31.7.21

O dicionarista de ocasião

O nome na tela do celular já adianta o início do diálogo:

— Sargento?

— Não.

— Márquez?

— Tampouco.

Garcia, amigo de infância, sempre foi atrapalhado (feito o sargento que persegue o Zorro) e fabulista (à moda do escritor colombiano). Por isso, o estribilho sempre que vejo seu nome na tela. A bem da verdade, quando meu nome é anunciado no celular dele, vem a contrapartida.

— Pires?

— Nem canto.

— Magno?

— Quem dera!

Nossas provocações recíprocas são, claro, temperadas de afeto e respeito. Ele não é só atrapalhado e fabulista, tem um rol de qualidades invejáveis, entre elas, a paciência. Quanto a mim, espero não ser apenas um romântico metido a grande, mas é melhor perguntar a ele.

Desta vez, Garcia liga preocupado com o Brasil. Com a política. Ele não milita na esquerda nem na direita, é um conciliador, um sujeito de centro. E o problema dele está aí.

— Esse Centrão não me representa.

— Como assim? Vocês não estão todos em cima do mesmo muro, só esperando a hora de dar o bote num lado ou no outro?

— Em política, você é um beócio. Isso que você diz faz parte do compêndio desses aí. Sou do centro dos Neves.

— Do neto?

— Não me venha com blasfêmia. Aquele de centro não tem nada; de Centrão, tudo. Não honra o avô.

— Então conclua.

— Daí que é preciso sequestrar o apodo de Centrão desses... desses... desses facínoras.

— Apodo, é? Hoje você está caprichando, é compêndio cá, beócio lá, facínora aqui.

— As frases são minhas, falo do jeito que quiser.

— Perdão, prometo ser daqui pra frente um respeitoso ouvinte.

— Centro, nas raias da política, é uma coisa importante. Quem ocupa esse espaço de consenso não vai pra lá nem pra cá, ao contrário, puxa as pontas pro meio.

— Hum, sei. Nas raias...

— Sim, nas raias. Ignorarei seus apartes pífios de agora em diante. Cumpra sua promessa e ouça. O tal Centrão nem busca o entendimento nem amortece as colisões de ideias. Estão ora no centro, ora à esquerda, ora à direita sem coerência ou vergonha. Esse Nogueira, por exemplo, já disse que o Lula foi o melhor presidente do Brasil e chamou o atual presindecente, a quem vai servir como ministro, de fascista. Haja maleabilidade.

— Maleabilidade...

— O que há, hein? Resolveu me tomar pra Cristo?

— Não, de jeito algum. Vamos lá, você quer mudar o... qual é a palavra mesmo?

— Apodo, iletrado, apodo. Pra mim, em vez de Centrão, a súcia deveria ser chamada de Sabujão.

— Você comeu o dicionário?

— Nestes tempos incivis, é a única leitura que não mexe com meus nervos.

Desconfio de que Garcia ligou apenas para fazer uma piada e exibir sua erudição passageira. Gaiatices do velho amigo. É hora de dizer, a nosso modo, adeus.

— Sargento?

— Não.

— Márquez?

— Tampouco.

— Outra hora nos falamos, douto amigo.

— Que assim seja, pagodeiro de butique e pequeno apedeuta político.

Um comentário:

Branca Maria de Paula disse...

É, Xande, ler o dicionário é a única opção. Vai aí um tanto de razão!