4.12.23

Um momento mágico

Eram dez da noite, e eu estava no Conto de Réis, restaurante bem no Largo das Forras, em Tiradentes. Com um copo de cerveja numa das mãos e um feijão amigo na outra, observava o movimento da praça. Algumas pessoas estavam entretidas com as imagens transmitidas na fachada da Capela do Senhor Bom Jesus da Pobreza, outras simplesmente passeavam, indo ou vindo de algum lugar, talvez da casa de Papai Noel, talvez de um dos concertos do Festival Artes Vertentes. Sentado com moradores da cidade, ouvia opiniões sobre a tentativa de, na época de Natal, fazer da histórica cidade mineira, tão rica em eventos culturais, uma espécie de Gramado. Uns concordavam com a ideia, outros não. Não que eu não tenha opinião sobre isso (não gosto), mas meus olhos estavam encantados com o trânsito de crianças, jovens e velhos pela rua, todos sem nenhuma preocupação com a violência. Essa tranquilidade me remeteu à minha infância, à minha cidade de origem, que já foi pacífica e não é mais tanto. Enfim, enquanto meu caçula tinha o celular roubado no Rio de Janeiro, e eu ainda não sabia, Tiradentes curtia sem medo uma noite fresca, quase fria, nesse verão dos diabos.

Não sou o único, mas, ao caminhar por cidades históricas, sinto a presença fantasmagórica dos inconfidentes, de “Marília de Dirceu” e Xica da Silva, além de ver nitidamente a dor da escravidão cunhada em cada parede ou muro erguidos. Atualmente, encontro nesse patrimônio de orgulho e vergonha um pouco do que esperamos do mundo: um lugar de pessoas despreocupadas, passeando enquanto a noite é entornada na madrugada. Restaram poucas ilhas calmas em nossa sociedade insana.

Em Tiradentes, tenho sido apresentado a pessoas bacanas. Os cariocas Sérgio e Beth, donos do Conto de Réis, a família em torno do Sabor Rural – Kleber e Fernanda à frente –, a Carmen, funcionária de um banco e que exige que eu abra uma conta antes de me dar um cartão de crédito sem limite e anuidade, uma tremenda burocracia, mon cher. Também Luciana, nascida em uma cidade vizinha de Passos, Carmo do Rio Claro, que me vem à memória por seus doces caramelizados e artesanais (verdadeira obra de arte) e sua tecelagem em tear manual bonita de doer. Sem contar o Gabriel Vilella, criativo diretor de teatro. Quem me facilita tomar contato com os tiradentinos, poucos por nascimento, a maioria por exílio espontâneo, são meus amigos Marco Ajeje e Tereza Portugal. Eles se mudaram para a cidade há uns quinze anos e hoje são bem conhecidos, não só por sua simpatia, mas também pela qualidade do trabalho que fazem na Divinas Gerais, oficina de móveis e artes, e nas associações da sociedade civil a que pertencem ou trabalham como voluntários. Com eles, começo a tomar intimidade com a cidade e já posso frequentar sozinho um boteco e me sentar com um conhecido. Por isso, abraço esse resistente patrimônio histórico onde ainda (tomara que para sempre) se respira sem aflição e medo.

No último final de semana de novembro, Maria Valéria Rezende, premiada escritora, estava em Tiradentes e nos encontramos. Por ela ser filha de mãe e neta de avô passenses, nós nos chamamos de primos. (Seu avô, Elpídio Vasconcelos, foi um artista plástico e fotógrafo que, na primeira metade do século XX, lançou o primeiro livro retratando Passos.) Na infância, frequentando a cidade de seus ascendentes, a prima entrava em casas de familiares para um dedo de prosa, um gole de café, uma degustação de quitandas. Ela tem a impressão de que, de casa em casa, entrava em todas, portanto os passenses seríamos todos do mesmo sangue. Não só concordo como, se for o caso, comprovo com um teste de DNA.

Maria Valéria participava do Festival Artes Vertentes. Fez oficinas de haicai, lançou “Toda palavra dá samba” pela estreante editora paraibana Dromedário, bateu papo com jovens que a vão descobrindo. Deu o show de sempre. Dessa vez, estavam com ela duas de suas irmãs, Valentina e Viviana. Uma primaiada só. Certa hora, consegui sequestrar as três e levá-las à Divinas Gerais. O encontro com a arte do Marco Ajeje (logo incorporado ao ramo sírio-libanês dessa família elástica) foi, nas palavras da Vivi, o momento mais emocionante da viagem. Marquinho – primo delas, meu irmão – é um artista imenso. Seus móveis – feitos em grande parte de madeira de demolição – são, além de bonitos, funcionais; suas esculturas, um deslumbre. Maria Valéria e ele pareciam velhos conhecidos, o que sempre acontece, isso é, dois artistas, se controladas suas vaidades, são afinal velhos conhecidos e bons parceiros.

A escritora ainda conheceu pessoalmente o Celso Faria, violonista de Passos, morador de Belo Horizonte, que fugiu para Tiradentes para vê-la de perto e não deve ter se arrependido. Na companhia do Celso estava Carminha Guerra – musicista responsável pela gravação de discos de poetas como Adélia Prado e Thiago de Mello, além de muitos musicais, como o de Maria Lúcia Godoy (por coincidência, vizinha das primas Rezende em Belo Horizonte) –, que chegou a essa turma meio desavisada. Lá pelas tantas, ela adjetivou o momento como mágico. Graças também a ela, foi mesmo.

Um comentário:

Nilma Lacerda disse...

Brandão, amigo, você se esqueceu de mencionar a Livraria Café Itatiaia, na rua Direita (que cidade histórica não tem sua rua direita?) de onde trouxe pra você um livro, Noturno para Tiradentes, do Sérgio Farnese, e um mimo que não conto agora. Mas esta crônica é outro mimo seu para mim, pra quem te lê.