Imagine que, sem mais nem menos, os tambores resolvam inaugurar do seu jeito o tempo da destemperança, inventando com histeria de taróis um carnaval temporão, novembrino.
Com algum esforço, dará para improvisar uma fantasia mexendo e remexendo no armário, incluindo o do pai, o da mãe, o do marido, quem sabe até o do filho, mas neste caso não procure o que ali não se pode ou não se quer achar. Filhos têm fantasias do arco da velha, algumas os pais se esquecem de tê-las tido também.
Irá cair-lhe bem a roupa da Borralheira adaptada aos trópicos. Não lhe faltarão sapatinhos carregados por príncipes nórdicos, nerds, selênicos ou céticos. Nem digo a de um pirata de meia tigela: a venda num olho, mas o gancho no pé direito. O pileque tornará possível que se fique fantasiado, sem ficar fantasioso, cada um dos que se lançarem à rua no exato momento em que rufar o primeiro baticum.
Não faz mal que não estejam disponíveis os banheiros químicos, nem na festa oficial estão.
Não faz mal que a cidade esteja correndo de cá pra lá e de lá pra cá na sua hiperatividade habitual e sem norte. Deixe o trânsito congestionado digerir a fumaça, que é sua digital e nossa morte. Deixe as crianças na saída da escola espantarem-se com homens de saia e mulheres tortas de dar pena. Sopre-lhes ao pé do ouvido que isso é apenas uma das faces da alegria.
O contágio desse carnaval será homeopático. Um folião descerá de seu décimo primeiro andar trajando chapéu coco e bengala, crioulando lindamente a figura de Chaplin. Os vizinhos olharão praquilo com comichão de denunciar o meliante ou internar o trânsfuga. Porém surgirá, bem embaixo do nariz desses incautos desconcertados, uma lourinha que, traindo a lua, dar-se-á ao sol em trajes de odalisca com um nada de pudor. Sem contar um padre de araque que rezará três vezes antes de verter a primeira talagada e abraçar os pecados que só mesmo a carne sabe e ousa cometer. Quedarão conformados os caretas.
Surpresos, os porteiros tenderão a ficar, como os soldados, em posição de sentido, porém não tardará muito para inventarem danças com a vassoura, os mais sortudos, com a dama roliça do 307 e os enrustidos, com o rapagão de rua que está sempre por ali, às vezes dando conta de si mesmo embaixo do cobertor escondido durante o dia sabe-se lá onde e em cima dos jornais que não se cansam de noticiar as repetidas falcatruas, os desastres esportivos e as aberrações sociais.
Até mesmo os que, na festa de momo, preferem a serra, as águas de Minas ou o frio europeu sambarão espremendo-se nas cercanias de um trio elétrico improvisado numa ambulância cujo doente estará fantasiado (é melhor acreditar nisso) de morto.
Haverá beijos dos mais íntimos. Haverá abraços dos mais honestos. Haverá brigas; como de praxe. Haverá descobertas que, à primeira vista, assustam: um desvio de sexualidade, uma tendência ao álcool, uma queda pra vagabundagem.
Quando amanhecer, a cidade estará suja, não em demasia, e o Sorriso dará conta dela em dois tempos, inumeráveis vassouradas e não sei quantos passos no ritmo de um samba que inventa e assobia pra dentro.
(Ilustração sobre foto de Daniela Clark - G1)
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