Se não estou lelé da cuca, falei do Milton Nascimento em uma crônica recente. Volto a falar dele, leitor e leitora, agora por conta do documentário “Milton Bituca Nascimento”, dirigido por Flávia Moraes. O filme acompanha a parte internacional de “A última sessão de música”, a derradeira turnê do menino nascido carioca e crescido mineiro.
Na viagem, Bituca confessa seu amor à mãe, desfruta de
momentos de carinho com o filho, canta para plateias europeias e
estadunidenses, tudo entremeado por depoimentos sobre sua dimensão artística. O
filme carrega a ideia de que ele teria apresentado o Brasil ao mundo. É
verdade, mas Carmen Miranda, Tom Jobim, João Gilberto e tantos outros o
precederam. Milton, por sua vez, percorreu uma trilha especial, tendo sido
abraçado por Wayne Shorter, Herbie Hancock, afluentes do grande rio chamado
Miles Davies. E continua sendo, agora, por exemplo, por Esperanza Spalding,
baixista e cantora de jazz com quem gravou um CD (“Milton + esperanza”)
indicado ao Grammy, cuja cerimônia de premiação esnobou o senhor de oitenta
anos, com saúde debilitada. Uma vaia aos organizadores.
Que som é aquele, de onde veio? A essa pergunta, repetida em
depoimentos e na narração, ensaiam-se várias respostas, inclusive a sempre
lembrada influência mineral, das montanhas. Não me lembro quem fala – Chico
Amaral (músico mineiro), se não me engano – que o melhor a fazer é fechar os
olhos e se deixar levar pelo mistério, sem querer entendê-lo. Com as mãos em
movimentos circulares, Quincy Jones sugere uma benção especial de Deus em Miles
Davies e Milton Nascimento. Acredito nessa distinção, mas isso não os impediu
de cortar bons dobrados em suas vidas terrenas. O vício do primeiro, a doença
do segundo. O racismo, nos dois casos.
O depoimento do Wagner Tiso, parceiro desde os tempos de
meninos em Três Pontas, é comovente. Desculpando-se, ele chora – a moça na fila
de trás da minha no cinema faz eco: “eu também estou chorando”. Bom, e eu
também. O Chico Buarque, outro octogenário, ao assistir àquele vídeo famoso –
Milton vocalizando o início de “O que será?”, ao lado de um Chico encantado –, experimenta
a mesma emoção, expressa num leve piscar de olhos, uma forma de não deixar as
lágrimas caírem. A gente está no mesmo barco, bambino.
Há pelo menos um momento de poesia absoluta: Criolo e Mano
Brown, um sem saber o que se passa com o outro, falam a letra de “Morro Velho”.
Criolo, sereno, se agarra à beleza da amizade entre o preto e o branco, o rico
e o pobre. Mano Brown, contestador, não esquece a luta de classe, delimita bem
que, no fim, é o preto na lida e o branco no comando, dono de tudo. Há que se
dizer que as duas coisas estão na letra do Milton. Essas leituras tão distintas
acontecem com Hamilton de Holanda solando a melodia no bandolim. Nessa cena, o
filme toma outra dimensão, são três caras que se chegaram ao Bituca bem depois
do Clube da Esquina, das andanças mundo afora, das parcerias com Elis, Chico,
Caetano e Gil. É forte. Assim como é forte o final, Milton ouvindo e regendo Angela
Maria cantar Babalu. Presenciamos a reverência sentimental do homem ao seu
berço musical, as cantoras.
Corro o risco de cometer uma heresia, mas vamos lá: o texto
narrado por Fernanda Montenegro é fraco, repetitivo. E a narração da atriz – que
me marcou em “Eles não usam Black-tie” e nos recentes “Ainda estou aqui” e
“Vitória” – me pareceu excessiva.
Fui à estreia de “A última sessão de música” (na saída,
Lenine flanava pelo estacionamento assobiando “Meu menino”, música da Ana Terra
e Danilo Caymmi, gravada no Clube da Esquina 2 e não cantada no show). Não sou
chegado a ninguém, não fui agraciado diretamente com um convite vip, mas estava
lá. A história é longa, não a contarei, o que interessa é que eu e uma grande
amiga fazíamos parte da plateia. O show me jogou nas cordas, emoção que deixou
de ser momentânea, transformando-se em perene: ficou como memória de minha
querida amiga que em breve nos deixaria.
É nascimento.
É vida, “vida, que amor brincadeira”.
Não poderia deixar de ser morte.
Milton é meu Deus particular.
6 comentários:
Poético, Xande, e verdadeiro, sei.
Viva nosso Bituca, Branca.
Que bom que está sendo tão homenageado em vida!
Bela crônica Alexandre! Tenho acompanhado seu blog, sempre curto, mas essa foi especial! Abraços!
Mariano, meu véi, que bom ter notícias suas. Apareça uma hora, vamos jogar conversa fora. E obrigado pela visita.
Sim, mas, por outro lado, Deus é imortal... Obrigado pela visita.
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