Em uma foto que viralizou, Tawy Zo’é, um jovem indígena, carrega nas costas Wahu Zo’é, seu pai. O médico Erik Jennings, sob o impacto da imagem, tratou de registrá-la sem saber ainda que o filho carregara o pai durante uma caminhada, floresta adentro, de seis horas. O motivo de tamanho sacrifício? Vacinar o idoso contra a Covid-19. O fato ocorreu no norte do Pará, onde vive a etnia Zo’é, que, segundo o médico, não teve nenhum dos seus infectado pelo vírus.
Em seu livro mais
recente, “As doenças do Brasil” (Biblioteca Azul), o português Valter Hugo Mãe narra
uma história que se passa em um território indígena à época em que os
portugueses começaram a explorar o interior. A grande sacada de Mãe é a de
promover a aliança entre um indígena mestiço (mãe indígena estuprada por um
branco), de nome Honra, e um negro, o Meio da Noite. Até se chegar ao pacto que
levará os dois a lutarem contra os brancos em defesa dos “abaeté”, muitas
arestas são aparadas: Honra tem de se sentir indígena, perder a culpa de ser
também branco; Meio da Noite, que havia sido capturado e poupado da morte, tem
de ser reconhecido como humano pelos indígenas. Além disso, um deve confiar no
outro, uma dificuldade quando a língua que serve aos dois não é a de nenhum deles,
mas a do homem branco. No romance, a linguagem é radical (me faz pensar em
Guimarães Rosa), e serve ao propósito de Mãe escrever a partir dos valores e
modos de ver o mundo dos autóctones. Assim, diálogos entre eles e os rios ou os
animais é uma coisa dada, natural, não é magia, nada disso. Leio o livro como
se ele viesse nos dizer que, se respeitados os habitantes originais ou se as alianças entre indígenas e negros houvessem se transformado em vitórias expressivas, o Brasil seria outro.
Talvez o mundo fosse outro.
Havia lido, antes
de Mãe, “Viva o povo brasileiro” (Nova Fronteira), de João Ubaldo Ribeiro. Ora
com ironia, ora em delírio, sempre com senso estético apurado, Ribeiro pincela
caminhos que poderiam dar em um Brasil diferente do que temos. Pessimista, ele deixa
claro que o que vinga em nossa história é um país cujo futuro é o paredão da
rua sem saída. O livro foi lançado na década de 1980, ainda na ditadura,
momento que justificava o pessimismo. Mas a abertura já acontecia, algum lume
de otimismo estava aceso, o que não foi suficiente para o livro ser alegre,
apesar de divertido (sabemos rir de nossas mazelas). De todo modo, se, com suas
revoltas, os negros houvessem forjado mudanças de fato, se lideranças femininas
multiplicassem-se história afora, se tivéssemos respeitado as religiões de
matriz africana, se os dissidentes brancos — ou seja, aqueles que entendem que
desfrutam de privilégios inimagináveis e estão dispostos a abrir mão deles — fossem
em número, o Brasil agônico não teria triunfado.
Assisti aos
cinco episódios de “O canto livre de Nara Leão” (Globoplay), de Renato Terra. Com
seus 13, 14 anos, Nara se enturmou com uma moçada de Copacabana que tinha
talento especial para a música. Ela e aquela turma, na casa da futura cantora,
“inventaram” a bossa nova. Quando seu namorado Ronaldo Bôscoli a trocou por Maysa,
Nara abandonou a turma e voltou os olhos para o samba. Ela conta então que, aos
15 anos, descobriu que havia favela, pobre e fome no Brasil, começando assim a sua
conscientização política. De voz mansa, mas assertiva, Nara não deixou de se
posicionar. Quando em entrevista disse que o exército (já no poder) não servia
para nada — ela já estava na mira por protagonizar, com Zé Keti e João do Vale,
o espetáculo “Opinião” —, passou a ser perseguida. Então casada com Cacá Diegues,
mudou-se para a França. Na volta, aproximou-se da turma do Ceará que chegava ao
Rio no começo da década de 1970 e, em seu disco “... e que tudo mais vá pro
inferno”, gravou Roberto e Erasmo, o que irritou antigos parceiros, como Dori
Caymmi e Edu Lobo. A diversidade e a independência a ajudaram a construir uma
carreira sólida, de qualidade e curta (Nara morreu aos 47 anos, em 1989). O
documentário joga luz num momento terrível, a ditadura, e mostra como sempre
houve, da parte dos artistas, resistência. Nara foi uma liderança entre os que
resistiram.
O indígena carregando o pai horas a fio para se vacinar é fiapo de um Brasil potente. Os livros de Mãe e Ubaldo, a vida de Nara (e o documentário de Terra) estão cheios de outros fiapos de potência.
Mas o Brasil não existe, o que existe é um quase Brasil.
2 comentários:
Somos sempre aquele futuro que está logo ali, mas não chega nunca. Haja esperança! Precisaremos de quantos séculos ainda?
Raul, tudo correndo bem, três séculos e meio.
Postar um comentário