19.12.21

Cinco noites, cinco dias




Chuva. Sol. Noites de frio moderado e dias de calor igualmente moderado. Galinhas; pavões; um faisão; os cães Dado e Amy; passarinhos por todo lado; lagartos; aranha. Num ambiente assim, cinco noites e cinco dias bastariam para compensar a distância imposta a dois amigos pela pandemia?

Não.

Sim.

Conversar sem compromisso; trocar impressões sobre o mundo. Membros da igreja dos pessimistas não muito fiéis, num instante descremos para em seguida voltarmos a crer, afinal, há uma garotada, em particular negra, sedenta por mudanças. Passear por nossas histórias marotas e, de repente, chegar às perdas e ao que ficou dessas perdas. Isso seria suficiente para compensar a distância imposta pela pandemia?

Sim.

Não.

Regar a prosa, num dia, com licor de jabuticaba feito por um vizinho e, no outro, com uma taça de vinho (bebemos pouco, eis a verdade). Ver um filme novo (“Ataque de cães”, “The power of the dog”, de Jane Campion), um velho (“A época da inocência”, “The age of innocence”, de Martin Scorsese) e o documentário sobre Fela, importante músico nigeriano que pagou caro por ser ativista e questionar valores sociais (“Meu amigo Fela”, de Joel Zito Araújo). Trocar dicas musicais e literárias, alimentar os cães, rir de bobeira, encantar-se com a montanha bem diante dos olhos e com o coro afinado das cigarras. Na terça à noite, não conseguir se lembrar do nome “daquele sanfoneiro amigo da Bebel, aquele que toca com o Gil”. Trabalhar cada um no seu canto; ele, instalado no novo escritório, fazendo reuniões intermináveis; eu, no jardim, gravando um vídeo (editado por ele) a ser publicado em um canal do Youtube. Assim se esqueceriam dos dois anos de distância imposta pela pandemia?

Nãossim.

Proteger um filhote de anu. Lamentar o passarinho morto na piscina. Estar preocupados com os filhos. Estar orgulhosos dos filhos. Olhar a vida dos filhos na perspectiva das nossas, concluir que o tempo é outro; melhor observar, aprender, respeitar. Perguntar sobre o que foi feito de um velho amigo. Contar de um amigo que o outro não conhece. Planejar saber da saúde da companheira de um terceiro amigo. Lembrar-se daquela fita cassete com a entrevista feita na casa de Bento Ribeiro. A fita, ele mostra, está ali e precisa de emenda e de um toca-fitas. Colocar a fragilidade para quarar na grama. Lavar os temores na chuva serrana. No meio de uma conversa qualquer, já na quinta-feira, soltar do nada: “Mestrinho, o nome do sanfoneiro é Mestrinho”. Dar opinião sobre a obra da cozinha. Anunciar que vai ao banheiro. A distância imposta pelo confinamento foi embora?

Sinão.

Especular como tem sido o tempo da pandemia na vida das crianças; na vida dos muito pobres; na dos velhos mais velhos que nós. Citar alguns — próximos ou que nos chegavam por arte ou pensamento — dos derrotados pelo vírus e a incompetência política. Certificar-nos de que sobrevivemos. “Estou aqui? Sim, Xandón.” “E eu? Claro, Atira Sun.” Tomar o café juntos. Fazer planos para o resto da vida e mais dois anos.

Cinco noites e cinco dias não deram para nada. 

Mas não deixaram de dar para quase tudo.

2 comentários:

Nilma Lacerda disse...

Quero encontrar amigos e amigas nesse diapasão, meu cronista fiel. Pera aí, fiel, você que escreve ou eu que o leio? Sei lá, nem é bom especular. Fidelidade é força de amizade.
Escrever na chama da vida é força de talento. Parabéns, obrigada.

No Osso disse...

Pois nossa amizade é dessas, querida Nilma. Com a vantagem de ter a cumplicidade literária envolvida.