio Gonzaga)


Anos depois de ter fugido da fazenda do pai acompanhando a mulher recém-conhecida na pequena cidade, Aldo regressa. Seu olhar, espiando a propriedade de longe, oscila entre o temor e a aflição.

A mãe, Eneida, no período de sua ausência, contraíra uma doença misteriosa e, segundo os médicos, poderia morrer subitamente. Diante disso, ela achou por bem ficar, na maior parte do tempo, na fazenda, onde o clima ameno, a tranquilidade e os cuidados dos empregados manteriam as condições ideais sugeridas pelos especialistas. França, pai de Aldo, acatou a vontade da esposa.

Eneida reencontra o filho depois de um fim de semana em que fora ao Rio de Janeiro fazer os exames e as consultas de praxe. Revêem-se, assim, de chofre, no instante em que ela desce do carro. Depois de uma recusa inicial, quando os olhos da mãe não se fixam em lugar algum, os dois têm um contato amoroso intenso, selado em forte abraço.

Mãe e filho passam a cuidar das coisas rotineiras: desfazer as malas, guardar as roupas nos armários, fazer a cama do filho no mesmo quarto de antes, mantido intocado nos mínimos detalhes da decoração. Preparam lanche, chegam a tomar um cálice de vinho. Falam pouco entre si, não há nenhuma explicação que se peça, de um lado, ou que se dê, de outro. Combinam percorrer a fazenda na manhã seguinte, voltando aos cantos de que sempre gostaram: a beira do lago, a sombra daquela velha árvore na colina, a casa abandonada à beira da bica em que ele adorava se banhar.

Pela manhã, saem em caminhada. Observam os rebanhos, as plantações, conversam com os empregados. Antes do almoço, sentam-se à sombra da árvore frondosa. Ali, enfim, o filho toca no assunto difícil, pede perdão, convida a mãe para uma festa de conciliação, antes mesmo da chegada do pai. Mas, o mal súbito, do qual ele não sabia, mata Eneida antes de ela responder ao filho.

Aldo, atônito, trêmulo, leva o corpo para o quarto e o deita na cama. Liga para o pai, que ainda não sabia de sua volta. França se assusta, primeiro, por ouvir a voz do filho, depois com a notícia: a morte de Eneida, morte anunciada, sempre mais perto. A tristeza não o impede de desancar sua dor culpando o filho. Do corpo de Eneida cuidariam os empregados e o médico. O culpado que voltasse lá para o mundo dele, verdadeiramente responsável pela morte da mãe e pelo envelhecimento do pai, que se viu dividido entre cuidados exigidos por uma doença misteriosa e a necessidade de continuar a trabalhar. Voltasse para o mundo daquela mulher à-toa.

Aldo senta-se no banco e larga o telefone caído fora do gancho. Com que direito o pai poderia acusá-lo de matar a própria mãe? Não consegue ficar ali, sai porta afora, porteira afora, some da fazenda.

Durante as próximas vinte e quatro horas, o rapaz se perde pelas estradas da região. Dirige-se à cidade e de lá retorna; pára nos lugares ermos onde, na infância, gostava de se esconder.

Em algum momento, bate à porta de uma casa antiga, parecida com a da fazenda de sua família, mas construção maltratada, onde o reboco cai aqui e, lá, as janelas não fecham, empenadas que estão. Um ancião abre a porta. O reconhecimento é imediato, mas há um tempo para que se aproximem por meio de um aperto de mão e de um convite para entrar. O chão de tábua corrida, Aldo repara, está esburacado e sem brilho.

Nessa construção cai-não-cai, o velho e Aldo travam um penoso diálogo. O rapaz contando da morte da mãe, da reação do pai; o velho narrando todos os fatos que se passaram entre a fuga do menino e a sua volta: o sem sentido da doença da mãe; o distanciamento do casal, cisão que, pelo jeito, veio a público quando ela ficou na fazenda e o pai na cidade, mas já um fato antigo entre os dois; o recolhimento absoluto da mãe vivendo enfurnada no quarto, deitada no mais das vezes; a notícia que se espalhou a respeito de um relacionamento extraconjugal do pai. Aldo tenta resistir a continuar ouvindo, mas o velho o toma pelos braços, olha bem no fundo dos seus olhos e arremata: o próprio Aldo era filho de uma aventura paterna, aceita por Eneida ao saber que a mãe biológica morrera no parto.

O moço deixa o velho e volta às suas andanças incertas. Sobe o Pico do Garrafão, volteia a serra, desce no vilarejo contíguo à cidade, onde, sentado no banco da praça, avoado e tristonho, depara-se com a algazarra das crianças vindas da escola. Ele se vê na mesma praça, anos atrás, sentado no mesmo banco. Ao seu lado, a mulher com quem fugira. Ela está nua. Ela se levanta e cruza toda a extensão da praça, passa muito perto da meninada, mas ninguém se dá conta dela. Aldo esfrega os olhos como se tentasse se livrar de um cisco. Sai do banco. Corre para a venda da esquina, onde compra a pequena faca que facilmente oculta em sua roupa de verão.

