Na última segunda-feira, comecei o dia espalhando, em rede social, dicas para a semana que se iniciava. Repito-as aqui sem saber se são valiosas, ainda que, imodestamente, creia que, mil vezes repetidas, elas nos auxiliariam a deter este momento assemelhado ao fim do mundo, senão o próprio.
À beira da
autoajuda, as dicas beliscam temas que me mobilizam e misturam aquelas
claramente políticas com as apenas afetuosas. Sabendo-se que o afeto, e isso
está tão claro hoje, é mais político que muito grito de guerra, minhas dicas —
com destaque para “divida as tarefas domésticas” — são absolutamente políticas
e absolutamente afetuosas.
Escrevi as
vinte e uma ações instigado, de um lado, pelas derrotas quase diárias,
representadas pelas chacinas do Jacarezinho e de muitas aldeias indígenas: dois
exemplos tirados de uma lista que, no dia 29 de maio, quando os descontentes
com o governo tomamos a rua (não fui, mas, como acumulo crédito em protestos e
passeatas, é como tivesse ido), foi acrescida por um ataque covarde da polícia
pernambucana contra a população. Daniel Campelo da Silva e Jonas Correia de
França, que nem estavam no protesto, perderam parte da visão depois de levarem
tiros de bala de borracha. De outro lado, o impulso veio do brilho saído das
ruas cheias e inconformadas. Escrevi, portanto, a partir de um lamento e de uma
esperança. Olhemos para os lados e não estejamos sozinhos — não estamos!
A extrema
direita, essa cobra por muito tempo escondida e alimentada pela própria fome,
voltou ao poder com o intuito único e claro de desinventar o Brasil, o Brasil cordial.
Digo cordial não no sentido de ser habitado exclusiva ou majoritariamente por
pessoas afáveis e sinceras, mas sim por abrigar o povo que inventou o drible e
que, se não o inventou, aperfeiçoou a gambiarra. Povo que, do trauma da
escravidão e agarrado à ancestralidade africana, fez surgir o samba, nossa
trilha da alegria, da congratulação, “o pai do prazer” e “o filho da dor”, nas
palavras de Gil e Caetano. Cordial porque age de coração.
A direita quer
acabar com os atravessamentos entre o antigo (e até o conservador) e o moderno
que marcam este país em permanente exercício de autoconhecimento. Vandré e sua
Disparada. O Lamento Sertanejo, de Gil e Dominguinhos. Os Mutantes cantando
Dois mil e um, de Rita Lee e Tom Zé. Os irmãos Pena Branca e Xavantinho, crias do
Brasil Central, rural, boiadeiro, acaipirando Cio da Terra, de Milton e Chico. Bethânia
levando Evidências para além do que é. Emicida absorvendo Belchior. Todas essas
experiências são o resultado de diálogos entre o centro e a periferia, entre o
rural e o urbano, entre o interior e as capitais, entre a costa oceânica e os
sertões e as florestas, entre o negro e o branco, entre distintas gerações,
portanto diálogos feitos também ou principalmente de embates. O Brasil, bem ou
mal, foi se construindo a partir dessas contradições que agora querem dizer que
não existem, querem proibi-las de dar norte ao país.
A direita no
comando não tem um projeto neoliberal claro, nesse ponto ela enfrenta suas
contendas internas, mas, não resta dúvida, tem um projeto coerente de, agarrado
às batidas agendas conservadoras, impor um poder que não é civil, também não é
militar, é miliciano. As milícias nasceram oferecendo, mediante pagamento e de
forma chantagista, “segurança” aos desassistidos (no subúrbio carioca, na
Baixada Fluminense). Aonde a lei não chegava, as milícias agiam como se zelassem
por ela. Lorota. Na verdade, reescreviam as leis e encarceravam — expandindo os
serviços já oferecidos, que passaram a contar com o gatonet, a venda
monopólica do gás etc. — primeiro os seus protegidos e, depois, todos os
moradores dos territórios sob sua influência.
É nessa esquina que estamos. Se não reagirmos, de 500 mil mortos por Covid-19, saltaremos para um milhão. A esse um milhão, acrescentaremos outro milhão de mortos por perseguição e balas perdidas. E mais não sei quantos milhões vitimados pela fome. É hora de trazer o poder para o campo civilizatório, tomá-lo de volta desse projeto de destruição. Depois, bem, depois a gente retoma as velhas questões. Uma retomada que, embora anteponha projetos distintos, quiçá incompatíveis, garanta a alternância no poder e o estabelecimento de um consenso duradouro, qual seja, o de que situação e oposição agirão sempre respeitando a democracia.
Bebendo sem deixar de orar e orando sem deixar de beber, nos concentremos na luta civilizatória e resgatemos o Brasil da mão dos facínoras.
7 comentários:
Excelente. O triste é que está faltando esperança de dias melhores.
Fui lá no face, depois de ler as ideias, e cumpri a tarefa do dia (Eliane Brum) para derrubar este governo. Orar e imprecar são bem semelhantes, não? Houaiss:
verbo
bitransitivo
1 pedir (a Deus ou às potestades celestes) [males ou bens]
Ex.: imprecava aos céus que mandassem uma benfazeja chuva
transitivo direto e bitransitivo
2 Estatística: pouco usado.
pedir, rogar com insistência
Exs.: a sua liberdade era tudo que imprecava
imprecou às autoridades que lhe concedessem o direito de defender-se
transitivo direto, transitivo indireto e intransitivo
3 rogar pragas a; praguejar
Exs.: "que os raios te fulminem", imprecou o desgraçado
i. contra tudo e contra todos
de tanto imprecares, o mal acaba voltando-se contra ti
Abraço muito apertado,
Nilma
Enquanto vivos nossa esperança é. E se é, é ativa, pois salta da cadeira e enfrenta o que está posto, que não aceitamos como determinismo, mas como e com indgnação.
Patrícia, Nilma e Denise, obrigado pelas leituras. Vivemos um momento terrível, mas é preciso estar falando sobre ele, denunciando-o, assim avançaremos no caminho do que é civilizatório.
quase um Krenak
Ainda aposto, embora um tanto desanimada, na força dos atravessamentos. E anotei tua sugestão de beber - quanto à de orar, vou pensar depois. Parabéns, Alexandre.
Poxa, não sei quem fez o comentário sobre os atravessamentos, de toda forma, obrigado. Eu acredito muito neles. Na bebida e na oração nem tanto, mas é preciso ter algum amuleto.
Murilo, meu garoto, estou longe do Krenak, no máximo, sou um Krenak da Selva de Pedra, cheio de ignorâncias.
Obrigado pelas leituras.
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