7.10.21

Cheio de vontade

 Vontade de gritar da janela: “Corre, Maria, seu amor está logo ali na esquina.” Vontade de andar na rua rindo da rinha de calos nos pés daquela gente metida em sapatos feios, desconfortáveis e caros. Vontade de dançar com a Zilma. Vontade de mandar meus boletos a quem continua aplaudindo o dito-cujo. Vontade de extrair a raiz oval do infinito. Vontade de comer o sanduíche do Bolinha. Vontade de cantar durante o curto silêncio do tagarela. Vontade de virar do avesso o vinil do Vinícius. Vontade de ir a Marte procurar o Furioso, meu cavalinho do Forte Apache. Vontade de apagar a luz da escuridão. Vontade de abraçar a Sá Inês. Vontade de contar até três, começando de um milhão. Vontade de encontrar meu pai resmungando daquele seu jeito irônico, mas não tanto: “Ah, gente, deixa um pouquinho de mim pra mim”. Vontade de devolver a patativa engaiolada ao ovo. Vontade de dizer à Capetinha que, sim, ela pode ficar com a camiseta que ficou com ela. Vontade de tomar um chope com Deus. Vontade de papar, na biloca, as biloscas de meus patos. Vontade de acordar no meio da noite com minha avó dizendo que tudo isso, ó, não é nada. Vontade de ver os olhinhos da Viveca sumirem quando ela ri da vida. Vontade de voltar a ser um leão manco; manso, não. Vontade de cobrar o Romeu e Julieta que a Mônica não pagou. Vontade de ensinar ao menininho bonito do Afeganistão a tocar cuíca. Vontade de confessar ao Reinaldo, meu professor de Educação Artística e de Inglês, que ele foi importante pacas. Vontade de roubar ambrosia da despensa de Zeus. Vontade de ter esperança. Vontade de despertar no Brasil, almoçar em Moçambique e dormir de conchinha com a Nastassja Kinski lá na Cochinchina. Vontade de sugerir à Célia refogar o mexidinho com cebola, eu agora gosto. Vontade de montar o cavalo que Calígula nomeou cônsul da Bitínia. Vontade de declarar meu amor a quem está passando bem agora na rua detrás da rodoviária de Caiapônia. Vontade de levar a estátua do Drummond para tricotar com a da Clarice. Vontade de pedir à dona Neisa permissão para ir à instalação sanitária. Vontade de ser um personagem de Dostoiévski, mesmo que tenha de matar uma velhinha ou disputar a amante com o pai. Vontade de falar ao coração para não se assustar, bater tranquilo, é só a Elaine que desce o Beco dos Aflitos. Vontade de chutar a lua lá onde dorme a coruja na galáxia de Andrômeda. Vontade de ouvir o pito do Zé Porteiro. Vontade de, em vez de subir, descer pela mangueira até o ponto em que sua raiz banqueteia no inferno. Vontade de não perdoar. Vontade de proteger a Maria Tomate. Vontade de, esquecendo as outras vontades, ganhar um sorriso de meus filhos quando eram bebês.





___________________________

(1) Para os que receberam meu e-mail com o link da crônica, peço vênias pelo erro de português que seguiu na mensagem. Quando o percebi, tratei de corrigi-lo, logo alguns já receberam a nota sem o escorregão. 




7 comentários:

Aroeira disse...

adorei suas vontades. deu vontade até de escrever sobre as minhas. avon chama.

Unknown disse...

Poeta, poeta...

Ronaldo Guimarães

Miriam Mambrini disse...

Eta crônica maravilhosa! Quantas vontades bacanas. As minhas se limitam a querer juventude, querer saúde, querer plenitude, querer um alaúde, nunca um ataúde.


































No Osso disse...

Ronaldo, Hélio e Miriam, obrigado, queridos amigos. Minha vontade, vontade mesmo é estar com você e brindar a vida.

Nilma Lacerda disse...

Quero o escorregão, No osso! Tô doida pra ter um. Vontade de ter um escorregão junto com o do amigo. Mas vontade também de ter o sorriso das filhas e ... quanta vontade.
Parabéns, amigo.

Branca Maria de Paula disse...

Eita, Xande! Vontade não falta. Extrapola, evapora, piora e não tem hora.
Aguenta. Também estou assim.

Abração.

No Osso disse...

Nilma e Branca, de vontade em vontade a gente acaba construindo alguma coisa, no mínimo um sonho meio brumoso, mas um sonho e um primeiro passo.