5.6.23

Distraído nefelibata

 

Sou um pedestre distraído. Aliás, hoje quem não é um pedestre distraído? A maioria está capturada pelo celular, alguns conversando com a mãe, checando se ela tomou os remédios da manhã, se marcou o médico, outros olhando o nude que fez soar o alarme do zap. Sim, a turma já olha ali na calçada, sem constrangimento, afinal o nu deixou de ser uma coisa privada. Convidado pela amiga, você vai ver a foto do joelho recém-operado do marido dela e se depara não só com aquilo como também com uma enormidade diminuta ou uma pequenez robusta. Tudo na boa. Novos tempos.

A minha distração não é dessa natureza.

Posso, no corpo a corpo da disputa pelos espaços exíguos das calçadas estreitas, me perder numa lembrança. Com isso, diminuo a velocidade dos meus passos e provoco pequenos engarrafamentos de gente. Se me perguntam o que está pegando, sou obrigado a dizer que empaquei naquela procura sem sucesso em que estou metido. Qual, criatura? Ah, aquele disco instrumental d’A Cor do Som, aquele em que o Egberto Gismonti faz uma participação especial. Mas isso é motivo para reter os atrasados para o trabalho ou para um encontro amoroso ou simplesmente fugidos de uma situação perigosa? É verdade, mas, olha, aquele som já me salvou, num sabe? Ninguém quer saber, e, como pedestre não tem buzina, metem a mão na cumbuca do xingamento: seu isso, seu aquilo e seu aquilo outro. Me ajudar na procura, ninguém.

Mas quem me xinga? O autômato do celular. Ele anda com a cara enfiada na telinha e nada o tira dali a não ser quando dá um encontrão num distraído de outra natureza. A minha distração requer paradas para olhar ao redor. Não que eu espere achar algum link do disco tatuado no chão, ou mesmo um CD abandonado ao lado de uma lixeira, não é isso, é que a nostalgia daquele disco, como eu já disse, me remete a situações meio bravas que aquelas músicas me ajudaram a superar. Então eu preciso parar e suspirar.

Falo desse disco porque o procuro, ainda que apenas nas plataformas aquém da pirataria, já há algum tempo, mas minha distração, sempre nefelibata, se alimenta de outras e muitas miudezas. Nudes também, mas não os que estão escancarados nos smartfones da vida. Entre minha casa e o mercado onde gosto de comprar o pão francês, aquela menina que hoje, feito eu, rompeu a sexta década de existência, me aparece adolescente em seu biquini verde-água em torno da piscina em que nos refrescávamos e, olhando uns aos outros, fazíamos planos de gente grande. Planos que incluíam, se não eram apenas isso, sacar a pouca roupa que vestíamos e nos visitarmos com a sem-cerimônia que ainda não tínhamos. Como é possível caminhar objetivamente, cioso da responsabilidade que um cidadão tem para o bom fluxo de todos os demais pedestres, com minha juventude e aquela menina com a qual não fui além do convívio em torno da piscina ocupando a minha cabeça? Ah, os distraídos das redes sociais que me desculpem e adquiram um aplicativo que sinalize a existência de outros distraídos a sua frente e os ajude a não tropeçarem em nós, pobres coitados.

É verdade que os distraídos de uma e de outra natureza poderíamos conviver de forma mais harmoniosa, mas, na cidade do Rio de Janeiro, já se vão uns vinte anos ou mais, um prefeito resolveu alargar ruas e estreitar calçadas. Na época, muita gente aplaudiu, tudo indicava que diminuiriam os engarrafamentos de automóveis. Talvez tenha acontecido, mas, aos olhos de hoje, o melhor jeito de fazer isso é tirando os carros das ruas, que desse modo devem ser estreitadas, forçando assim a que as pessoas procurem o transporte público. Reduzindo-se o transtorno do trânsito e a poluição, com calçadas largas, distraídos de toda espécie circularão mais soltos, enfrentando riscos menores de se atropelarem e com isso saírem no braço.

Exagero ao dizer que um mundo de calçadas largas e ruas estreitas garante a felicidade, mas é um bom passo para irmos nos aproximando dela.

3 comentários:

Dag Bandeira disse...

Conheço um distraído daqueles que param para admirar as copas das árvores, olhar o céu, observar a beleza dos letreiros luminosos e não esbarrou, mas trpeçou e caiu. Sabe o que restou para ele? Uma cama de hospita e, na mão, um celular para dar uma espiadinha nuns nudes de vez em quando.

No Osso disse...

Dag, Dag... a distração é cruel, sempre soube disso.

Mumu Barbosa disse...

Distraídos venceremos.