21.12.23

O raro romance de Ione Mattos

 “A casa da mãe dos homens” (editora Telha), novo livro de Ione Mattos, é um romance, mas um romance com uma personalidade muito própria, um estranho quando comparado à produção atual com a qual tenho contato, ainda que, como muitos outros, dê voz a quem vive à margem.

Ione traz para o centro da narrativa pessoas contra as quais a sociedade costuma torcer o nariz, seja por suas características físicas (a obesa, a anã), seja por suas escolhas pessoais (o homem que se veste de roupas femininas, os que praticam o poliamor, o homem que se quer manter virgem até o casamento). Além disso, a casa é em si uma personagem que interage com os personagens (essa característica me faz pensar em “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso, embora não saiba bem por que caminho) e abriga vivos e mortos, estes relacionando-se com uns poucos escolhidos entre aqueles.

O romance corre em dois tempos. No passado conhecemos a família que é dona da casa. Descobrimos então como a casa foi cair nas mãos de duas mulheres muito raras, a bisa e Mirtila, mãe e filha, que não têm uma ligação de sangue com os donos. Os donos são gente rica, barões e baronesas. Mas, e aqui começam os “desvios” que Ione tinge com as cores mais fortes (e agradáveis), entre eles há um trisal: o barão (filho da grande baronesa), sua mulher (uma feminista de primeira hora) e uma prostituta. Há uma atenção especial e sem preconceito sobre esse relacionamento, indicando que o amor não se adequa a modelos.

No presente, a casa é uma ilha, um pedaço de Brasil – um país possível – que busca preservar aquilo que seria a essência humana: o amor, a tolerância, a solidariedade. Seus moradores vivem no trânsito entre esse espaço especial e a hostilidade da vida urbana hoje. O choque entre os dois mundos é inevitável e chegará a extremos ao longo da história.

Todos os personagens estão fugindo ao estereótipo pelos quais veem sendo atacados desde sempre, mais recentemente pelas hordas direitistas. Nessa caminhada, os “abandonados” (e os “assistidos”, nome dos sem-teto que são alimentados e, algumas vezes, acolhidos pela casa) se encontram e se fortalecem (mas há os arranca-rabos, os conflitos, não é um mar de rosa, ainda que seja um porto seguro).

Não me proponho a contar a história, fazer um resumo, deixo que cada leitor vá lá e leia, aliás, aconselho que se faça isso. O que importa é que, como já disse, Ione coloca o amor, a solidariedade, a compreensão, o acolhimento (da casa, de seus moradores) como peças-chaves na sobrevivência humana e atuam como um elemento de fortalecimento da experiência de vida. Quando o mundo está envolto em guerras, vivendo sob regras não cumpridas por seus defensores, gente hipócrita em grau máximo, essa casa da mãe dos homens recebe o divergente, o expulso, o aprendiz. A figura feminina, nessa visão, é a única capaz de reequilibrar o mundo. No livro (assim como na vida), o feminino é forte e diverso – está na feminista do começo do século XX, nas mulheres que transformam o casarão em espaço de proteção e crescimento, na jovem muito cheia de si, no homem que se veste de mulher – e, sem que haja um foco proposital e forçado nele, é a grande personagem que acompanhamos. A casa, outro feminino, também.

O livro se vale de um espalhado diálogo da autora com escritores, ficcionistas ou não, e se faz presente ora na voz de um dos narradores (no passado, é um barão machadiano que nos contará sua história de um amor não convencional), ora nos títulos, ora em alguma história que se conta. No belo final, a personagem mais velha, a bisa, conta à mais nova, Justina, uma possibilidade de criação do mundo. Não opta nem pela bíblica nem pela científica, escolhendo uma da cosmogonia indígena, a que coloca como princípio de tudo a criação, do nada, de uma mulher.

Apesar dessa clara leitura feminina, não há um desprezo pelos homens, ao contrário, o caminho está aberto à comunhão, desde que o princípio seja o amor. A figura de Lemuel serve bem para ilustrar essa linha. Ele chega à casa, depois de ter vivido sua infância num orfanato, e ali vai viver entre aquele ambiente quase utópico – onde convivem e se respeitam figuras tão diferentes, onde o trabalho é sempre compartilhado – e, um pouco depois, se ver atraído pelo mundo-mundo, este em que há disputa, ambição; o mundo masculino, afinal de conta. Ele viverá então a tensão desses dois polos até que a complexidade de um mundo habitado por vivos e mortos aja sobre ele. Seja como for, ele é uma espécie de espinha dorsal do romance.

No romance de Ione, o final é triste. No romance de Ione, o final é feliz. Eu bem disse que estamos diante de uma peça incomum.




3 comentários:

Ione Mattos disse...

Que leitura linda, Alexandre. Estou feliz e profundamente agradecida. Abração.

Nilma Lacerda disse...

Papel importante o das resenhas. Obrigada, Alexandre Brandão, pelo convite instigante.
Parabéns, Ione Mattos, pela obra realizada. Não estarei aqui no dia 13, desejo uma feliz Felifitá.

Dag Bandeira disse...

Assim fica impossível deixarmos de ler. Eita cronista, resenhista, romancista e poeta bom demais da conta!