O homem do armazém pergunta se ele não é filho do seu França e da dona Eneida. E, sem esperar resposta, emenda pergunta sobre pergunta: “A mãe vai bem? O pai vem na sexta? O senhor chegou hoje?” Aldo responde qualquer coisa já com o pé na rua.

Se até então seu vaivém fora na cadência de um passeio, a partir desse momento é uma besta cortando as estradas de terra, estreitas estradas de terra, vazias quase sempre, mas com algumas surpresas inesperadas: caminhões de leite; ônibus com bóias-frias; carroças vagarosas com mulher de sombrinha e homem de cigarro de palha na boca. Livra-se de cada um desses transtornos sabe-se lá Deus como: joga o carro contra o barranco para fugir do caminhão; não desvia um tico de nada fazendo o ônibus frear bruscamente; espreme a carroça entre seu carro e o precipício.

A estradinha da fazenda parece estacionamento. Os empregados se espalharam pelo pátio defronte da casa, e seus garotos sujinhos brincam sem cerimônia por tudo quanto é lugar, ora descendo o corrimão da escada principal, ora subindo na goiabeira. Consolada por um par de amigos, sua tia Luana, irmã de Eneida, ao vê-lo, tem impulso de ir a seu encontro, mas o sobrinho toma outro caminho, contorna a casa para entrar pelos fundos.

Mafalda, a preta da cozinha, larga tudo, afasta-se do pessoal que cochicha ao pé do fogão e aproxima-se dele. Abraçam-se com ternura. Ela lhe diz alguma coisa como estarem todos nervosos, aquele tempo fora difícil, primeiro a ausência fulminante dele, logo depois a doença inexplicável de dona Eneida. Ele quer saber se a doença tinha a ver com sua fuga, mas a velha bota o dedo em sinal de silêncio, pede para não falarem disso agora. Lá na sala, as pessoas, seu França principalmente, esperavam por ele, para compartilhar esse momento, triste, sim, mas já esperado. Aconteceu, aconteceria de uma forma ou de outra.

Os rostos vão em direção ao rapaz que adentra a sala. São vizinhos antigos, pessoas da cidadezinha, um ou outro vindo da capital: parentes, o sócio do pai na ferraria, o padre Afonso. Cumprimentam-no com educados pêsames, a prima Ceila abraça-o chorando convulsivamente. Aldo se desvencilha dela para se aproximar do caixão. De um lado está seu pai. De outro, o velho.

França caminha na direção do filho, mas Aldo grita, descontrolado, para o pai se afastar. Nada detém o pai, nem o murmúrio das pessoas. Pelo jeito, vai agarrar o moleque atrevido e aplicar-lhe uma sova. Aldo, contudo, não se intimida e esbraveja, sem meias palavras: da boca do pai, a vida toda, ouvira apenas um punhado de mentira; a maior delas: ter ocultado o fato de aquela senhora morta ali, a quem aprendera a chamar de mãe, não ser realmente sua mãe.

Aldo tem a faca aberta, empunhada. França, no entanto, já não avança mais, está estarrecido, petrificado. Consegue, sim, afirmar que nunca escutara tamanha sandice, onde já se viu isso. Aldo jocosamente afirma não ter visto coisa nenhuma, mas ouvido dele, aponta para o velho, a verdade mais doída do mundo. França parece tocado por uma nova força, descongela-se e ri absolutamente alto, nervoso até. “Então”, diz, “ele é o dono dessa verdade.” O velho, até então atento e silencioso, dá dois passos em direção a Aldo (como aliado perfilando-se ao batalhão de tropa). Estão arranjados os exércitos, e é França quem ataca, quem aponta o dedo para o velho e o chama de mentiroso. “Se querem verdade”, grita, “a verdade é que o velho, sim, ele, sim, é o seu verdadeiro pai. Você, garoto, é filho de Eneida e desse traste aí.”

A troca de olhares entre aqueles que vieram apenas para velar um corpo é intensa. Espantados alguns, enquanto outros, vê-se no rosto, estão aliviados por não ter mais de guardar tamanho segredo.

A arma, a ridícula arma, não lhe vai servir para aquela guerra. Aldo atira-a ao chão e chega a esboçar um sorriso ao vê-la cair de ponta e espetar a madeira. As vozes sussurradas continuam produzindo o seu zunido de abelha, crescendo e diminuindo de intensidade continuamente.

O velho, França e Aldo não se enfrentam mais como ainda há pouco. A expectativa é de que, não demora muito, um deles, provavelmente o velho, reaja ao último ataque. Mas não, o velho, ao contrário, enfia as mãos nos bolsos, deita o olhar no chão tão bem conservado dessa casa e movimenta-se para sair. França, do mesmo modo, sobe as escadas e segue para seu quarto, onde vai descansar.

Aldo fica. Sentado na cadeira ao lado do caixão, alisa as mãos de Eneida.

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Noutra hora irei colocar trecho da outra novela.