Sou um pedestre distraído. Aliás, hoje quem não é um
pedestre distraído? A maioria está capturada pelo celular, alguns conversando
com a mãe, checando se ela tomou os remédios da manhã, se marcou o médico, outros
olhando o nude que fez soar o alarme do zap. Sim, a turma já olha ali na
calçada, sem constrangimento, afinal o nu deixou de ser uma coisa privada. Convidado
pela amiga, você vai ver a foto do joelho recém-operado do marido dela e se
depara não só com aquilo como também com uma enormidade diminuta ou uma pequenez
robusta. Tudo na boa. Novos tempos.
A minha distração não é dessa natureza.
Posso, no corpo a corpo da disputa pelos espaços exíguos das
calçadas estreitas, me perder numa lembrança. Com isso, diminuo a velocidade
dos meus passos e provoco pequenos engarrafamentos de gente. Se me perguntam o
que está pegando, sou obrigado a dizer que empaquei naquela procura sem sucesso
em que estou metido. Qual, criatura? Ah, aquele disco instrumental d’A Cor do
Som, aquele em que o Egberto Gismonti faz uma participação especial. Mas isso é
motivo para reter os atrasados para o trabalho ou para um encontro amoroso ou
simplesmente fugidos de uma situação perigosa? É verdade, mas, olha, aquele som
já me salvou, num sabe? Ninguém quer saber, e, como pedestre não tem buzina, metem
a mão na cumbuca do xingamento: seu isso, seu aquilo e seu aquilo outro. Me
ajudar na procura, ninguém.
Mas quem me xinga? O autômato do celular. Ele anda com a cara
enfiada na telinha e nada o tira dali a não ser quando dá um encontrão num
distraído de outra natureza. A minha distração requer paradas para olhar ao
redor. Não que eu espere achar algum link do disco tatuado no chão, ou
mesmo um CD abandonado ao lado de uma lixeira, não é isso, é que a nostalgia
daquele disco, como eu já disse, me remete a situações meio bravas que aquelas
músicas me ajudaram a superar. Então eu preciso parar e suspirar.
Falo desse disco porque o procuro, ainda que apenas nas
plataformas aquém da pirataria, já há algum tempo, mas minha distração, sempre
nefelibata, se alimenta de outras e muitas miudezas. Nudes também, mas
não os que estão escancarados nos smartfones da vida. Entre minha casa e
o mercado onde gosto de comprar o pão francês, aquela menina que hoje, feito eu,
rompeu a sexta década de existência, me aparece adolescente em seu biquini
verde-água em torno da piscina em que nos refrescávamos e, olhando uns aos
outros, fazíamos planos de gente grande. Planos que incluíam, se não eram apenas
isso, sacar a pouca roupa que vestíamos e nos visitarmos com a sem-cerimônia
que ainda não tínhamos. Como é possível caminhar objetivamente, cioso da
responsabilidade que um cidadão tem para o bom fluxo de todos os demais pedestres,
com minha juventude e aquela menina com a qual não fui além do convívio em
torno da piscina ocupando a minha cabeça? Ah, os distraídos das redes sociais
que me desculpem e adquiram um aplicativo que sinalize a existência de outros
distraídos a sua frente e os ajude a não tropeçarem em nós, pobres coitados.
É verdade que os distraídos de uma e de outra natureza poderíamos conviver de forma mais harmoniosa, mas, na cidade do Rio de Janeiro, já se vão uns vinte anos ou mais, um prefeito resolveu alargar ruas e estreitar calçadas. Na época, muita gente aplaudiu, tudo indicava que diminuiriam os engarrafamentos de automóveis. Talvez tenha acontecido, mas, aos olhos de hoje, o melhor jeito de fazer isso é tirando os carros das ruas, que desse modo devem ser estreitadas, forçando assim a que as pessoas procurem o transporte público. Reduzindo-se o transtorno do trânsito e a poluição, com calçadas largas, distraídos de toda espécie circularão mais soltos, enfrentando riscos menores de se atropelarem e com isso saírem no braço.
Exagero ao dizer que um mundo de calçadas largas e ruas estreitas garante a felicidade, mas é um bom passo para irmos nos aproximando dela.
3 comentários:
Conheço um distraído daqueles que param para admirar as copas das árvores, olhar o céu, observar a beleza dos letreiros luminosos e não esbarrou, mas trpeçou e caiu. Sabe o que restou para ele? Uma cama de hospita e, na mão, um celular para dar uma espiadinha nuns nudes de vez em quando.
Dag, Dag... a distração é cruel, sempre soube disso.
Distraídos venceremos.
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