“A casa da mãe dos homens” (editora Telha), novo livro de Ione Mattos, é um romance, mas um romance com uma personalidade muito própria, um estranho quando comparado à produção atual com a qual tenho contato, ainda que, como muitos outros, dê voz a quem vive à margem.
Ione traz para o centro da narrativa pessoas contra as quais
a sociedade costuma torcer o nariz, seja por suas características físicas (a
obesa, a anã), seja por suas escolhas pessoais (o homem que se veste de roupas
femininas, os que praticam o poliamor, o homem que se quer manter virgem até o
casamento). Além disso, a casa é em si uma personagem que interage com os
personagens (essa característica me faz pensar em “Crônica da casa
assassinada”, de Lúcio Cardoso, embora não saiba bem por que caminho) e abriga vivos
e mortos, estes relacionando-se com uns poucos escolhidos entre aqueles.
O romance corre em dois tempos. No passado conhecemos a
família que é dona da casa. Descobrimos então como a casa foi cair nas mãos de
duas mulheres muito raras, a bisa e Mirtila, mãe e filha, que não têm uma
ligação de sangue com os donos. Os donos são gente rica, barões e baronesas.
Mas, e aqui começam os “desvios” que Ione tinge com as cores mais fortes (e
agradáveis), entre eles há um trisal: o barão (filho da grande baronesa), sua
mulher (uma feminista de primeira hora) e uma prostituta. Há uma atenção
especial e sem preconceito sobre esse relacionamento, indicando que o amor não
se adequa a modelos.
No presente, a casa é uma ilha, um pedaço de Brasil – um
país possível – que busca preservar aquilo que seria a essência humana: o amor,
a tolerância, a solidariedade. Seus moradores vivem no trânsito entre esse
espaço especial e a hostilidade da vida urbana hoje. O choque entre os dois
mundos é inevitável e chegará a extremos ao longo da história.
Todos os personagens estão fugindo ao estereótipo pelos
quais veem sendo atacados desde sempre, mais recentemente pelas hordas
direitistas. Nessa caminhada, os “abandonados” (e os “assistidos”, nome dos
sem-teto que são alimentados e, algumas vezes, acolhidos pela casa) se
encontram e se fortalecem (mas há os arranca-rabos, os conflitos, não é um mar
de rosa, ainda que seja um porto seguro).
Não me proponho a contar a história, fazer um resumo, deixo
que cada leitor vá lá e leia, aliás, aconselho que se faça isso. O que importa
é que, como já disse, Ione coloca o amor, a solidariedade, a compreensão, o
acolhimento (da casa, de seus moradores) como peças-chaves na sobrevivência
humana e atuam como um elemento de fortalecimento da experiência de vida.
Quando o mundo está envolto em guerras, vivendo sob regras não cumpridas por
seus defensores, gente hipócrita em grau máximo, essa casa da mãe dos homens recebe
o divergente, o expulso, o aprendiz. A figura feminina, nessa visão, é a única
capaz de reequilibrar o mundo. No livro (assim como na vida), o feminino é
forte e diverso – está na feminista do começo do século XX, nas mulheres que
transformam o casarão em espaço de proteção e crescimento, na jovem muito cheia
de si, no homem que se veste de mulher – e, sem que haja um foco proposital e
forçado nele, é a grande personagem que acompanhamos. A casa, outro feminino,
também.
O livro se vale de um espalhado diálogo da autora com
escritores, ficcionistas ou não, e se faz presente ora na voz de um dos
narradores (no passado, é um barão machadiano que nos contará sua história de
um amor não convencional), ora nos títulos, ora em alguma história que se conta.
No belo final, a personagem mais velha, a bisa, conta à mais nova, Justina, uma
possibilidade de criação do mundo. Não opta nem pela bíblica nem pela
científica, escolhendo uma da cosmogonia indígena, a que coloca como princípio
de tudo a criação, do nada, de uma mulher.
Apesar dessa clara leitura feminina, não há um desprezo
pelos homens, ao contrário, o caminho está aberto à comunhão, desde que o
princípio seja o amor. A figura de Lemuel serve bem para ilustrar essa linha.
Ele chega à casa, depois de ter vivido sua infância num orfanato, e ali vai
viver entre aquele ambiente quase utópico – onde convivem e se respeitam figuras
tão diferentes, onde o trabalho é sempre compartilhado – e, um pouco depois, se
ver atraído pelo mundo-mundo, este em que há disputa, ambição; o mundo
masculino, afinal de conta. Ele viverá então a tensão desses dois polos até que
a complexidade de um mundo habitado por vivos e mortos aja sobre ele. Seja como
for, ele é uma espécie de espinha dorsal do romance.
No romance de Ione, o final é triste. No romance de Ione, o final é feliz. Eu bem disse que estamos diante de uma peça incomum.
3 comentários:
Que leitura linda, Alexandre. Estou feliz e profundamente agradecida. Abração.
Papel importante o das resenhas. Obrigada, Alexandre Brandão, pelo convite instigante.
Parabéns, Ione Mattos, pela obra realizada. Não estarei aqui no dia 13, desejo uma feliz Felifitá.
Assim fica impossível deixarmos de ler. Eita cronista, resenhista, romancista e poeta bom demais da conta!
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