Em 1980, ano em que cheguei ao Rio, foi lançado o disco “Raíces de América”, gravado a partir de um show do grupo homônimo, formado por músicos argentinos, chilenos e brasileiros, com participação especial da atriz Isabel Ribeiro e direção de Flávio Rangel. Provavelmente foi uma das minhas irmãs que, na casa de nossos pais, no período das férias, me apresentou o som que, bonito de muitos jeitos, me marcou principalmente pelo trecho do poema do argentino Armando Tejada Gómes (aqui reproduzido sem que eu saiba de quem é a tradução) declamado por Isabel.
Há uma criança na rua
A esta hora, exatamente, há uma criança na rua.
É dever do homem proteger o que cresce,
Cuidar para que não tenha uma infância dispersa pelas
ruas,
Evitar que naufrague seu coração de barco,
Sua enorme vontade de pão e chocolate,
Caminhar por seus países de bandidos e tesouros
Pondo-lhe a esperança no lugar da fome.
De outro modo é inútil ensaiar na terra a alegria e o
canto,
De outro modo é absurdo porque de nada vale se há uma
criança na rua.
Importam duas maneiras de conceber o mundo:
Uma, ser alguém como as outras pessoas ou
Arrancar cegamente dos demais a bolsa.
E a outra, um destino de salvar-se com todos,
Comprometer a vida até o último náufrago.
Como se pode dormir de noite se há uma criança na rua?
Exatamente agora, se chove nas cidades,
Se desce o nevoeiro gelado no ar
E o vento não é nenhuma canção nas janelas,
Não deve andar o mundo com o amor descalço
Levando um diário como uma asa na mão.
Trepando nos trens, provocando-nos o riso,
Golpeando-nos como um anjo de asa cansada,
Não deve andar a vida, recém-nascida, já lutando,
A meninice arriscada a um pequeno ganho,
Porque então as mãos são dois fardos inúteis
E o coração, apenas uma má palavra.
Eles esqueceram que há uma criança na rua,
Que há milhões de crianças que vivem na rua
E uma multidão de crianças que cresce nas ruas.
A esta hora, exatamente, há uma criança crescendo.
Eu a vejo apertando seu coração pequeno,
Olhando para todos com seus olhos de fantasia,
Percorrem e olham para o homem rico,
Um relâmpago forte cruza seu olhar,
Porque ninguém protege essa vida que cresce
E o amor se perdeu como uma criança na rua.
Se o garoto de dezoito anos que eu era nunca foi insensível à dor humana e não se preocupava apenas com o próprio futuro, ao ouvir esse disco se convenceu de que não se poderiam ignorar as questões sociais, mais ainda, era preciso olhar para além de Passos, Rio de Janeiro, Brasília. Havia um mundo maravilhoso, mas também sofrido, ao nosso lado. Alguns anos mais tarde, eu dividiria um apartamento com meu irmão Gonzalo, boliviano, e, a partir de nossa amizade, conheci muitos argentinos e chilenos principalmente. Meu mundo se abria, e nele entravam outros grupos musicais – o Inti-Illimani, por exemplo – e Borges, Cortázar, Benedetti, essa turma da pesada.
O “Raíces de América”, em particular o poema na voz de Isabel Ribeiro, voltou à minha memória porque, quarenta e cinco anos depois de minha chegada a esta grande e complexa cidade, constato que a infância continua desprotegida, e não só aqui. Crianças são alvejadas nas favelas de nossos países e exterminadas, por bala ou fome, na Palestina, nessa guerra em que o que parecia uma resposta a uma agressão se transformou em um massacre sem fim por parte dos que comandam Israel e seus aliados.
Em uma publicação em rede social, a jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho compartilhou um post de Sami Abu Salem, um “pai de filhos pequenos” sobrevivendo aos horrores da guerra. O texto dele, em tradução chinfrim, começa assim: “a arma mais feroz que Israel usa contra Gaza é a fome”. Depois, em itens, registra tudo que um faminto é capaz de fazer (dois exemplos: “a fome transforma as pessoas em monstros”, “a fome destruiu muitas paredes da vida, da piedade, da fraternidade, da generosidade, do tempo e dos laços sanguíneos”), terminando assim: “a fome é mais perigosa que foguetes”.
Sebastião Salgado, que nos deixou no dia 23 de maio, disse numa entrevista que uma fotografia começava bem antes dela e terminava bem depois. Que na apreciação de suas fotos enxergaríamos, para além das pessoas ou animais, das paisagens ou construções nelas registradas, o próprio Salgado, sua vida, a família, a escola, tudo que o cercava. Acho a imagem de uma beleza sem fim, e a trago para cá na esperança de que tamanha consciência artística e humana supere, se possível brevemente, a maldade cultivada por esses homens orgulhosos da guerra.
2 comentários:
Como sempre, você consegue me emocionar profundamente com suas palavras. Eu te admiro muito,obrigado David
David, querido, obrigado pela leitura. O mundo anda complicado, não é?
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