Chuva. Sol. Noites de frio moderado e dias de calor igualmente moderado. Galinhas; pavões; um faisão; os cães Dado e Amy; passarinhos por todo lado; lagartos; aranha. Num ambiente assim, cinco noites e cinco dias bastariam para compensar a distância imposta a dois amigos pela pandemia?
Não.
Sim.
Conversar sem compromisso;
trocar impressões sobre o mundo. Membros da igreja dos pessimistas não muito fiéis,
num instante descremos para em seguida voltarmos a crer, afinal, há uma garotada,
em particular negra, sedenta por mudanças. Passear por nossas histórias marotas
e, de repente, chegar às perdas e ao que ficou dessas perdas. Isso seria
suficiente para compensar a distância imposta pela pandemia?
Sim.
Não.
Regar a prosa,
num dia, com licor de jabuticaba feito por um vizinho e, no outro, com uma taça
de vinho (bebemos pouco, eis a verdade). Ver um filme novo (“Ataque de cães”, “The
power of the dog”, de Jane Campion), um velho (“A época da inocência”, “The age
of innocence”, de Martin Scorsese) e o documentário sobre Fela, importante
músico nigeriano que pagou caro por ser ativista e questionar valores sociais (“Meu
amigo Fela”, de Joel Zito Araújo). Trocar dicas musicais e literárias,
alimentar os cães, rir de bobeira, encantar-se com a montanha bem diante dos
olhos e com o coro afinado das cigarras. Na terça à noite, não conseguir se
lembrar do nome “daquele sanfoneiro amigo da Bebel, aquele que toca com o Gil”.
Trabalhar cada um no seu canto; ele, instalado no novo escritório, fazendo reuniões
intermináveis; eu, no jardim, gravando um vídeo (editado por ele) a ser publicado
em um canal do Youtube. Assim se esqueceriam dos dois anos de distância imposta
pela pandemia?
Nãossim.
Proteger um
filhote de anu. Lamentar o passarinho morto na piscina. Estar preocupados com
os filhos. Estar orgulhosos dos filhos. Olhar a vida dos filhos na perspectiva das
nossas, concluir que o tempo é outro; melhor observar, aprender, respeitar.
Perguntar sobre o que foi feito de um velho amigo. Contar de um amigo que o
outro não conhece. Planejar saber da saúde da companheira de um terceiro amigo.
Lembrar-se daquela fita cassete com a entrevista feita na casa de Bento
Ribeiro. A fita, ele mostra, está ali e precisa de emenda e de um toca-fitas. Colocar
a fragilidade para quarar na grama. Lavar os temores na chuva serrana. No meio
de uma conversa qualquer, já na quinta-feira, soltar do nada: “Mestrinho, o
nome do sanfoneiro é Mestrinho”. Dar opinião sobre a obra da cozinha. Anunciar
que vai ao banheiro. A distância imposta pelo confinamento foi embora?
Sinão.
Especular como tem
sido o tempo da pandemia na vida das crianças; na vida dos muito pobres; na dos
velhos mais velhos que nós. Citar alguns — próximos ou que nos chegavam por arte
ou pensamento — dos derrotados pelo vírus e a incompetência política. Certificar-nos
de que sobrevivemos. “Estou aqui? Sim, Xandón.” “E eu? Claro, Atira Sun.” Tomar
o café juntos. Fazer planos para o resto da vida e mais dois anos.
Cinco noites e cinco dias não deram para nada.
Mas não deixaram de dar para quase tudo.
2 comentários:
Quero encontrar amigos e amigas nesse diapasão, meu cronista fiel. Pera aí, fiel, você que escreve ou eu que o leio? Sei lá, nem é bom especular. Fidelidade é força de amizade.
Escrever na chama da vida é força de talento. Parabéns, obrigada.
Pois nossa amizade é dessas, querida Nilma. Com a vantagem de ter a cumplicidade literária envolvida.
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